Milan Kundera está todo em Robert Musil, o que ele não só não elude como sugere. Em entrevista a Paris Review, por exemplo, aponta como único equívoco do austríaco o ter feito de Um homem sem qualidades uma obra inabarcável, — erro que ele presumivelmente busca corrigir escrevendo inúmeros romances de tamanho razoável embora de fundo praticamente indistinguível — romances os quais, ao fim e ao cabo, redundam no mesmo e interminável livro de Musil, agora fasciculado. Outro indício é ele dizer, na sequência da mesma entrevista, que seus livros todos poderiam muito bem intitular-se, indiferentemente, ou A insustentável leveza do ser, ou Risíveis amores, ou A brincadeira, desde que giram sempre sobre as mesmas questões, variam sobre os mesmos temas e — acrescento eu — são um só.
18.12.13
A importância
O chefe
É diretor de uma grande indústria, tem mais de sessenta anos, levanta às seis horas, tanto no verão como no inverno, às sete já está na fábrica, onde permanece até às oito horas da noite ou mais. Mesmo aos domingos vai trabalhar, embora as oficinas e os escritórios estejam desertos. Mas vai uma hora mais tarde, o que considera quase um vício. É um homem essencialmente sério, raramente ri, nunca ri. No verão concede a si mesmo, mas nem sempre, uma semana de férias na casa à beira do lago. Não conhece nenhum tipo de fraqueza, não fuma, não toma café, não bebe, não lê romances. Não tolera fraquezas nem nos outros. Imagina-se importante. É importantíssimo. Diz coisas importantes. Tem amigos importantes. Só dá telefonemas importantes. Mesmo suas brincadeiras em família são muito importantes. Considera-se indispensável. É indispensável. O enterro será amanhã às 14:30 horas, saindo o féretro da casa do falecido.
BUZZATI, Dino. As noites difíceis. Trad. de Fulvia M. L. Moretto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 102.
10.12.13
9.12.13
“Vil e calamitoso mundo nosso”
CAPÍTULO CINCO
A cinco de novembro de 1718, que, para a época fixada, estava tão perto dos nove meses do calendário quanto qualquer marido teria podido razoavelmente esperar, -- eu, Tristram Shandy, Cavalheiro, fui trazido a este vil e calamitoso mundo nosso. ---- Gostaria antes de ter nascido na Lua, ou em qualquer dos planetas (exceto Júpiter ou Saturno, porque nunca pude suportar clima frio), pois não é de esperar fosse eu dar-me pior em qualquer um deles (embora não responda por Vênus) do que neste nosso vil e sujo planeta, -- o qual, em plena consciência e com a devida vênia se diga, julgo eu tenha sido feito dos frangalhos e aparas dos demais; ---- não que o planeta não sirva bem a quem nele possa ter nascido para herdar um grande título ou grandes propriedades; ou possa, de algum modo, dar um jeito de ser chamado a exercer cargos públicos e empregos aureolados de dignidade ou poder; -- este porém não é o meu caso; ---- e por isso cada um falará da feira de acordo com o que nela tiver vendido; ---- pelo que de novo afirmo ser este um dos mundos mais vis jamais feitos; -- pois posso verdadeiramente dizer que desde a primeira hora em que nele respirei até agora, em que mal posso respirá-lo por causa de uma asma apanhada por ter patinado contra o vento de Flandres; -- tenho sido contínuo joguete daquilo a que o mundo chama Fortuna; e conquanto não a difame dizendo que me tivesse feito algum dia sentir o peso de qualquer grande ou assinalado mal; ---- mesmo assim, com a melhor disposição do mundo, digo, dela, que em todos os estágios de minha existência, e a cada volta e esquina em que me podia favoravelmente tratar, essa descortês Duquesa castigou-me com uma série de lamentáveis infortúnios e acidentes adversos quais nenhum pequeno HERÓI jamais enfrentou.
STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução, introdução e notas de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 52.
6.12.13
Pessoas
Há pessoas que são ônibus-pra-Usina, isto é, pessoas que vemos partir com indiferença e atrás das quais ninguém corre. Outras, porém, são verdadeiros ônibus-pra-Barra, pessoas que até podemos perder, mas não antes dos esforços mais vexatórios e sem a frustração mais doída.
4.12.13
Elo desperdiçado
O romance realista do século XIX não apenas não é o romance, como talvez nem tenha sido tudo quanto este pôde e pode ser. Quem o alega é Milan Kundera. Paralelamente a Dickens, Balzac, Flaubert, Tolstoi e Dostoiévski, figuraria em segundo plano outra linhagem encabeçada por Rabelais, Cervantes, Fielding, Sterne e Diderot. Linhagem esta à qual pertenceria — fico pensando — Machado de Assis, que, se sai perdendo quando comparado aos primeiros (de onde a lenda do Machado de Assis que não sabia escrever romances, o Machado de Assis melhor contista do que romancista), nada fica devendo em liberdade aos segundos. Dessa outra perspectiva, o autor de Memórias Póstumas passa não só de “romancista defeituoso” a nobre continuador da vertente mais original do romance, como chega mesmo a ser, pela oposição ostensiva à quase obrigatória “ilusão de realidade” oitocentista, um antecipador do modernismo: Machado de Assis, por esse ângulo, teve ainda no século XIX e neste fim de mundo nosso uma concepção de literatura que os próprios europeus só vão retomar a sério, e recorrendo às mesmas fontes, nas décadas iniciais do século XX. Um verdadeiro elo desperdiçado.
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