Sophia de Mello Breyner Andresen: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso.”
27.4.15
26.4.15
Esfera da poesia
A esfera da poesia não se encontra fora do mundo, qual fantástica impossibilidade de um cérebro de poeta: ela quer ser exatamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e precisa, justamente por isso, despir-se do atavio mendaz daquela pretensa realidade do homem civilizado.
— Nietzsche, Nascimento da tragédia, trad. Guinsburg.
Signo da falta
Vinda do liceu, ou já em férias, só me restavam forças para, na imobilidade, ler, acrescentando-lhes o gozo ilícito do meu próprio corpo. Sob o signo da falta, eu gozava e lia e, agitando-me, sem violência, nesta contradição fundava a escrita.
De Um falcão no punho, da portuguesa Maria Gabriela Llansol. Quanta coisa em tão poucas frases. A literatura associada à masturbação, ambas nascendo da falta. A leitura como masturbação: gozo imóvel. A escrita como masturbação: agitação sem violência. A contradição em que se funda a literatura: viver por meio de palavras, agir por escrito...
Gênesis
Quando Deus anuncia a intenção de criar o homem, ele diz que o fará “à sua imagem e semelhança”, — semelhança esta que, segundo o próprio Deus, no capítulo seguinte, o homem só alcança com a queda, quando se torna “um de nós” — no princípio Deus falava no plural —, devido ao conhecimento do bem e do mal adquirido com a ingestão do fruto proibido.
Os homens andavam nus diante do Deus que se encarrega, ele mesmo, de confeccionar as túnicas com que, fora do Éden, se ocultarão uns dos outros.
Pela morte do irmão, Caim é condenado a ser um “errante fugitivo sobre a terra”. Mas assim que é expulso do solo que antes cultivava ele encaminha-se a outra região e logo funda uma cidade.
20.4.15
Rodin
Reunião de conversas entre Auguste Rodin e seu discípulo Paul Gsell, transcritas por este. Gsell tem uma necessidade meio pretensiosa — francesa? — de escrever bonito, como alguém com muita sensibilidade escreveria — o que por vezes o leva a descrições do que não chega a nos interessar, ou a mais adjetivos do que o necessário. Mas nada, rigorosamente nada que inviabilize a leitura e nos impeça de aprender horrores quando finalmente sai de cena e deixa a palavra com o mestre. A edição ainda vem ilustrada por algumas esculturas, ora quando mencionadas, ora quando lançam luz sobre o tema discutido. Eu, que já passei por tantas e tantas edições do livro do Rilke a respeito de Rodin — de quem foi secretário —, agora me arrependo.
Relatividade
Quando o homem moderno se encontra em face de uma estátua grega primitiva ou de uma igreja românica ou de um quadro barroco, não é lícito dizer: o artista ainda não sabia esculpir uma estátua à maneira de Fídias ou ainda não sabia construir uma catedral gótica ou já não sabia pintar como Rafael. Isto é falso classicismo. É preciso admitir que aqueles artistas pretendiam fazer coisas diferentes, porque a sua atitude em face da natureza e da vida era diferente. Não há “épocas primitivas” nem “épocas decadentes”; só há épocas que compreendemos bem porque a nossa própria atitude é parecida, e outras que compreendemos menos ou só com dificuldade porque diferem muito da nossa. E essas apreciações não permanecem iguais para sempre e até o fim do mundo — como acreditava o classicismo — mas mudam conosco. Só assim se explica que o século XIX tivesse descoberto a beleza das catedrais góticas, quando até então a palavra gótico tinha sentido pejorativo. O termo barroco percorreu a mesma evolução, ao passo que outras épocas da arte, outrora celebérrimas, hoje nos agradam menos.
9.4.15
O ridículo da generosidade
A grandeza de Dom Quixote a seus próprios olhos não depende do rebaixamento de todo o mundo à volta. A autoimagem impropriamente elevada que faz de si não surge do contraste com uma imagem impropriamente diminuída que faz do mundo — a nossa forma de ridículo. Dom Quixote julga-se indispensável a um mundo que entretanto é absolutamente digno de alguém tão extraordinário quanto ele. Não apenas o valor de suas coisas é exagerado — o seu pangaré que é o maior de todos os cavalos; a pobre lavradora, objeto de seus afetos, que é uma princesa e grã-senhora —, mas também qualquer vendinha de beira de estrada é uma fortaleza; o dono de qualquer espelunca é um nobre castelão; qualquer prostituta é uma “dama graciosa”, uma “donzela formosa”...
5.4.15
Fortuna
A Roda da Fortuna chegou trazida ao país mas, por falta de manutenção, logo deixou de girar.
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