9.5.20

Viagens de Gulliver, Jonathan Swift





















A rigor, o que são algumas das obras mais influentes da literatura (o Dom Quixote, o Tristram Shandy, o Lemuel Gulliver, entre outras), senão piadas que os autores acharam tão boas que levaram o mais longe que puderam? Piadas que os leitores começam a ler à gargalhada e, só ao irem percebendo que não acabam, passam a ficar meio aflitos, contando as páginas que faltam pelo menos para o fim do capítulo? Um Tristram Shandy não pode ser recontado sem deixar de existir, por outro lado é muito compreensível que se tenha o hábito de fazer adaptações infantis de livros tão cheios de interesse, mas completamente desmedidos como os de Cervantes e de Swift. Outra aproximação entre eles se deve a que as viagens de Gulliver estão para os livros de viagem marítima dos séculos XVI e XVII como as desventuras do Quixote estavam para as novelas de cavalaria que o precederam: duas grandes zoações/homenagens, escritas por leitores familiarizados com o gênero. Porque, além de brincar com a inclinação desses viajantes ao exagero e mesmo à invenção pura, há no fundo da obra certo relativismo decorrente do contato com as notícias etnográficas trazidas por esses textos. Em termos filosóficos, todos os episódios, por levianos ou engraçados que pareçam, propõem uma relativização cultural muito séria, o que em Swift não apenas não ameniza a intransigência contra seus conterrâneos, como a acentua: Gulliver volta do impronunciável país dos Houyhnhnms, cuja existência consiste na inversão de perspectiva entre as espécies humana e animal, sem sequer tolerar o aspecto e o cheiro da própria família, dos ingleses em geral. Outra fonte desse perspectivismo, em Swift, é de natureza científica: Gulliver é um médico, um cirurgião, e fica evidente na origem de algumas ideias — principalmente nas duas primeiras partes do livro, que se espelham, e também na terceira, com o pendor astronômico dos laputianos — a influência dos instrumentos ópticos (microscópios, telescópios), que então devem ter sofrido aperfeiçoamentos significativos. Porém, de todas as características do livro, talvez a mais considerável seja o começo, ali, da gratuidade que algumas vezes a imaginação de Swift alcança, isentando-se do compromisso da sátira alegórica com a realidade do autor. Embora Swift estivesse ainda preso a esse esquema, tão caro ao modo de pensar do século XVII, e ainda estivesse muito longe de uma imaginação plenamente liberta e aleatória como a de um Lewis Carroll, há vários lances em que o satirista cochila e a imaginação se diverte sozinha, imaginando absurdos só pelo prazer de imaginá-los. É justamente esse o aspecto mais fácil da obra, o aspecto que chegou a nós em tantos filmes de Sessão da Tarde envolvendo pessoas encolhidas ou agigantadas e bichos falantes.