Porque não pode haver no mundo cretinice maior do que a daquela formiga, deixo após a versão de Bocage para o poema de La Fontaine duas respostas, das várias que, porventura existindo, eu desconheça.
A cigarra e a formiga
Tendo a cigarra em cantigasFolgado todo o verão,Achou-se em penúria extremaNa tormentosa estação.
Não lhe restando migalhaQue trincasse, a tagarelaFoi valer-se da formiga,Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,Pois tinha riqueza e brio,Algum grão com que manter-seTé voltar o aceso estio.
“Amiga, — diz a cigarra —Prometo, à fé d’animal,Pagar-vos antes de agostoOs juros e o principal.”
A formiga nunca empresta,Nunca dá, por isso junta.“No verão em que lidavas?”À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantavaNoite e dia, a toda a hora.— “Ó! Bravo! torna a formiga;Cantavas? Pois dança agora!”
Ao que responderam, em 59, o português Miguel Torga:
Fábula da Fábula
Era uma vezUma fábula famosa,AlimentíciaE moralizadora,Que, em verso e prosa,Toda a gente inteligente,PrudenteE sabedoraRepetiaAos filhos,Aos netosE aos bisnetos.À base duns insectos,De que não vale a pena fixar o nome,A fábula garantiaQue quem cantavaMorriaDe fome.E, realmente...Simplesmente,Enquanto a fábula contava,Um demónio secreto segredavaAo ouvido secretoDe cada criaturaQue quem não cantavaMorria de fartura.
e o italiano Eugenio Montale, em versos só publicados, postumamente, em 96, vertidos aqui por Ivo Barroso:
Qual a diferençaentre a cigarra e a formiga,entre o dissipador e o parcimonioso,se um e outro acabarão despidosno fim da viagem que a todosnos iguala? “Nem vencedor,nem vencido”, o dito popularserve decerto para assinalara mortal armadilha das escolhas.Como barcos quiséramos vogara plagas bem melhores, mas ficamosancorados ao nosso nada.
Discussão — já milenar, se se leva em conta que La Fontaine repetia Esopo — da qual eu destacaria duas coisas. A primeira delas: embora não tenha ajuntado, a cigarra não passou o verão coçando, como se diz. Esteve muito ativa: “... Eu cantava / Noite e dia, a toda hora.” — o “folgado”, logo do princípio, é coisa da cabeça de Bocage, não havendo no original (“La cigale, ayant chanté / Tout l’été”). A segunda, a convergência complementar. Se Torga aponta a morte em vida de muitos vivos (meras “bestas sadias”, que nos enchem o globo), Montale aponta para a morte da qual não escapará mesmo o mais providente.