24.11.16

Memória

Passei quase toda a minha vida sem conhecer o sentido daquela que é uma de minhas memórias mais antigas, sem nem desconfiar do que poderia ter acontecido aquele dia, em que saímos de casa para uma festa e voltamos de um velório. Sei que íamos eufóricos. Pelo caminho, todas as ruas estavam decoradas e cheias de gente que gritava, acenava, soltava fogos. Chegados ao destino — uma vila, na qual uma pequena multidão de pessoas mais ou menos familiares umas às outras se confraternizavam no que só podia ser um churrasco —, fiquei todo o tempo correndo com as outras crianças, como sempre desatento ao que se passava. E tudo corria bem até que, quando dei por mim, vi na cara dos adultos que alguns haviam chorado. Notei de repente que a música também já não existia, e que as pessoas que antes só se falavam aos berros agora estavam caladas. Os poucos que ainda falavam, falavam muito baixo, e já ninguém ousava se encarar. Sei que fomos nos despedir com o abraço apertado dos pêsames. Também eu assim fazia, decorosamente, mas sem a menor ideia de por quê. As pessoas se consolavam, se diziam que tudo ia ficar bem. Na volta para casa, as mesmas ruas agora estavam desertas. Já não se via ninguém, nem cães vadios. Poucas vezes antes ou depois tive a incômoda experiência de estar no único carro que vaga silencioso pelas ruas. Sentia-se no ar que algo de muito grave tinha acontecido. Algo que eu, em todo caso — ou porque quiseram me preservar, ou porque fui incapaz de compreender —, sempre ignorei. E assim eu cresci, acompanhado pela sombra desse dia. Até que, já adulto, uns vinte e poucos anos mais tarde, assistindo desatento a um telejornal qualquer, me vejo informado sobre os efeitos da tragédia que se abateu sobre o Brasil na tarde de 24 de junho de 1990, quando, nas oitavas de final da Copa da Itália, fomos eliminados pela Argentina. Eu tinha então cinco anos.