8.8.16

Sobreviver

Canetti chama a atenção para o fato de que, segundo seus respectivos mitos, um número muito significativo de povos alega descender de sobreviventes, seja de uma guerra, seja de uma catástrofe natural, seja de uma doença. Por exemplo, segundo os judeus, a humanidade descende da família de Noé, sobrevivente de um dilúvio; segundo Virgílio, os romanos descendem de Eneias e outros sobreviventes da guerra de Troia; os kutenai — nativos do continente norte-americano —, por sua vez, têm como ancestrais os poucos sobreviventes de uma epidemia, e assim por diante. E não se furta de lembrar, mas muito a sério, que cada indivíduo é, pelo simples ato da concepção, um sobrevivente entre milhões. De modo que sobreviver é, para Canetti, o sentido fundamental da existência — a vontade de poder nietzschiana, o instinto de autopreservação dos naturalistas e sei lá mais o quê: para ele, tudo seria mais plenamente compreendido pela mera vontade de fazer-se o único a permanecer com vida sobre uma pilha de cadáveres.