18.6.12

João Ternura

Livro póstumo do mineiro-carioca (mais um) Aníbal Machado (1894-1964), só publicado em 65, João Ternura começa como um livro de José Lins do Rego: a infância na chácara paterna; as inundações do rio que a corta; a amizade com o negro Isaac, filho de uma das libertas da casa, de quem ele gosta mas abusa; o fascínio pelas mulatas; a paixão platônica das tias solteiras; o beijo furtivo na prima, meio perdida; o avô excêntrico, que se orgulha do atrevimento e o prognostica um novo Napoleão... 

Mas, enquanto muda a economia do país; enquanto, com isso, a família quebra e vende a chácara, chega esse João que dá nome ao livro à capital da conturbada república, — o que o torna algo que o romance nordestino, por maior que tenha sido, não pôde nos dar: um retrato da vida carioca.

Esse João Ternura, rei do pequeno mundo que era a propriedade do pai, no interior de Minas, aparece ao fim da adolescência no Rio de Janeiro. Não um Rio de Janeiro qualquer, mas o da Revolução de 30, da qual participa de modo cômico e todo próprio; o Rio de Janeiro do comunismo clandestino, cujas ações acompanha sem muita compreensão; o Rio de Janeiro dos discursos patéticos em praça pública e do trabalho à paisana da polícia ideológica; o Rio de Janeiro dos grã-finos (sempre bestas) e da gente do morro, entre os quais transita igualmente alheio; e, mais impressionante que tudo, o Rio de Janeiro do carnaval em todo seu esplendor catártico: narra Aníbal Machado, entre muitos outros episódios, o do indivíduo que, sem qualquer fantasia, se apresenta hieraticamente como Deus, despertando a fúria de uns poucos e a temerosa reverência da maioria, que passa a segui-lo pelos bairros do subúrbio...

Aparece nesse Rio de Janeiro — e naufraga. João Ternura é, assim, a história de um fracasso. A história de uma inadaptação. Inadaptação à nossa vida, já que estão lá nossos bairros, nossas ruas. Estão lá os tipos cujas sombras vemos até hoje, não obstante as mudanças. 

Especial, ainda, é a forma empregada. O livro dispensa a forma tradicional do gênero romance, uma vez que é todo ele feito de fragmentos agrupados em ordem perceptivelmente cronológica, mas ainda assim descontínua, sendo alguns deles, inclusive, bastante líricos. 

Quanto ao estilo, o primor se explica tanto pelas várias redações por que o livro passou ao longo dos anos, como pelo fato de Aníbal Machado ter escrito pouco. Segundo testemunho de escritores próximos, a história de João Ternura começou a ser escrita ainda na década de 20, logo se tornando, graças à propaganda entusiasmada daqueles para quem lia trechos, uma espécie de lenda. Tanta expectativa em torno de um projeto ainda embrionário, informe, acabou por intimidá-lo, travando-o. Só muito mais tarde, ao vê-lo já no esquecimento, é que o retoma, falecendo pouco depois de, tendo-o finalizado, encarregar da publicação o amigo Carlos Drummond de Andrade.