22.11.14

Tudo

Não fosse tudo
Como uma criança que a fingir sobe
Uns degraus que pintou no chão...

(Pessoa)

A vida

A vida é assim, Senhor?
Desabam mesmo
a pele do rosto e os sonhos?

(Adélia Prado)

Água

Há mil potes
para uma água
imutável.

(Nauro Machado)

A sorte

Renard: “Nunca tive a sorte nem mesmo de perder um trem que depois se acidentasse.”

Um monstro

Um monstro de três cabeças e dez braços. Enquanto uma diz “Sim!”, outra diz “Não!”, outra “Talvez”. Enquanto oito mãos matam e roubam, duas cuidam, consolam, se lamentam e denunciam.

19.11.14

Ben Sirac

Do livro Sabedoria de Ben Sirac, do séc. II, em trad. de Benjamin Carreira de Oliveira:
Enorme dificuldade foi criada para todos os homens,
pesado jugo para os filhos de Adão,
desde o dia em que saíram do ventre materno,
até o dia em que voltarem para a mãe comum.
O objeto de seus pensamentos, o temor de seu coração,
é a espera angustiosa do dia da morte.
Desde o que está sentado no trono, na glória,
até o miserável sentado na terra e na cinza,
desdo o que traz a púrpura e a coroa,
até o que se veste com linho cru,
não é senão furor, inveja, perturbação, agitação,
medo da morte, ressentimento, lutas.
E na hora do repouso, no leito,
o sono da noite apenas muda as preocupações:
apenas iniciado o repouso,
imediatamente, ao dormir, como em pleno dia,
ele é agitado por pesadelos,
como quem fugiu da linha de batalha.
No momento de salvar-se acorda,
admira-se de que nada havia para temer.
Assim sucede com toda criatura, do homem ao animal:
a morte, o sangue, a luta e a espada,
a miséria, a fome, a tribulação, a calamidade.
E ainda:
Como as roupas, toda carne vai envelhecendo,
porque a morte é lei eterna.
Como folhagem verdejante em árvore frondosa
tanto cai como brota,
assim a geração de carne e sangue:
esta morre, aquela nasce.
Toda obra corruptível perece
e aquele que a fez irá com ela.

Mudança

Muito surpreso porque já entre os deuses greco-romanos havia mudança de sexo. Talvez ainda não tenha chegado a ler nem uma dúzia de mitos entre as se não me engano duas centenas deles costurados por Ovídio em suas Metamorfoses, e já conto dois casos. Um deles, o do adivinho Tirésias, que foi mulher durante “sete outonos”. O outro, o de uma mulher que, depois de violentada por Netuno, pede ao deus como desagravo que lhe concedesse o favor de nunca mais correr o risco de passar por aquilo. Como? Virando homem. E virou. De Cenide passou a assinar Ceneu, adquirindo posteriormente fama de guerreiro invulnerável.

14.11.14

Ideal

Vivemos num mundo tão distante do ideal, que pra alcançá-lo só mesmo de avião. 

8.11.14

Briga

Ninguém discorda que já tudo deu errado. A única briga é decidir em que continuar insistindo.

5.11.14

Arte e realidade

Foucault: “A descrição não é reprodução, é decifração.”

Cintio Vitier, poeta cubano: “el espejo no copia al reflejar/ (el cuarto solitario/ esplende en otro tiempo fabuloso,/ el hombre que se asoma no eres tú/ sino tu víctima o tu juez)”.

A primeira

O mundo condescende com toda e qualquer forma de reação. A coisa mais importante pra quem almeja ter as más ações legitimadas é convencer de que se trata de simples reações em sentido exatamente oposto. Conseguido isso, estão abertas todas as possibilidades, apagados todos os limites. Tudo na vida se resume a determinar quem fez a merda primeiro, porque depois que se estabelece quem fez a primeira merda, estão absolutamente desculpadas todas as seguintes.

3.11.14

As cordas

Li Ye, poeta chinesa da Dinastia Tang (618-905 d.C.), trad. Ricardo Portugal e Tan Xiao:
CANTO DE SAUDADE
Profundo, dizem do mar, suas águas
tão mais ao fundo chega a saudade
Mar sem margens, larga a sua praia
e mais longe alcança meu sentimento
Tomo o alaúde, subo as escadas
só no terraço, com a lua cheia
e esta canção que diz: estou triste
toco e arrebento as cordas, as tripas

Passadismo

Ezra Pound, Canto XV:
and the laudatores temporis acti
claiming that the shit used to be blacker and richer
Ou, na tradução de Grünewald:
e os laudatores temporis acti
a reclamar que a merda já fora mais escura e fértil

Miseráveis

É 15 de julho de 1949, e Camus está no carro do poeta Augusto Frederico Schmidt, então uma grande referência nas letras brasileiras apesar de hoje completamente esquecido, — Schmidt que havia cometido a grande infâmia de enriquecer como empresário, algo indigno de um vocacionado pelas Musas, sobretudo por Musas como as dele, espirituais, místicas, bíblicas, francesas, católicas: foi dono de uma prosaica rede de supermercados, entre outros empreendimentos. Mas, como eu ia dizendo, é 15 de julho de 1949, e Camus está no carro do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, e nos conta:
No automóvel, peço que não me levem a um restaurante de luxo. E o poeta emerge de seus 150 quilos e me diz, com o dedo em riste: “Não há luxo no Brasil. Somos pobres, miseráveis”, dando tapinhas afetuosos no ombro do motorista engalanado que dirige seu enorme Chrysler.
(Além de judeu e católico, poeta e empresário bem-sucedido, místico e obeso, Augusto Frederico Schmidt foi presidente do Botafogo. Que biografia.)