9.1.14

Melquisedeque

Para uma apreciação melhor do poema a seguir, do português Ruy Belo, acaba indispensável o conhecimento do breve episódio envolvendo Abraão e o misterioso rei da não menos misteriosa Salém, encontrado em Gênesis 14:17-24. Melquisedeque, de quem se sabe apenas que, além de rei, era sacerdote do Deus Altíssimo, surge do nada, abençoa Abraão, recebe dele o dízimo, e depois volta ao nada, desaparecendo da história bíblica, para a qual retorna só na Carta aos Hebreus (cap. 7), numa leitura já cristã do Antigo Testamento, quando é tomado por “figura” do Messias e descrito como alguém “sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias nem fim de existência.” De onde a inveja do poeta: a inveja de não ter que lidar, como aquele não teve, com os muitos dias escoando inutilmente (a incontornável insatisfação com o presente) por entre os dedos, até a chegada do fim.
Saudades de Melquisedeque
Esta manhã gostaria de ter dado ontem
um grande passeio àquela praia
onde ontem por sinal passei o dia
É difícil a vida dos homens senhor
Os anjos tinham outras possibilidades
e alguns deles foi o que tu sabes
Esta terra não está feita para nós
Mesmo que ela fosse diferente
nós quereríamos talvez outra terra
talvez esta de que agora dispomos
Não achas meu senhor que temos braços a mais
dias a mais complicações a mais?
Pra nascer e morrer seria necessário tanto?
Falhamos tantas vezes (Como os judeus que juraram
não comer nem beber até matar paulo
e apesar disso não o mataram)
É difícil a vida difícil a morte.
Por vezes os homens juntam-se todos
ou quase todos e organizam
grandes manifestações. Mas nada disso os dispensa
da grande solidão da morte
de termos de morrer cada um por nossa conta
Todos tivemos pai e mãe
nenhum de nós que eu saiba veio de salém