Às vezes passam por mim uns senhores circunspectos não muito alinhados, mais contidos no gesto, porém, que a média, a barba cerrada e basta, os óculos de armação grossa, e recebo deles um olhar ao mesmo tempo cúmplice e apaziguado, de quem finalmente parte mas não sem antes deixar representante.
29.9.13
21.9.13
Lapso
São já duas senhorinhas feiíssimas jamais vistas pela Conde de Bonfim senão em dupla, trombando lateralmente uma na outra, tamanha a proximidade em que andam. Tão iguais, que até os dentes que faltam são os mesmos...
Eu me pergunto: que outro lugar do mundo ostentará caso tão singular de xifopagia, em que os gêmeos, nascidos por um triste equívoco anatomicamente separados, desfizeram de forma voluntária o lapso genético?
17.9.13
Espanto
As pessoas correm para o elevador que se fecha com um ímpeto que eu talvez não igualasse nem fugindo à morte.
15.9.13
Triunfo
Seja ele qual for (o corpo definido e tatuado, o cabelo vermelho da mulher, o carro mais valioso que muito apartamento, o sistema de som só avaliável em escala Richter, o cachorro com seu certificado de pureza), convém não deixar demasiado óbvio a quem vê que se está levando a passear pelas ruas, como numa volta olímpica, justo seu maior tesouro, seu muitas vezes único e solitário motivo de orgulho, espécie de troféu que, de momento, lhe justifica a existência, miserável (quem não sabe?) apesar de tudo.
Português
Lá para as tantas, Miguel Torga chama o português a “língua de que o diabo ainda se serve para falar à avó”. Ainda, porque as demais já lá se foram, finalmente libertas ou mesmo nunca confinadas ao influxo inquisitorial contrarreformista das origens. E para as conversas dele com a avó, que é com quem não se fala senão das coisas de sempre, e com o máximo de circunlóquios possível, não vá a velha melindrar-se.
14.9.13
Encontro
Adquire-se o último livro com a ânsia de quem aguarda o encontro definitivo ao fim do próximo minuto.
10.9.13
9.9.13
Irrelevante
As democracias ocidentais, semelhantemente a qualquer outro regime político, só toleram a liberdade do que, não tendo a mínima importância, não ofereça à ordem risco algum, como por exemplo a de culto, a de voto, a de opinião.
6.9.13
Confiança
Confiante o suficiente para julgar-se imbatível. Inseguro o bastante para ter de prová-lo.
5.9.13
Luizão
Uma das grandes figuras da minha infância foi um louco manso, alvo tanto da consideração como do temor da vizinhança. Era um nêgo enorme e forte, do tipo que, contrariado ou sem os remédios, devia ser incontrolável. Andava sempre descalço, boa parte das vezes sem camisa, as mãos abrindo e fechando em espasmos, os dedos contorcidos — os dos pés, duas lanchas, eram encavalados, espremidos um por cima do outro. Lembro de vê-lo achegar-se aos adultos, sempre educado: “Coisinha (era assim que tratava a todos), me dá um cigarro?” Ia nas pessoas do costume, na certeza de ser atendido. E assim que os conseguia, continuava: “Eu estou melhorando, não estou? Eu estou ficando melhor, você não acha?” Ao que as pessoas respondiam, culpadas de não terem consigo a solução: “Está, sim, Luizão, você está ótimo. Está muito bem.” Ele então acendia o cigarro no isqueiro da pessoa abordada (quantas vezes o meu pai), virava-lhe as costas e prosseguia a esmo pelas ruas do bairro, os braços junto ao corpo teso, a cabeça levemente inclinada para frente, tragando a intervalos não sem alguma ansiedade.
4.9.13
Guerra
Gregório de Matos não publicou nenhum livro em vida e simplesmente não deixou nenhum autógrafo. Diz-se que seus poemas circularam, originalmente, em folhas avulsas, as quais porém nenhum de seus compiladores jamais viu. Em resumo: a poesia de Gregório de Matos é hoje a poesia que a gente depois dele disse que era a poesia de Gregório de Matos. A verdade verdadeira é que ninguém sabe nem tem como saber. Para piorar (ou melhorar), reza inclusive a lenda que houve quem mandasse abrir cadernos em determinadas localidades para que todo aquele que conhecesse de cor algum poema de Gregório fosse lá e o transcrevesse. O que significa que Gregório de Matos é uma etiqueta; que Gregório de Matos é um guarda-chuva sob o qual se abrigam, possivelmente, todas as modalidades de poesia barroca praticadas na Bahia do século XVII.
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