Ignoro se terá deixado de ser assim hoje em dia, mas é verdade: em nossa época o recreio era uma forma de regressão à primitividade. Volvíamos à sala de aula como se tivéssemos dado um passeio pelo paleolítico: amarfanhados, esfrangalhados, quando não estropiados. Verdadeiro milagre atravessá-lo vivos. Corríamos uns dos outros como se cruzássemos savanas com leões nos calcanhares. Eram nossos 15 ou 20 gloriosos minutos diários pra surrar e ser surrado, sob o olhar ineficaz dos inspetores, talvez coniventes. Só mais tarde, aos poucos, fomos notando a existência das meninas e nos dando conta das potencialidades da nossa humanidade. Então quer dizer que temos a capacidade de sentar e conversar? Então quer dizer que nem todo divertimento consiste em agressões? Que nem tudo na vida é ovinho-porrada?...
30.12.12
29.12.12
Oportunidade
Os livros são também uma questão de oportunidade. Gostam de tratar seu acúmulo como coisa sem sentido, quando a experiência mostra que deixar passar a compra de alguns deles às vezes é perdê-los para a vida. E não apenas em sebos, onde isso é máxima. Lembro muito bem uma antologia de Sophia de Mello Breyner Andresen com a qual sempre esbarrava numa livraria e cuja compra, confiante, sempre adiava. Até que o voluminho sumiu, vindo eu descobrir, da pior forma possível, tratar-se talvez do último em circulação. Nunca mais vi nem sombra. E como esse caso, incontáveis outros. Razão por que é de fato melhor se arrepender de um livro comprado, mesmo que inutilmente. Desses, nós nos desfazemos. Já aqueles, para os reencontrar...
27.12.12
Inferno
O calor é um problema das classes intermédias. Nossos ricos não o sofrem porque vão as 24 horas do dia de ar-condicionado em ar-condicionado — do de casa ao do carro, do do carro ao do escritório, e assim até poderem se entregar à praia, na esquina de onde moram. Os momentos de sufoco seriam os de transição de um ambiente a outro. Seriam, não fossem os corpos ainda resfriados. Nossos pobres, por sua vez, se não contam com o auxílio da refrigeração, têm ao menos a compensação da laje, da mangueira e da piscina de plástico. Sobrando mesmo para os que não são uma coisa nem outra, e não gozam dos benefícios da riqueza nem dispõem da guerreiragem da pobreza. A esses, perdidos nesse meio de caminho, além do inferno das ruas, o dos apartamentos.
25.12.12
Coplas
A Argentina gaúcha, crioula, a dos espanhóis com índios; própria, substanciosa e marginalizada; capaz de coisas como essas coplas de “El payador persegudido”, de Atahualpa Yapanqui.
La sangre tiene razones
que hacen engordar las venas.
Pena sobre pena y pena
hacen que uno pegue el grito.
La arena es un puñadito
pero hay montañas de arena.
*
El trabajo es cosa buena,
es lo mejor de la vida;
pero la vida es perdida
trabajando en campo ajeno.
Unos trabajan de trueno
y es para otros la llovida.
*
Tal vez otro habrá rodao
tanto como he rodao yo,
y le juro, creameló,
que he visto tanta pobreza,
que yo pensé con tristeza:
Dios por aquí no pasó.
*
Si alguien me dice: “señor”,
agradezco el homenaje;
mas soy gaucho entre gauchaje
y soy nada entre los sabios.
Y son pa mi los agravios
que le hagan al paisanaje.
24.12.12
15.12.12
Resumo (2)
Se em “Diamundo” Drummond resume o brasileiro em três versos, em “Entre Noel e os índios”, dedicado ao médico judeu-ucraniano Noel Nutels, no mesmo As impurezas do branco, ele resume em um único o Brasil. Aqui, o indigenista naturalizado brasileiro baixa de helicóptero e vê:
... a fome à beira d'água trêmula de peixes.
13.12.12
Casos
No pior dos casos, a experiência universitária ensina ao menos a não rir do diferente. Já no melhor, nem isso.
12.12.12
Orgulho
Sempre tento justificar minha nulidade pensando que Deus não dá asa às cobras. Que eu seria muito orgulhoso caso fosse bom em algo. Que, se eu já sou assim tão cheio de mim sem qualquer talento, imagina se eu tivesse algum. E que Deus é mesmo muito justo. E sabe muito bem o que faz. Até que de repente lembro do Romário...
11.12.12
5.12.12
4.12.12
Resumo
O brasileiro explicado em três versos de “Diamundo”, poema de As impurezas do branco, de 1973:
Povo lincha ladrão
a soco a pé a pau
e reparte 240 cruzeiros que ele roubou
3.12.12
Memória
Memória, tu dos anos inimiga,
Das coisas fiel guarda e despenseira
— Torquato Tasso, Jerusalém libertada, I, 36, trad. Ramos Coelho.
Das coisas fiel guarda e despenseira
— Torquato Tasso, Jerusalém libertada, I, 36, trad. Ramos Coelho.
1.12.12
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