26.12.14

Espelinho da propaganda

É de conhecimento geral que os primeiros negócios entre nativos americanos e europeus se deram na base da troca, tanto de simpatias quanto de víveres por toda sorte de pequenos utensílios. Quem, aliás, nunca ouviu referência depreciativa aos índios, que se teriam vendido por meros colares?... Mas, meditando sobre os testemunhos dessas transações, é possível perceber que havia por trás delas mais do que o mero deslumbre pueril com o novo. Jean de Léry, por exemplo, nos faz saber que o interesse dos índios era significativamente utilitário. Eles dispunham-se a conceder o que os europeus solicitavam mas em troca de algo que lhes facilitasse a vida. Isto é, os objetos aceitos como pagamento eram aqueles que faziam melhor aquilo que os índios já faziam com artefatos por acaso menos eficazes. Segundo o francês, os tupinambás tinham as pinças em altíssima conta, e isso porque, como também nos informa, eles mantinham o hábito de arrancar todos os pelos do corpo, mesmo cílios e sobrancelhas. Ora, nada melhor para essa tarefa, então feita com a folha de determinada planta, do que as pinças, por isso muito apreciadas. Mais adiante Léry comenta o valor que os índios davam às facas, de grande ajuda nos frequentes sacrifícios rituais de prisioneiros de guerra: mais uma vez, não é difícil imaginar quão menos trabalhoso retalhar um homem com o auxílio do metal afiado havia se tornado — essa mesma observação podendo ser feita a respeito das espingardas em relação aos arcos e flechas etc. E foi pensando nesse uso conveniente do novo que me pareceu pertinente reavaliar a imagem pejorativa que se faz da parte indígena nesse comércio. Porque os índios não se deixavam guiar pelas novidades em si, nem permitiam que elas criassem necessidades novas e desnecessárias, digamos assim, mas antes se apropriavam das novas ferramentas sempre em função de demandas pré-existentes. Estavam, pois, definitivamente longe de ser os tolos enfeitiçados pelo brilho, os tolos do juízo injusto que fazemos. E nisso talvez tenham exercitado postura mesmo superior à que nós, modernos, apresentamos hoje, — nós sim à mercê de qualquer lançamento, nós sim adquirindo primeiro pra buscar depois alguma utilidade, nós sim entregues a qualquer espelhinho da propaganda e do marketing.