Quanto bem não faz uma catástrofe. O jornal de hoje, por exemplo, tem o triplo da espessura do de ontem.
31.10.12
Impressão
Sempre me fica a impressão de que, no fundo, quem vende livros acha um belo de um trouxa quem os compra.
Comércio
Quanto à cultura, o brasileiro é aquele homem que quer enriquecer pelo comércio, começando por se livrar da herança.
Democracia
O espírito democrático na literatura americana: em Whitman, com o homem igual a todo homem; em Melville, com o heroísmo trágico dos párias; em Faulkner, com um mesmo episódio segundo as incertezas de cada personagem.
Pergunta
Publicada a correspondência entre Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, dando ainda mais motivos para a pergunta sobre a quem Mário de Andrade não terá escrito. Se bem que exista uma possível resposta: alguém dizia numa entrevista — acho que o Secchin — que João Cabral se queixava justamente de ter sido o único poeta/escritor iniciante a cujas cartas Mário não havia respondido...
A história do regresso
Bem ao contrário de nós, que vamos deixando o passado para trás, tendo pela frente todo um hipotético futuro, — e não sem certa razão, se pensamos duas vezes —, os tuvanos, povo de origem turca que habita alguma parte do que hoje é a Rússia, falam uma língua em que este fica às costas de quem vive, uma vez (dizem) que é ignorado, enquanto aquele fica à frente, já que está sempre ante os olhos da memória. De modo que, pra eles, “seguir adiante” é deter-se no passado, tanto quanto “voltar atrás”, dedicar-se ao futuro.
29.10.12
Desinformação
Ou nos comunicam alarmados mais um passo dado rumo ao fim do mundo, cada vez mais próximo, ou então nos denunciam a amplificação politiqueira de fatos que, em todo caso, ficaremos sem saber.
27.10.12
O sono
Consolo na praia
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
Nada mais brasileiro que esse poema de Drummond. Nele, o poeta está desamparado, entregue aos elementos, “nu na areia, no vento”, e uma voz o consola: “Vamos, não chores...” E de que forma? Apontando as coisas boas em oposição às más, buscando convencê-lo de que as primeiras ultrapassam em número as segundas? Ou ainda, mais simplesmente, desviando seus olhos dessas últimas, assinalando qualquer outro bem que as compense? Quem sabe apelando sinceramente a uma resposta vinda dos céus, dada toda desesperança terrena, como aliás fez Murilo Mendes? Nada disso. A voz o consola alegando que, mesmo não havendo solução — “A injustiça não se resolve” —, é isso aí, resta ainda qualquer coisa — um cão, o humour — e, afinal, a vida continua — outros mais virão, também com queixas. Essa voz, que por fim descobrimos ser uma voz maternal (que pai falaria assim com um filho?), conclui dizendo: “Tudo somado / devias precipitar-te, de vez, nas águas”. Tudo somado... Quando é precisamente o resultado dessa soma que ela quer impedir, recomendando-lhe, após umas reticências que são um convite à desconsideração do previamente dito, o sono: “Dorme, meu filho”. Esquece. — Não é que o brasileiro, com o poeta, não enxergue a realidade, incômoda o mais das vezes. Não é que o brasileiro goste de se enganar. Não é que persevere, a espera de uma intervenção divina. É mais que o brasileiro evite a todo o custo tirar do que vê as devidas conclusões, as quais o obrigariam a uma tomada de posição. É mais que ele prefira a inércia, só conseguida nesse caso com o amortecimento da consciência. Com o sono. (À parte isso, que grande verso é o: “À sombra do mundo errado”, digno de figurar como título do mais belo e triste livro jamais escrito.)
24.10.12
Fama
O responsável pela fama diabólica adquirida pelos gatos durante a Idade Média foi o modo como sempre reagiram aos banhos de água benta.
23.10.12
22.10.12
18.10.12
Homenagem
Nuper erat medicus, nunc est vespillo Diaulus.
Quod vespillo facit, fecerat et medicus.
Diaulus, que até ontem era médico, hoje é coveiro.
E quanto faz hoje o coveiro já ontem o médico fazia.
— Martialis, Liber I, XLVIII.
Quod vespillo facit, fecerat et medicus.
Diaulus, que até ontem era médico, hoje é coveiro.
E quanto faz hoje o coveiro já ontem o médico fazia.
— Martialis, Liber I, XLVIII.
Cume
O Flamengo é o cume do futebol sul-americano, estando numa altura tão elevada, que o ar rarefeito até os impede de correr, coitados.
Mistério
O problema com o baixíssimo rendimento de alguns jogadores que passam pelo Flamengo — quando fica descartada a primeira de todas as hipóteses, que é a da mais irremediável ruindade — é que a gente já não sabe distinguir entre aquele provocado pelo peso da camisa e aquele devido à mera falta de pagamento.
17.10.12
14.10.12
Jesus, Maria, José
O time que não ganha em casa de outro treinado pelo Celso Roth é porque não ganha de mais nenhum. Mas o pior é que o Flamengo nem está assim tão ruim pra que se possa esperar por melhoras. Estamos visivelmente no limite, todos correndo o quanto podem, o que no caso de alguns é nada. É isso ou é isso, até o fim, pra desespero nosso.
13.10.12
Ecos
Terá Mário de Andrade conhecido o perspectivismo de Ortega y Gasset? Melhorando a pergunta, terá Mário de Andrade lido as Meditações do Quixote, publicadas em 1914? Isso me pergunto pois não apenas encontro no trecho da carta a Drummond ecos do famoso “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo a mim”, como a variação de um mesmo argumento, qual seja, o do enriquecimento da cultura geral por parte de um povo a partir da confirmação da própria. Nela, diz Mário que “O dia em que nós formos inteiramente brasileiros”, isto é, o dia em que nos relacionarmos integralmente com nossas “necessidades imediatas práticas e espirituais”, sem tomarmos de empréstimo as de outros, a “humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas.” O que uns dez anos antes Ortega, tratando do caso espanhol, agravado já pelo particularismo nacionalista de bascos e catalães, no capítulo “A crítica como patriotismo”, disse dessa forma:
Olvidamos que toda raça é, afinal, um ensaio para viver de maneira nova, experimento de nova sensibilidade. Quando a raça consegue desenvolver plenamente suas energias peculiares, o orbe se enriquece de modo incalculável: a nova sensibilidade suscita outros usos e instituições, outra arquitetura e outra poesia, outras ciências e outras aspirações, outros sentimentos e outra religião. Pelo contrário, quando uma raça fracassa, toda essa possível novidade e aumento ficam irremediavelmente nonatos, porque a sensibilidade que os cria é intransferível. Um povo é um estilo de vida e, como tal, consiste em certa modulação simples e diferencial que vai organizando a matéria em torno. Causas exteriores desviam de sua trajetória ideal este movimento de organização criadora em que se vai desenvolvendo o estilo de um povo e o resultado é o mais monstruoso e lamentável possível. Cada passo à frente nesse desvio soterra e oprime ainda mais a intenção original, envolvendo-a numa crosta morta de produtos fracassados, toscos e insuficientes. A cada dia é esse povo menos o que deveria ter sido.
9.10.12
Memória
A memória acredita antes que o conhecimento recorde. Acredita mais tempo do que recorda, mais do que o conhecimento pode imaginar.
— William Faulkner, Luz em agosto.
— William Faulkner, Luz em agosto.
Abstração
Um homem que não é daqui ou dali, desta ou de outra época, que não tem sexo nem pátria — uma ideia, enfim. Isto é, um não-homem.
— Miguel de Unamuno, logo na abertura de Do sentimento trágico da vida, de 1913, em capítulo intitulado, não por acaso, “O homem de carne e osso”.
8.10.12
Ajuda
Se há uma coisa que me incomoda na ideia de uma outra vida, num céu ou num inferno, é o fato de que ela prolongaria a desigualdade entre os homens para além da morte, que serve justamente para igualá-los. Antes do predomínio da crença numa recompensa divina dada nesses termos, a esperança dos homens ante as injustiças do mundo fundamentava-se em que, na cova, já não há rei nem súdito, servo nem senhor, rico nem pobre. Mais tarde, entra em jogo com o cristianismo uma espécie de inversão, ainda aceitável, na qual o grande sofre no outro mundo a dor que permitiu ou infligiu ao pobre, enquanto este goza finalmente do consolo que não recebeu daquele — o episódio entre Lázaro e o rico, por exemplo —, ficando elas por elas. Com o tempo, porém, cai a inversão proporcionada pela interdição à riqueza, podendo a gente agora ser grande nessa vida como na outra, ou viver miseravelmente aqui como lá, — o que não ajuda.
7.10.12
“Camisa apertada”
É fácil condenar uma vida
de fora, sem ter que vesti-la
— João Cabral, em Agrestes, sobre a de Camilo Castelo Branco.
de fora, sem ter que vesti-la
— João Cabral, em Agrestes, sobre a de Camilo Castelo Branco.
4.10.12
Índole
O futebol é tão parte da índole do brasileiro, que nem no campo das ideias ele resiste a um chute.
3.10.12
Tipologia
Os brasileiros se dividem entre os que não desperdiçam ocasião de um ganho ilícito — e os medrosos.
2.10.12
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