A intenção é o horizonte
mas a linha que se alcança
é a do papel, por mais
que force a vista, a mão.
No meio, porém, o mar não pára
tendo como pé-direito, o céu.
(Armando Freitas Filho)
30.11.13
Laus mortis
Ali, cessam os maus de atormentar,
e ali repousam todos os cansados.
Ali, descansam os presos juntamente,
sem que se ouça a voz do carcereiro.
Ali, tanto o pequeno como o grande
está, e o servo livre de tormento.
(Jó 3.17-19)
e ali repousam todos os cansados.
Ali, descansam os presos juntamente,
sem que se ouça a voz do carcereiro.
Ali, tanto o pequeno como o grande
está, e o servo livre de tormento.
(Jó 3.17-19)
29.11.13
Recorrências
Pelo até agora visto, recorrências ficcionais de Kundera: médicos e enfermeiras; piscinas ao redor das quais parte significativa da trama se desenrola; saunas; estações de águas; maridos que amam as mulheres com quem têm casamentos miseráveis enquanto as traem com todas as outras e se odeiam por isso; gente olhando fixamente um ponto distante sem saber o que fazer; gente deixando e retornando à Praga natal; música.
27.11.13
Artifício
Sempre que um escritor diz: “A literatura é isso ou aquilo”, eu leio: “Boa mesmo é a literatura que eu faço.”
Solidariedade
Todas as solidariedades já foram desmascaradas, menos uma: a entre os que fumam. Se Jesus aparecesse e de novo lhe perguntassem: “Quem é o nosso próximo?”, ele responderia: “O fumante sem isqueiro.” Em verdade vos digo que o mundo já pode negar comida ao faminto, água ao sedento, esmola ao miserável — mas ai daquele que não acende o cigarro a um desconhecido.
21.11.13
“Modernismo antimoderno”
Milan Kundera tem lá seu aspecto conservador, quase reacionário. Não oculta de ninguém sua romântica nostalgia de um mundo sem o barulho e a velocidade de veículos automotores, em que a vigilância institucional não tenha sido tão inescapável, mundo esse anterior à morte da música pelo rock e ao risco de ter-se o anonimato violado por órgãos de imprensa — que não diria dos celulares com câmera e das redes sociais? Em outras matérias, porém, mais relacionadas à existência humana, aos dramas do indivíduo, é tão moderno, atual, quanto possível. Todas as suas preocupações parecem partir da premissa de que já não se pode crer em nada. E parecem girar em torno de um único questionamento, a saber: uma vez que o século XX nos mostrou a indecência de todas as grandes causas, que fazemos nós dessa vidinha vazia e sem qualquer sentido? De onde sua galeria de personagens, sempre oscilando entre as angústias geradas pela leveza do ser e a vulgaridade sexual mais elementar, espécie de jogo que lhes resta.
16.11.13
Vício
Vício mais recentemente adquirido: Milan Kundera. Nada menos que o quarto ou quinto livro do escritor tcheco em sequência quase ininterrupta.
Sequência começada pelos ensaios, com os quais se aprende um caminhão de coisas, que vão desde as discussões sobre a natureza do romance à relação da evolução deste com a da música, passando por todos os seus santos de eleição (Cervantes, Kafka, Nietzsche), dos quais fala com insistência.
Kundera é um ensaísta estupendo. E, por sorte, faz ensaio mesmo quando faz romance, que acaba lhe servindo quase como pretexto, ou ilustração.
Quarto ou quinto livro dele em sequência, como eu disse, o que talvez se explique por outro defeito, que pelo menos a mim não incomoda, antes o contrário: além de entremear a narração com divagações filosóficas (o que é para muitos um crime, acusação da qual se defende com Rabelais, Fielding, Tolstói e sobretudo Musil), seus vários romances não passam, no fundo, de um único e interminável livro no qual vai elaborando sua dúzia de intuições fundamentais, todas do mais digno interesse.
As voltas
Ele, que vira sempre motivo de riso nas roupas furadas que seu pai nem por isso deixava de usar, agora graças rendia por não ter filhos.
14.11.13
Rio
Ontem de tarde eu mal pus os pés fora de casa, e logo me apareceu Virgílio, se oferecendo de guia.
10.11.13
Lampejo
No jardim do pátio do colégio dirigido por padres mercedários, as nunca antes vistas cartas espalhadas de um baralho pornográfico.
Terceira margem
No Brasil, a esquerda são as soluções absurdas de problemas que a direita sequer admite.
3.11.13
Tragédia
A família sai de casa para uma festa. Passa alegre por vários bairros enfeitados como em época junina: bandeirolas cruzam as vias de um lado a outro, todas cheias de pinturas espalhadas pelos muros e no asfalto. Chegados ao destino, todo o tempo me divido entre comer e correr com os de minha idade, enquanto os adultos bebem ruidosos em volta da TV. De repente, quando dou por mim, tudo acaba. Silêncio. Na despedida, o clima é fúnebre. Os abraços dão-se entre os familiares de um morto. As ruas, cheias na ida, vão agora desertas. Algo de muito grave aconteceu, e não só com os nossos. Também eu me consterno, embora sem nem desconfiar do motivo.
Até que — ao fim de duas décadas na mais completa ignorância do que teria sucedido aquele fim de tarde — ligo as pontas e descubro não ter visto senão a eliminação do Brasil para a Argentina, pelas oitavas de final da Copa de 90, tendo eu na época míseros 5 anos.
2.11.13
1.11.13
Salvadores
— Acreditam os senhores ter condição de me dizer precisamente de que se constitui [a cultura europeia], a qual os senhores pretendem defender embora não esteja sendo agredida de fora?
— Da religião! — disse o presidente, que nunca ia à igreja.
— Dos costumes — disse a dama cujas ligações ilegítimas eram do conhecimento de todos.
— Da arte — disse o diplomata, que desde os tempos de escola jamais contemplara um quadro.
(Joseph Roth, Fuga sem fim, 1927.)
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