27.9.20

A vida é sonho: As Mil e Uma Noites, Calderón de la Barca e Liezi


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Badruddin é levado enquanto dorme de uma cidade a outra para se casar com a prima, de cuja cama na mesma noite é retirado durante o sono para acordar numa terceira cidade, onde vive 17 anos até ser reunido novamente à mulher. Isso em As Mil e Uma Noites

Em A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca, o filho de um rei é criado desde o nascimento num calabouço, do qual um dia é retirado enquanto dorme para ser reconhecido filho do rei, posição da qual é logo depois levado dormindo de volta ao calabouço. 

Antes de tudo isso, Liezi conta do rei que sonhava todas as noites que era escravo e do escravo que sonhava todas as noites que era rei.

26.9.20

A história arquetípica da imaginação islâmica


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao tomar conhecimento da traição da mulher, um sultão decide que mandará matar ao amanhecer cada mulher com a qual tiver se casado na noite anterior. E assim o faz, até que Xerazade tem um plano. E o plano de Xerazade para manter-se viva é contar ao sultão a reencenação interminável da própria condição. A cada noite Xerazade retoma a história interrompida ao fim da noite anterior, quase invariavelmente a história de alguém que conta uma história para escapar da morte, tantas vezes envolvendo mulheres adúlteras. No fundo de todas as histórias, ressoando, a história arquetípica da imaginação islâmica: a história de José. Aquele que escapa da morte e leva a melhor sobre os que o queriam matar. Aquele que escapa do poço e chega ao trono. Nesse sentido, José seria o primeiro conto escrito das Mil e Uma Noites. Primeiro e talvez único: o conto que — como o quarto do palácio de cem quartos dentro do qual há outro palácio de cem quartos — contém todos os outros. Um conto com tanto poder sobre a imaginação islâmica, que a ele tiveram de acomodar até mesmo a história de Cristo, o qual não poderia senão ter escapado, na última hora, de morrer sobre a cruz.

21.9.20

Novo Mundo, Américo Vespúcio


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Américo Vespúcio se diferencia dos demais cronistas do “descobrimento” por não ser um simples marinheiro como Hans Staden, nem um alucinado como Colombo, nem um padre como Thevet, nem um pastor calvinista como Léry, nem um propagandista da colonização portuguesa como Soares de Sousa, mas o mais próximo de um humanista que pisou ainda muito cedo nestas terras. É dessa educação literária que tira ele a certeza de que as Índias a que Colombo jurava ter chegado eram na verdade uma porção de terra desconhecida dos antigos e que, não se tratando de uma ilha, configurava um Mundus Novus. Esse Américo Vespúcio, que discute tecnicamente nas cartas as coordenadas astronômicas das viagens, afirma ter ido para a Espanha, de Florença, para ser um mercador; e que, após quatro anos de trabalho comercial, decidiu abandonar a busca sempre tão incerta de lucro pelo conhecimento dignificante das coisas ignotas. Essa circunstância pessoal explicaria a natureza econômica de dois comentários muito interessantes para os quais gostaria de atentar. Numa das cartas, Vespúcio diminui a circum-navegação portuguesa da África até as Índias, porque toda ela feita sem nunca se perder de vista a costa africana, o que, na avaliação do navegador florentino, tornava-a muito menos meritória do que qualquer viagem através do Atlântico, através do Desconhecido. A não ser por um aspecto: o econômico, ao qual infelizmente — segundo ele — então se dava importância excessiva. Vespúcio está dizendo que, mesmo sem nenhum achado imediatamente lucrativo, a chegada ao Novo Mundo teve mais valor do que a grande vitória comercial que chegar à Índia por mar deu a Portugal. Mas uma outra observação vespuciana acaba em contradição com o critério do heroísmo. Em outra carta, chama ele atenção para a total falta de motivação política e econômica das guerras entre os povos indígenas das costas brasileiras. De acordo com a observação de Vespúcio, os nativos estranhamente não lutavam nem pela aquisição de novos territórios, nem pelo aumento de riquezas, nem por nada que em geral leva os povos a lutarem entre si. As tribos inimigas enfrentavam-se até a morte de alguns e o aprisionamento de outros, e depois voltavam cada qual para a sua casa. E quando era de se esperar que Vespúcio louvasse a desconsideração econômica da guerra indígena, da mesma forma que louvou a desconsideração econômica das próprias viagens a este lado do Atlântico, o florentino saiu-se com uma queixa à “crueldade” desses povos, a qual estaria na base da gratuidade dessas guerras. Trata-se de um juízo tão inconsequente, que foi inevitável que Montaigne, no famoso ensaio que certamente teve como uma das fontes as cartas de Vespúcio, desfizesse a referida incoerência ao afirmar a nobreza da guerra indígena, absolutamente livre de causa tão espúria como o lucro.

11.9.20

A imaginação islâmica na literatura medieval

Quando o espanhol Asín Palacios publicou, em 1919, seu estudo a respeito das fontes islâmicas da Divina Comédia, O Livro da Escada de Maomé ainda não havia sido redescoberto. Diz-se que, nesse texto árabe que foi traduzido na Europa pouco antes do nascimento de Dante, Maomé aparece guiado através do Inferno e do Céu pelo anjo Gabriel. 

Se em A Linguagem dos Pássaros, poema do persa Farid ud-Din Attar (século XII), os pássaros partem reunidos em busca do Simorg, o rei dos pássaros, no Livro das Bestas (1286), do catalão Raimundo Lúlio, são os animais em geral que se reúnem para eleger um rei. 

Se no poema de Attar é a Poupa quem dá o sermão aos pássaros, nos Fioretti de São Francisco (século XIV) o pregador aos pássaros é o próprio santo de Assis. 

Aliás, da mesma forma que os pássaros de Attar saem em demanda do Simorg, os cavaleiros da Távola Redonda sairão na Demanda do Santo Graal. Muitas aventuras da Demanda inclusive se assemelham a aventuras, igualmente fantásticas, das Mil e Uma Noites

No conto “A princesa apaixonada pelo escravo”, do poema de Attar, bem como no conto de Badrudin das Mil e Uma Noites, um personagem é apresentado a determinada realidade como a um sonho, da qual depois é tirado como se dela despertasse, o que é o cerne da peça A Vida é Sonho (1635), de Calderón de la Barca. 

Além disso, há a questão da moldura, uma das principais características da velha narrativa islâmica: a narração de uma situação maior dentro da qual os contos são narrados (As Mil e Uma Noites, A Linguagem dos Pássaros, Kalila e Dimna são todos assim). E é justamente esse o procedimento de grandes coleções europeias medievais, como Os Contos de Cantuária e também o Decamerão (os dois do século XIV). Os Contos de Cantuária, aliás, têm com A Linguagem dos Pássaros o fato de a moldura de ambos os livros ser uma peregrinação, no livro persa ao Simorg, no livro inglês à Catedral de Cantuária. 

Há ainda o Libro de Buen Amor (século XIV), do Arcipreste de Hita, escrito no espírito do clássico Kalila e Dimna, essa coleção de fábulas e exemplos morais traduzida para o árabe no século VIII a partir da versão persa de um antigo livro indiano. 

Sem falar no Quixote, onde o próprio Cervantes brinca com a origem árabe da história.

3.9.20

A Epopeia de Gilgamesh

É mesmo possível que tudo já esteja na Bíblia e em Homero. Eis, porém, onde já estavam tanto Homero quanto a Bíblia, e também Hesíodo, e Virgílio, e as sagas islandesas, e Dante, e a poesia mística medieval, e o romance moderno, e tudo o mais. O herói que tem seu amigo/duplo (Aquiles e Pátroclo, Davi e Jônatas, Quixote e Sancho), o herói que desce ao mundo dos mortos (Orfeu, Ulisses, Eneias, Dante), a guardiã do vinho que recomenda os prazeres da vida (Horácio, Eclesiastes, Khayyam), o herói matador de monstros (Hércules, Sigurd, Teseu), o herói que sobrevive a um cataclismo provocado como castigo pelos deuses (Noé, Deucalião, Ló), o herói que nega o amor de uma mulher para cumprir sua missão (Ulisses e Circe, Eneias e Dido, o cavaleiro andante), a mulher responsável pelo fim da harmonia entre o herói e o meio (Eva, Pandora), a inconformidade do herói ante o sofrimento e a morte (Jó, Sidarta, Ivan Ilitch), o herói que é meio humano e meio divino, o herói que perde no último instante aquilo que foi buscar, e deixa gravado em pedra aquilo que aprendeu dos deuses, a árvore da vida de cujo fruto o herói se vê privado, o herói que é livrado pelos deuses de passar pela morte sendo arrebatado, os deuses que guiam à vitória o exército comandado pelo herói, o pão e o vinho como oferta memorial ao herói finalmente morto, tudo isso já está nesse poema sumério que já devia ser recitado por volta de uns três mil anos antes de Cristo. Assustador.