26.7.21

As muitas odisseias de Odisseu


A Odisseia é desses livros que já ninguém precisa ler para conhecer. Borges dizia que os clássicos se caracterizam justamente por serem livros cuja primeira leitura já é sempre a segunda e que isso confere um sentido inesperado à expressão “reler os clássicos”. Mas a verdade é que há sempre muito mais nesses livros do que a mera história narrada, em geral facilmente resumível. O que toda a gente sabe da Odisseia é que, lutando para chegar em casa, onde o esperam mulher e filho, um homem enfrenta perigos fabulosos enquanto vaga perdido pelos mares. Há coisas, porém, que só um leitor da Odisseia saberá. Como, por exemplo, a riqueza de camadas narrativas superpostas. Enquanto Homero nos narra a história de Odisseu, Demódoco narra a história de Odisseu para o próprio Odisseu e depois Odisseu narra a própria história aos seus anfitriões feácios — e é essa narração fantástica de Odisseu, com feiticeiras, plantas mágicas, monstros marinhos, a odisseia “oficial”, aquela em que se pensa quando se pensa na Odisseia. Mas há pelo menos uma outra: a que o Odisseu irreconhecível conta já na Ítaca que ele mesmo também não reconhece, o Odisseu cretense que narra uma viagem de volta igualmente acidentada, mas nada fabulosa, muito mais plausível. Sendo Odisseu famoso justamente por ser um grande mistificador, é inevitável que os leitores fiquem cogitando as muitas possibilidades narrativas que existiam antes do arranjo criado pela redação final.

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