2.5.20

O sofá, Crébillon Fils

As Mil e Uma Noites deviam ter acabado de chegar, de modo que a grande moda literária era o orientalismo: escritores franceses satirizando a vida na França por meio de histórias passadas na Pérsia, na Índia, na Babilônia. Outra tendência filosófica e literária da época era a libertinagem. O sofá, de Crébillon Fils, é uma junção das duas. Um sultão muçulmano, homem de bem poucos méritos cujo único interesse real na vida são os contos (era maravilhosamente considerado o maior conhecedor que já houve de acontecimentos jamais ocorridos), elege um servidor hindu para que lhe conte novas histórias. Este começa dizendo que uma das crenças fundamentais de sua religião é a transmigração das almas, razão por que ele anteriormente havia sido, em decorrência de uma existência mal vivida, um sofá. Quer dizer, não apenas um, já que sua alma podia passar de um sofá para outro, o que lhe concedia certa mobilidade. A partir daí esse servo, de nome Amanzei, começa a narrar tudo aquilo que, em diversas alcovas, testemunhou acontecer sobre si. Apesar da leviandade aparente do tema, a leitura não chega a ser das mais fáceis muito porque a prática amorosa do período era muito complicada e envolvia uma série de dificuldades para nós bastante incompreensíveis (nessas horas dá muito para entender como do meio daquele emaranhado todo brota um Sade), além de que, por isso mesmo, todas as narrativas são feitas na base da mais sutil alusão, de modo que é quase como estarmos o tempo inteiro olhando para um quadro cujo interesse é deixado pelo pintor fora da tela (até por isso nada faz menos justiça ao livro do que as capas das duas edições lançadas pela L&PM, absolutamente inapropriadas). Porém, uma coisa que a meu ver acabou mais relevante do que as próprias histórias contadas pelo antigo Sofá, pelo menos para nós que não temos mais a vida sexual assim tão codificada, é o fato de essas histórias, no livro, serem narradas para o sultão e a sultana, que tomam diversas vezes a liberdade de interromper Amanzei para comentar ou discutir situações e diálogos, expondo incredulidade, dúvida, por vezes a mais pura insatisfação. Por que os contos não podiam ser feitos só de coisas interessantes, o sultão pergunta. Porque para que algo seja interessante é preciso ser precedido de muita coisa banal, responde a sultana. As intromissões impertinentes do sultão viraram por acaso esses momentos de interesse. Diante delas, o narrador negocia, insiste, cede, ignora. Alega que teria prazer em modificar a história para o maior agrado do sultão, não fosse o compromisso com o que viu e ouviu, etc. Mais até do que serem histórias narradas desde a perspectiva inusitada de um sofá, são essas pequenas discussões metanarrativas a verdadeira graça que o livro não perdeu (ou adquiriu) com o tempo, e que justamente inserem Crébillon na linha tão pouco ortodoxa de outros narradores do mesmo século XVIII, período que viu alguns dos romances menos convencionais de sempre, a começar pelo Tristram Shandy do Sterne, o pai de todos, mas também o Jacques do Diderot e a viagem do Xavier de Maistre ao redor do quarto.