19.10.22

Hércules e Cristo: paralelos


Uma tentativa muito comum de refutação do cristianismo consiste em apontar uma série de velhas divindades cujas vidas teriam servido de modelo para a confecção da vida de Cristo: Krishna, Hórus, Dioniso etc. Embora soe sempre ingênuo falar-se de Jesus como uma cópia de deuses pagãos, alguns paralelos de fato existem e são muito interessantes. No caso de uma figura como Hércules tudo fica ainda mais curioso, porque, tendo perdido pelo caminho o caráter religioso, chegou até nós apenas como personagem aventuresco de literatura infantil. Mas, assim como Cristo, Hércules foi também o filho de um Deus com uma mulher, também criado pelo pai adotivo. Outra similaridade é que ambos nasceram para o benefício da humanidade (Hércules foi um salvador “mundano”; Cristo, um salvador espiritual; Hércules por meio da violência, Cristo por meio da caridade). Ambos foram aclamados pelas populações sofredoras e temidos e perseguidos pelas autoridades. Os trabalhos de Hércules equivaleriam às provações de Cristo (as provas de Hércules foram 12, como 12 foram os discípulos de Cristo). Por fim, a mesma ascensão aos céus após a morte (ou durante a morte, no caso do grego): Hércules, homem que se torna Deus; Cristo, Deus que se fez homem — ambos imortais que passaram pela morte. Hércules foi e voltou do Inferno antes de morrer; Cristo passou por lá antes de ressuscitar.

12.10.22

O surgimento da grande chatice

É verdade que os chatos sempre existiram. E que nunca deve ter havido um único agrupamento de pessoas, ao longo da cumprida história humana, sem que lá no meio estivesse um chato que fosse. A presença de um chato é coisa tão certa quanto a presença de Cristo: onde quer que se reúnam dois ou três... Mas foi na Grécia do século VI antes de Cristo que a chatice começou a ganhar foro e o chato, prerrogativa. Até então, a chatice dos chatos não tinha alcance: morria em seu círculo social. Ao passo que os chatos gregos, perdendo a timidez, passaram a discuti-la, registrá-la, ostentá-la. Esses, que depois receberam o nome de filósofos, já não eram chatos involuntários, mas donos de uma chatice arduamente cultivada. Embora nunca ninguém tenha chegado, nessa matéria, aos pés de Sócrates, de quem só não existem muitos mais diálogos registrados porque decerto nem todo mundo era trouxa e muita gente o evitou enquanto era tempo, o grande pioneiro dessa arte foi sem dúvidas Xenófanes, de Cólofon. Esse camarada foi nada menos que a primeira pessoa na história da humanidade a se dar ao trabalho de escrever que não gostava das histórias cantadas pelos poetas porque afinal titãs, gigantes e centauros não existiam; e que não encontrava sentido algum em celebrar a excelência física de atletas campões de qualquer modalidade esportiva uma vez que nenhum deles era capaz de oferecer qualquer solução para os problemas da cidade. Agora vocês imaginem Xenófanes criança, entre os amiguinhos, e o quanto não deve ter apanhado. Prova disso é que ainda jovem abandonou a cidade natal sem ter se fixado depois em parte alguma. 

13.9.22

Jesus, o pensamento grego e o envelhecimento


A familiaridade grega com o corpo se restringia a um tipo de corpo bem específico: o corpo jovem, “ideal”. À parte esse, era enorme a dificuldade dos gregos com o corpo deteriorado pela velhice e pela morte. Por esse motivo valorizavam a morte de homens novos nos campos de batalha, ainda sem as deformações da muita idade; e tentavam a todo custo ultrajar os belos cadáveres dos inimigos; e cremavam os mortos queridos para não darem oportunidade à putrefação da carne. É verdade que os gregos gostavam dos corpos, mas dos corpos congelados no tempo, como os corpos que tinham os deuses, eternamente os mesmos. De acordo com Príamo, o ancião rei de Tróia, nada era mais consternador do que avistar a nudez de um velho. E tudo isso aponta, aliás, para o fato de que Jesus (a interpretação teológica a respeito de Jesus) foi um fenômeno muito mais próprio do pensamento grego do que do pensamento judaico: um deus que toma para si um corpo, mas um corpo que chega à morte antes de experimentar o verdadeiro escândalo que era o envelhecimento e que, para livrar a carne desse corpo da decomposição da morte, ainda por cima ressuscita. 

7.8.22

Teresa Filósofa, anônimo do século XVIII


Assim como os antigos ensinavam por meio de histórias protagonizadas por animais, os libertinos do século XVIII usavam o erotismo para discutir a sociedade. Escreviam livros aparentemente escandalosos, mas que no fundo eram textos didáticos, cheios de palestras filosóficas, sermões racionalistas, catequese iluminista — textos que eram verdadeiros breviários da Nova Moral: o livre-arbítrio é uma ilusão; o ciúme é um preconceito estúpido; o sexo, uma necessidade tão natural como a fome, e várias outras novidades da época, para a boa educação das jovens desinformadas. Mas, ao contrário do radicalismo de Sade, que requeria as últimas consequências revolucionárias do ateísmo, a filosofia aprendida por Teresa, que nem ateísta chega a ser, é bem mais conservadora: o autor faz questão de ressaltar que nenhuma de suas ideias, se bem aplicadas, é capaz de transtornar o bom funcionamento da sociedade.

2.8.22

Causas do apelo juvenil da mitologia nórdica


Ao contrário da mitologia grega, essa coisa vaga e amoral por isso mais do gosto dos velhos, a mitologia nórdica: 1) postula um fim do mundo, e os jovens precisam muito temer e ansiar um fim do mundo, venha ele num Apocalipse cristão ou num Ragnarok viking; 2) o mundo não apenas acabará, mas também recomeçará de novo, dessa vez regenerado: como competir, pela atenção dos jovens, com um céu não cristão?; 3) melhor do que o fim do mundo e a sua regeneração, é a maneira como esse fim se dará: uma guerra final do Bem contra o Mal, e os jovens topam qualquer negócio que lhes dê o sentimento de participar de uma guerra contra o Mal, seja ele que Mal for; por último, mas não menos importante, 4) o sentido fashion dos aesir, cheios de visuais marcantes: realmente não há jovem que resista a um deus caolho, de barba enorme, chapelão, dois corvos sobre os ombros, ladeado por dois lobos, nem a outro que tem um cinturão, uma luva e um martelo mágicos — todos elementos que cumprem perfeitamente os requisitos cinematográficos de um super-herói ao gosto dos americanos, que não por acaso são anglo-saxões e herdeiros desse negócio todo.

O trinitário-tobagense que não gostava de que não gostassem dos ingleses


Naipaul é um observador atencioso e um narrador cheio de qualidades. Mas escreve de um lugar deplorável: o lugar do colonizado (no caso dele, indiano nascido em Trinidad e Tobago, colonizado duplamente) que vai para a Inglaterra e de lá critica todos os que não fazem o mesmo, ainda que apenas intelectualmente, sem a mudança geográfica. Nesse livro de viagens (li com muito interesse a viagem ao Irã, com interesse um pouco menor a viagem ao Paquistão, e cheguei já sem interesse algum à Malásia, onde o deixei), viagens feitas no início dos anos 80, apesar das ótimas notícias que Naipaul oferece da vida nos países visitados e de seus graves dilemas históricos — a revolução islâmica x o ocidentalismo do xá; hindus x muçulmanos; o xiismo duodecimano; etc.) —, a leitura acaba se tornando cansativa à medida que se percebe o mesmo juízo por trás dos episódios: “Eles odeiam a maneira como o Ocidente vive e pensa, mas lutam contra ele com as armas que o próprio Ocidente oferece”. Percebido esse fio, torna-se bem difícil continuar a leitura de mais trezentas páginas de exemplos que ilustram essa constatação.

28.6.22

É isto um homem?, de Primo Levi


A história dos homens é, desde que passaram a deixar registros, uma história feita de violências atrozes, com muita frequência contra velhos, mulheres e crianças. 

A violência faz parte tão grande das relações humanas, que os poucos homens que apareceram falando de paz — um Buda, um Jesus, um Francisco de Assis — nunca mais foram esquecidos pelos povos. 

Se assim é, o que diferenciaria a violência alemã contra os judeus de todas as violências cometidas antes e depois do nazismo? 

Um episódio de Kaputt ajuda a explicar. Conta Malaparte que, ao tomar conhecimento de um massacre a um bairro judeu na cidade romena de Jacy — massacre feito à moda antiga, à velha maneira dos pogroms medievais — um oficial alemão se escandaliza: “Os romenos ainda não são um povo civilizado”. 

Ora, o que distingue a violência alemã é o seu caráter impessoal, burocrático; o alcance desumanizador — e não apenas para a vítima — da sua crueldade asséptica, clínica, industrial, científica. 

Os alemães não foram os primeiros genocidas nem serão os últimos, mas ninguém jamais havia empregado todas as grandes conquistas da Razão e do Progresso a serviço do extermínio.

24.6.22

Estação Carandiru, de Drauzio Varella


Com suas infinitas possibilidades, a vida é um quebra-cabeça insolúvel, sempre mais confuso, mais perturbador do que gostaríamos que fosse. São muitos os que, diante da vida, não fazem mais do que ignorar tudo que não diga respeito a sua mínima parte. 

Por isso, uma das grandes contribuições da literatura — ficcional, histórica, jornalística, etnográfica — foi desde sempre ampliar o conjunto de experiências humanas a que dificilmente os leitores teriam acesso sem ela.

Com esse objetivo, um autor precisa manter-se o mais possível de fora. A arte depende muito de certa ambiguidade, ainda que involuntária. Muitas obras escritas contra ou a favor de algo foram bem-sucedidas porque falharam nesse intuito, ou porque os partidos perante os quais se posicionavam já não existem. 

Homero pede que as Musas o auxiliem a exaltar a ira de Aquiles e acaba nos levando a chorar a morte de Heitor. Até hoje ninguém pode garantir se Cervantes estava condenando ou homenageando o tipo de loucura conhecida como quixotesca. E se é verdade que Dante escreveu contra adversários políticos, por sorte é-nos absolutamente indiferente pelo que disputavam guelfos e gibelinos. 

E não é de outra maneira que Drauzio Varella se pôs no meio da população carcerária do extinto Carandiru, misto de Dante descido aos Infernos com missionário etnógrafo, mas um Dante apartidário, um missionário sem mensagem condenatória, juízo duplamente suspenso, como médico e testemunha. 

22.6.22

Gaslighting medieval


Uma das formas atuais de progresso consiste na invenção de palavras inglesas para velhos problemas e a subsequente adoção dessa mesma palavra inglesa pelo mundo inteiro. Se isso não garante por si só a resolução do problema, ao menos é o primeiro passo para alcançá-la, uma vez que junto com a palavra criada pelos americanos espera-se que venha também a solução proposta por eles. O maior exemplo do que digo é a palavra bullying, relativamente recente em nosso vocabulário, mas sem a qual já ninguém consegue falar da infância. Os casos, porém, são incontáveis. A última palavra desse tipo que descobri foi gaslighting, que significa o ato de manipular uma pessoa garantindo que as coisas que ela viu e ouviu em momento algum aconteceram, até que ela se convença da própria insanidade. Coincidência ou não, todas as vezes que vi essa palavra utilizada ela estava no contexto de abuso psicológico praticado por homens contra mulheres, nunca — que eu tenha visto — o contrário. E essa circunstância me fez lembrar que o caso mais grave de gaslighting já registrado na história foi precisamente o de uma esposa contra seu marido. A história quem a conta é Boccaccio, no Decameron, onde aparecem muitos outros casos menores dessa natureza, vários deles contra o pobre Calandrino, mas nenhum comparável ao que fez Lídia contra seu marido Nicostrato. Conforme narrado por Dioneu na Nona Novela da Sétima Jornada, Lídia simplesmente transou com o amante na frente do marido, que logo a seguir foi convencido por ela, muito ofendida pela mera suspeita do marido, de que nada do que ele tinha visto aconteceu. Lídia e Pirro não haviam transado na frente de Nicostrato. Nicostrato é que estava doido. 

17.6.22

Malaparte, uma Sherazade dos crimes de guerra


Kaputt
é, a rigor, não um testemunho, tampouco uma denúncia, mas antes a recordação minuciosa das cores, dos sons e dos odores da guerra alemã (céus verdes, sons doces, cheiros gordos). É também uma dolorosa elegia para o velho mundo da guerra de proporções humanas, feita a cavalo, com espada e tiro de espingarda, mundo morto pelos tanques e bombardeios aéreos da guerra mecanizada, tão destruidora. Como um dândi da catástrofe, como um flâneur de campos arrasados de batalha, o interesse de Malaparte num massacre estava sempre menos no sofrimento das vítimas do que no requinte inesperado de um carrasco. Era nessa contraposição muito sutil, sempre irônica, quase ambígua, da hiper-educação com a crueldade mais atroz que residia aquilo que se poderia chamar de crítica: filho de um protestante alemão com uma católica italiana, Kurt Suckert parece ter nascido para a ambiguidade, a ponto de eventualmente trair certa satisfação com aquilo que com sinceridade repudia. Em termos literários, Malaparte é como um Proust (a comparação é ele mesmo quem sugere) que, em vez de reuniões com madames, descreve jantares com criminosos de guerra e que, em lugar de vestidos, relembra com pormenor a destruição. 

20.5.22

A oficina de Stendhal


Machado começa as Memórias Póstumas de Brás Cubas manifestando consternação por Stendhal ter escrito para apenas cem leitores. Num dos prefácios a Do amor, Stendhal informa que o livro passou praticamente ignorado e que, vinte anos após a publicação em 1822, não haviam sido vendidos mais do que cem exemplares. Enquanto reafirma a validade do projeto, Stendhal especula as razões do fracasso de público: o tema (como falar de tudo que envolve a paixão amorosa a banqueiros, industriais, eruditos e pessoas preocupadas com as convenções, com o ridículo?), a abordagem ao tema (em vez de um agradável romance, escreveu um estudo, uma investigação, uma análise psicológica), a espontaneidade da escrita etc., e até projeta como seria o leitor ideal. Ora, se pensamos nos grandes romances oitocentistas – o próprio Stendhal, Balzac, Flaubert, Tolstói, Eça, Machado –, ler esse Do amor é como chegar a uma oficina e encontrar as peças espalhadas de cada uma dessas engrenagens romanescas, ainda desmontadas; ou como assistir a uma peça de teatro a partir da coxia, tendo à vista todos os ferros e papelões e gambiarras que durante o espetáculo permanecem escondidos do público. De maneira que não é inocente, como não poderia ser, a referência implícita a um tal livro logo no esforço mais metaficcional de Machado.

2.4.22

Marxismo e religião












O princípio fundamental da historiografia marxista da religião: a maneira correta de estudar as religiões, a única maneira científica de o fazer, é a partir das relações sociais em meio às quais as religiões nasceram. Para o pensamento marxista, as crenças religiosas são apenas uma projeção dos anseios causados pelas condições materiais dos povos. Assim — implicação mais controversa desse princípio —, os homens só puderam chegar a acreditar na existência de um único Deus no céu a partir do momento em que passaram a ter um único Senhor sobre a terra. Ou, em outras palavras, não houve religião enquanto não existiu divisão de classes. Mas não é que a religião tenha nascido como uma falsidade promovida pelas elites para o apaziguamento dos pobres — ao contrário, para o marxismo toda religião é verdadeira ao menos na medida em que reflete as aflições reais das classes subalternas, por mais instrumentalizada que venha a se tornar depois. A incompatibilidade do marxismo com a religião, portanto, decorre do fato de a religião projetar para a outra vida — a paz no céu, no nirvana — aquilo que o marxismo quer alcançar ainda nesta. Ora, se o marxismo acredita que só existe religião porque um dia passamos a viver divididos entre senhores e escravos, a consequência é achar que, no dia em que a igualdade entre os homens for alcançada, a vida finalmente se tornará aquilo que a religião sempre projetou para a morte.

9.1.22

As bem-aventuranças

No Evangelho de Lucas (6:20), a cada bem-aventurança de Jesus corresponde uma maldição à circunstância contrária: bem-aventurados os pobres/ai dos ricos; bem-aventurados os que choram/ai dos que riem; bem-aventurados os que têm fome/ai dos saciados. 

Já a redação do Evangelho de Mateus (5:1-11) elimina as maldições, ao passo que amplia o número de bem-aventuranças: felizes também os mansos, os misericordiosos, os puros etc. 

Enquanto o Jesus de Lucas fala de condições concretas – a pobreza, o choro, a fome –, o Jesus de Mateus fala de disposições internas. Em vez de abençoar o pobre, a benção é ao “pobre no espírito”; em vez de abençoar o que tem fome, a benção é ao que tem “fome de justiça”. 

Significaria isso que mesmo os ricos, os felizes e os saciados (quer dizer, os amaldiçoados de Lucas) poderiam estar entre os bem-aventurados de Mateus? 

Ora, Mateus (Levi) escrevia para a comunidade judaica. E a grande acusação de Jesus contra o judaísmo era a piedade apenas exterior. Daí que, um pouco mais adiante no texto de Mateus, ao tratar do cumprimento apenas literal dos mandamentos, Jesus acrescente que não matar não é suficiente, e que é preciso também não odiar o próximo nem ofendê-lo. 

Assim, quando o Jesus de Mateus especifica que a pobreza bem-aventurada é a pobreza “no espírito”, ele não está querendo dizer que o rico também pode ser bem-aventurado. Antes, pelo contrário, está dizendo que só a pobreza exterior já não era o bastante: Jesus exigia também a pobreza interior. Da mesma forma que a fome física precisava ser acompanhada pela fome espiritual e que a pureza corporal precisava ser motivada pela pureza do coração.