O livro pelo qual mais sou grato à Cosac Naify — o livro que mais me dá a impressão de que, não fosse a Cosac Naify publicá-lo, e eu nunca nem teria chegado a tomar conhecimento de sua existência — é o Romance das origens, origem do romance, da francesa Marthe Robert, autora especialista também em Kafka. Nesse livro iluminador, ela apresenta uma versão psicanalítica para a origem do romance, o qual seria uma objetivação artística do fenômeno conhecido em psicanálise como “romance familiar do neurótico”, que, porcamente resumido, são as histórias que as crianças se inventam em resposta às primeiras grandes frustrações com os pais. Outro fundamento de Marthe Robert é O mito do nascimento do Herói, livro de Otto Rank, em que se demonstra como o referido mecanismo estaria na base da formação dos mitos heroicos — não sei se já repararam, mas com muita frequência o herói mitológico começa por não ser exatamente o filho das pessoas que o criam, isso quando não é criado mesmo por animais: Moisés não é filho da família egípcia em que cresce, Édipo mata o pai biológico tentando fugir dos pais que não sabia serem adotivos, Jesus não era filho de José mas de Deus etc. etc. — o mesmo se daria com os contos de fada, cujo cerne familiar é evidente, com todos os reis e rainhas, príncipes e princesas, crianças ora abandonadas pelos pais, ora perseguidas por madrastas... Nisso consiste a primeira parte do livro: em demonstrar como a fabulação teria nascido dessa tentativa de rearranjo da relação de todo ser humano com a figura paterna. Na segunda, ela aplica toda essa hipótese, construída sobre Freud e Rank, na interpretação propriamente dita de duas obras consideradas, a depender do ponto de vista, o primeiro romance moderno: o Dom Quixote, do Cervantes, e o Robinson Crusoé, do Defoe, para isso as enquadrando em duas categorias de “romance familiar”, a do “filho bastardo” e a da “criança perdida”. Uma das coisas mais surpreendentes e cheias de sentido que já li.