Por mais que nem todas sejam tão impraticáveis como as nossas, os homens nunca foram plenamente capazes de se submeter às exigências sociais, fossem elas quais fossem. A perpetuação da vida em sociedade se deu apesar de todos os pesares e só se explica pela imensidão das incertezas de uma vida isolada. Viver em sociedade é um enorme prejuízo que afinal compensa. Além do mais, para todos os efeitos, tais exigências foram sempre sagradas, e de sua observância dependia a continuidade não só do grupo, mas inclusive do cosmo. As pessoas sempre só se obrigaram a viver como viveram porque achavam que, do contrário, o mundo retornaria ao caos. A nossa impossibilidade de submissão se sacramentou no dia em que descobrimos que o céu não desabava quando essas coisas eram negligenciadas sem arrependimento nem castigo. Além disso, não era sem razão a maior capacidade dos primeiros homens de cumprir o que lhes era exigido, por vezes sem a necessidade de polícia ou tribunal: fora a sacralidade dos costumes, diz o mito que tais homens existiram antes de se começarem as viagens, portanto antes do conhecimento de outros homens em nada semelhantes a eles. E esse é mesmo o único modo razoável de se exigir obediência a uma ordem social: ela se apresentando como a única, coisa que já toda a gente sabe que não é. Pode haver algo mais desmoralizador para uma cultura do que se ver ante a possibilidade plena de se viver de maneira completamente diversa? Por maior que tenha sido o esforço irracional e desesperado pela manutenção da exclusividade das culturas umas perante as outras, era simplesmente inevitável que mais cedo ou mais tarde se impusesse o descrédito gerado pelo contato inicial. Por que haveríamos de nos sacrificar nisso e naquilo se está claro que se trata de arbitrariedades?, se temos aqui diante de nós pessoas que sempre desconheceram tais exigências e nem por isso se extinguiram?
10.9.17
Semelhança
De acordo com fontes cristãs medievais (consigo pensar agora em Isidoro de Sevilha), uma imagem comum ao martírio dos santos e ao suplício dos hereges: o médico cirurgião que, fazendo violência contra o corpo do paciente, só lhe proporciona o bem. Muito mais recentemente, Thomas Szasz demonstra, em A fabricação da loucura, como, na passagem para a modernidade, a Psiquiatria herda tanto a função social como todo o modus operandi da Inquisição.
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