Passei quase toda a minha vida sem conhecer o sentido daquela que é uma de minhas memórias mais antigas, sem nem desconfiar do que poderia ter acontecido aquele dia, em que saímos de casa para uma festa e voltamos de um velório. Sei que íamos eufóricos. Pelo caminho, todas as ruas estavam decoradas e cheias de gente que gritava, acenava, soltava fogos. Chegados ao destino — uma vila, na qual uma pequena multidão de pessoas mais ou menos familiares umas às outras se confraternizavam no que só podia ser um churrasco —, fiquei todo o tempo correndo com as outras crianças, como sempre desatento ao que se passava. E tudo corria bem até que, quando dei por mim, vi na cara dos adultos que alguns haviam chorado. Notei de repente que a música também já não existia, e que as pessoas que antes só se falavam aos berros agora estavam caladas. Os poucos que ainda falavam, falavam muito baixo, e já ninguém ousava se encarar. Sei que fomos nos despedir com o abraço apertado dos pêsames. Também eu assim fazia, decorosamente, mas sem a menor ideia de por quê. As pessoas se consolavam, se diziam que tudo ia ficar bem. Na volta para casa, as mesmas ruas agora estavam desertas. Já não se via ninguém, nem cães vadios. Poucas vezes antes ou depois tive a incômoda experiência de estar no único carro que vaga silencioso pelas ruas. Sentia-se no ar que algo de muito grave tinha acontecido. Algo que eu, em todo caso — ou porque quiseram me preservar, ou porque fui incapaz de compreender —, sempre ignorei. E assim eu cresci, acompanhado pela sombra desse dia. Até que, já adulto, uns vinte e poucos anos mais tarde, assistindo desatento a um telejornal qualquer, me vejo informado sobre os efeitos da tragédia que se abateu sobre o Brasil na tarde de 24 de junho de 1990, quando, nas oitavas de final da Copa da Itália, fomos eliminados pela Argentina. Eu tinha então cinco anos.
24.11.16
13.11.16
Problema
O problema nem foi terem levado todo o ouro. O problema foi terem trazido os prejuízos de o não ter.
Irreversível
Regula Emblematica Sancti Benedicti, 1780. |
A ideia de honra esteve sempre muito relacionada à irreversibilidade dos meios com os quais se vivia. Uma palavra ouvida nunca pôde voltar a não ter sido pronunciada, nem um gesto testemunhado chegou alguma vez a ser desfeito; tampouco era possível ignorar a marca feita em uma pedra, ou apagar a tinta lançada sobre um material poroso. Hoje, porém, a rede permite que tudo seja editado, ou mesmo excluído. Mas, como precisamos manter as coisas como elas sempre foram, eis que fizeram o print, o histórico de alterações. Tudo precisa continuar definitivo, mesmo podendo já não ser. Aliás, não é por acaso que um dia do juízo seja a grande expectativa de religiões constituídas justamente em torno de livros — essa grande ferramenta de perpetuação das coisas humanas —, e que esse grande dia seja compreendido como o dia em que todos os atos e palavras dos homens serão lidos publicamente.
10.11.16
Opção
A qualidade do banquete muitas vezes compensa toda uma vida de migalhas. Comia-se muito melhor na escravidão do Egito do que na liberdade do deserto.
Mérito
O maior mérito do cristianismo — aquilo que o distingue para melhor de religiões em tudo o mais idênticas — é a capacidade de ostentar como vitórias do cristianismo as consequências mais irreversíveis das grandes derrotas do cristianismo. Assim, retrospectivamente, houve sempre ao menos um herói cristão a vencer batalhas contra o próprio cristianismo. E um novo verdadeiro cristianismo nunca deixou de sair vitorioso das derrotas de qualquer velho cristianismo verdadeiro.
Diferença
Como o esquerdismo sabe inconscientemente que é o Mal, seus agentes precisam se fazer passar por anjos de luz. Já na direita, dona de ideias tão indispensáveis, ninguém precisa deixar de ser o cretino mais ostensivo pra se tornar alguém digno de crédito.
9.11.16
Inutilidade
A inutilidade dos gestos alheios, diante da qual não apenas não desconfiaram da inutilidade dos próprios gestos, da inutilidade de todos os gestos, como conseguiram ainda os considerar fundamentais: então falta sentido a todos os gestos que não são os nossos... De onde a generosidade com que empenharam a vida a se fazerem imitados.
Apaziguador
O grande apaziguador de consciências terá como missão garantir que a superioridade do Ocidente resta quando menos em haver entre os ocidentais aqueles que se considerem os mais abjetos entre os homens. E que para a importância dos outros falta ainda quem a questione. E que ter inventado a culpa já redime de tê-la sempre em grande escala.
Assinar:
Postagens (Atom)