26.1.23

Tio João


Tirando meus pais, ninguém fez tanta parte da minha vida quanto meu padrinho, na casa de quem tomei vitamina de abacate praticamente todas as manhãs da minha infância. Quando não era época de abacate, a vitamina era substituída pela de banana. Com ele aprendi a tirar o miolo do pão (até hoje só como pão assim) para depois jogá-lo da janela aos pombos: passávamos o café da manhã fazendo bolinha de miolo de pão enquanto comíamos. Foi dele o primeiro apelido que ganhei na vida e pelo qual ele sempre me chamava mesmo depois que cresci. Um dia o tio João achou que tivesse me perdido na rua (havia me deixado sentadinho no carro e ido à padaria), e eu o vi chegar desesperado na casa dos meus pais, pra onde eu tinha voltado sozinho: sempre gostei de pensar que foi por minha culpa o maior susto que ele tomou na vida. Meu tio João gostava de pescar e tinha um conjunto muito impressionante de caniços e molinetes e linhas e iscas artificiais, tudo muito organizado e colorido, logo atrás da porta do quarto de costura. Eu passava horas do meu dia admirando aquilo tudo e por vezes até mexendo nas iscas, cada uma mais exuberante que a outra. A vez em que ele me levou para pescar num dos canais ou lagoas da Barra, não pescamos peixe algum, para maior frustração dele do que minha. Como era taxista, andava sempre com um maço de dinheiro no bolso do blusão, e isso me impressionava muito. Minha primeira paixão na vida não poderia ter sido outra que não os carros, ou melhor, um carro — o do meu tio —, no qual ele me incentivava a mexer, eu ainda muito pequeno. Há fotos minhas ao volante do táxi, eu com cerca de quatro, cinco anos. Estranhamente, depois acabei me desligando por completo dos carros, tanto que nem sei dirigir... 

Se anoto aqui todas essas coisas, é só porque hoje fui visitar esse meu padrinho no CTI, e ele já não me reconheceu, e por isso me tratou como a um desconhecido simpático que foi confortá-lo num momento de dor. E, diante desse esquecimento do meu tio, me vi compelido a passar o restante do dia após a visita me lembrando tudo de mais significativo que passei com ele.

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