27.10.12

O sono

Consolo na praia

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Nada mais brasileiro que esse poema de Drummond. Nele, o poeta está desamparado, entregue aos elementos, “nu na areia, no vento”, e uma voz o consola: “Vamos, não chores...” E de que forma? Apontando as coisas boas em oposição às más, buscando convencê-lo de que as primeiras ultrapassam em número as segundas? Ou ainda, mais simplesmente, desviando seus olhos dessas últimas, assinalando qualquer outro bem que as compense? Quem sabe apelando sinceramente a uma resposta vinda dos céus, dada toda desesperança terrena, como aliás fez Murilo Mendes? Nada disso. A voz o consola alegando que, mesmo não havendo solução —  “A injustiça não se resolve” —, é isso aí, resta ainda qualquer coisa — um cão, o humour — e, afinal, a vida continua — outros mais virão, também com queixas. Essa voz, que por fim descobrimos ser uma voz maternal (que pai falaria assim com um filho?), conclui dizendo: “Tudo somado / devias precipitar-te, de vez, nas águas”. Tudo somado... Quando é precisamente o resultado dessa soma que ela quer impedir, recomendando-lhe, após umas reticências que são um convite à desconsideração do previamente dito, o sono: “Dorme, meu filho”. Esquece. — Não é que o brasileiro, com o poeta, não enxergue a realidade, incômoda o mais das vezes. Não é que o brasileiro goste de se enganar. Não é que persevere, a espera de uma intervenção divina. É mais que o brasileiro evite a todo o custo tirar do que vê as devidas conclusões, as quais o obrigariam a uma tomada de posição. É mais que ele prefira a inércia, só conseguida nesse caso com o amortecimento da consciência. Com o sono. (À parte isso, que grande verso é o: “À sombra do mundo errado”, digno de figurar como título do mais belo e triste livro jamais escrito.)