Uma das maiores diversões que a leitura de Eliade proporciona é a de tornar possível a quem o lê a identificação no homem hipercivilizado do Ocidente e suas margens, em meio a tanta pretensão de superior racionalidade, a permanência daqueles mesmos hábitos mentais que eles só poderiam considerar supersticiosos e desprezar como primitivos. E isso porque acabo de topar com esse trecho dos Comentários Reais, crônica seiscentista da realidade nativa do Peru pré-colombiano, onde o autor descreve a postura dos índios peruanos com relação a tudo que dizia respeito à cidade de Cusco, capital do império Inca, — postura na qual fica muito reconhecível a da boa gente brasileira, bastando que se troque Cusco por uma e outra capital europeia:
Era de tal maneira sua adoração [por Cusco], que a demonstravam mesmo nas menores coisas: se dois índios de igual condição se encontravam no caminho, um deixando a cidade e o outro chegando até ela, o que a estava deixando era respeitado e acatado pelo que estava chegando como o superior o é pelo inferior, e isso apenas por ter estado na cidade, quanto mais se vivesse próximo a ela, ou mesmo se dela fosse natural. De igual modo se dava com as sementes e os legumes, ou qualquer outra coisa que levassem de Cusco a qualquer outro lugar; porque, mesmo que não se avantajasse em qualidade, só por ser daquela cidade era mais estimado que os de outras regiões e províncias.