Também ao que se passa no coração dos homens só se costuma ter acesso a seguir a algum desastre.
29.3.16
26.3.16
Da coerência
Vivemos às margens de uma cultura que já foi capaz de punir com a morte tentativas falhadas de suicídio.
24.3.16
Sade
Entre os muitos autores franceses aos quais Nietzsche vivia fazendo referência, não lembro de ter encontrado o nome do Marquês de Sade. Mas, concluindo-se a leitura de seu A filosofia na alcova, resta evidente que a “transvalorização de todos os valores” proposta pelo alemão teve nele um precursor. O livro em questão é, na prática, um catecismo invertido, um manual de valores cristãos revirados ao avesso. Um resumo possível das lições morais de Dolmancé à jovem Eugénie é o seguinte: tudo quanto o cristianismo elogia deve ser repudiado, assim como deve ser defendido tudo quanto o cristianismo combate. Com essa possível diferença: enquanto o francês o faz baseado na sua visão de natureza, Nietzsche o faz nalguma espécie de idealização da nobreza. Sade quer a inversão do que chama de preconceito moral cristão porque os homens não passam de animais; Nietzsche a vai querer, depois, porque talvez pudessem chegar a ser deuses. Em todo caso, ainda mais interessante do que essa inversão moral defendida por Dolmancé é o seu método argumentativo. No referido livro, Sade põe na boca do preceptor de Eugénie, a par do naturalismo mais consequente, argumentos de cunho eminentemente antropológico. Está certo que a moral deve basear-se de maneira positiva na natureza humana, e que toda e qualquer moral que vá de encontro aos seus impulsos é uma moral preconceituosa, baseada em superstições religiosas. Porém a forma encontrada por Dolmancé para certificar-se de que a condenação a determinados atos por parte do cristianismo — tais como o incesto, a homossexualidade, a poligamia — era arbitrária foi apontar sua aceitação nas culturas mais diversas, espalhadas tanto no tempo quanto no espaço: afinal, um ato não pode ser contrário à natureza humana se foi, ou ainda é, não apenas praticado como encorajado por essa ou aquela parcela da humanidade. Em Sade, o relativismo cultural apenas intuído por Montaigne aparece já, talvez pela primeira vez, como programa. O raciocínio que Montaigne faz com certa timidez, almejando quando muito uma defesa, ou compreensão, da moral indígena do Novo Mundo, Sade o faz em desafio ostensivo à moral europeia: “Por causa dessas diferenças puramente geográficas [e também temporais, já que são frequentes as menções à Antiguidade], pouco caso devemos fazer da aprovação ou do desprezo dos homens, sentimentos ridículos e frívolos acima dos quais nos devemos situar.”
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