29.1.13

“Cova do tempo”

[...]

Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
— liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.

Aqui, além, pelo mundo,
ossos, nomes, letras, poeiras...
Onde, os rostos? onde, as almas?
Nem os herdeiros recordam
rastro nenhum pelo chão.

[...]

— Cecília Meireles, em “Fala inicial”, de Romanceiro da Inconfidência, 1953.

27.1.13

Esperanza

SP

A única coisa que os cariocas não gostam de São Paulo é frequentá-la. Fora isso, e à distância...

“Silêncio que o poeta exuma do pó”

[...]

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não ouça coisa alguma.

— Ferreira Gullar, em “Falar”, de Em alguma parte alguma, 2010.

26.1.13

Escoamento

A grande tragédia lusa na América foi não terem viabilizado um escoamento natural para nossos esnobes. Foi não nos terem dado uma metrópole própria e definitiva. Um centro modelar para o qual fugir. Foi, pela própria sucursalização, nos terem tirado Lisboa, ficando a nossa gente — e também a deles — condenada a uma superioridade exclusivamente teatral. Pois, se a América Inglesa teve sempre sua Londres, e a Espanhola, sua Madri, à nossa não restou senão — Paris?

Relação

A relação dos brasileiros com o governo é a de quem delega um serviço tão baixo, tão sujo, que a mera supervisão dele é já uma desonra. O brasileiro — mesmo o pior — é alguém muito especial pra se ocupar com resolver problemas, ainda mais dos outros. 

22.1.13

Ideia

Mais difícil do que abandonarem uma ideia é abandonarem os que ainda a preservam. 

Castigo

O castigo de quem nunca faz nada é estar sempre disponível para tudo.

Motivos

Me entristece ver um exemplo de superação. Se nem os com todos os motivos para serem miseráveis podem sê-lo...

20.1.13

Duplo fim da linguagem

O fim da linguagem é, assim, duplo e contraditório: comunicação e cerceamento. Leva-nos para fora de nós, mas reentra-nos em nós pela vida de fraternidade e entendimento com aqueles que são nossos iguais ou próximos pelo espírito, pelo passado, pelas emoções comuns, pelo ofício e pelos interesses. O idioma une um povo adentro de si, mas separa-o dos outros povos. Quanto mais se aprende uma língua, tanto mais se desaprendem e esquecem todas as outras. Falar uma língua, que não é a nossa, é sempre tentar mudar de alma e de aparelho de fonação. Quando se fala bem a nossa língua, com domínio pleno de todos os seus mistérios, com estreita identificação com as experiência nela estratificadas, implicitamente praticamos um ato de guerra passiva contra todos os povos estranhos, porque nos isolamos por detrás de uma forte muralha espiritual, aquela selva das nossas peculiaridades separadoras. Só têm forte personalidade os povos que sabem expressar essa personalidade com mestria em palavras próprias, palavras fiéis aos aspectos fugentes do seu sentir mais típico e dos seus gostos mais enraizados, desde a cozinha até a etiqueta, através de todos os escaninhos da ética.

— Fidelino de Figueiredo, em Onipresença da palavra”, de A luta pela expressão: prolegômenos para uma filosofia da literatura, 1944.

Ibero-americana

Y ahora, ¿son en las repúblicas del Plata tan poco y tan mal conocidas las producciones literarias y científicas del Brasil como aquí son poco y mal conocidas las de Portugal? No sé por qué me inclino a sospechar que sí.

Ahí, entre naciones de lengua española, hay una, y una gran nación, en vía de rápido progreso, de lengua portuguesa.

¿No debería ser esto una razón para que los americanos de lengua española se interesaran por el espíritu que se vierte en lengua portuguesa? Un providencialista creería que el haber metido Dios ahí una gran nación de habla portuguesa entre las naciones de habla española es para que un día se integre ahí, como aquí se integrará, el común espíritu ibérico al que le están, aquende y allende el océano, reservados tan grandes destinos.

— Miguel de Unamuno,  em La literatura portuguesa contemporánea, 1907.

15.1.13

Opção

Agora, ou o Flamengo se reduz ao tamanho do que pode bancar, até poder bancar de novo o tamanho que tem, ou continua no seu faz-de-conta, servindo mais a quem o dirige que a quem o sustenta. 

Cada qual

“O asno a quem um cachorro ofereceu carne retribuiu com feno, ficando ambos com fome.” — Ditado posto por Tolstói na boca de Khadji-Murát, líder checheno e herói do livro a que dá nome. 

14.1.13

Problema

O único problema das telas contra a entrada de insetos é lhes impedirem a saída. 

12.1.13

Yussuf


Diferenças

Sobre a questão racial, talvez fosse mais justo lutar contra a ideia de superioridade que lutar a favor da de igualdade, numa superficialização das diferenças em que só as de culturas periféricas perdem. Agora somos todos iguais, e só nos distinguem a cor da pele, a textura do cabelo e a largura do nariz, meros detalhes, motivo pelo qual devem todos abandonar suas particularidades a fim de ingressarem no mundo magnífico da Civilização. E o que era para dignificar as divergências, serve agora para as eliminar: já não há quem seja inferior aos europeus — desde que se lhes assemelhe. Mil vezes não. É justamente por não serem intrinsecamente inferiores que não têm por que se igualarem. É justamente por serem iguais que podem manter-se diferentes. 

11.1.13

Malandragem

Sempre me falta dinheiro para os livros mais caros porque nunca deixo passarem os mais baratos.

7.1.13

Imagem

Tendo em vista o direito de imagem, ficam os sósias proibidos de ser quem são?

As palavras

2

Os cardos se abriram
fecharam-se os lírios
horizontes amplos
estreitaram o âmbito
só pela palavra
que em tempo de espera
nos foi negada.

A casa estremece
no próprio alicerce
pelo desatino
de alguma palavra
de metal ferino
que nos fira o ouvido
sem qualquer preparo.

Os verdes ondulam
ao longo das várzeas
espelhos se aclaram
no colo das grutas
por palavra terna
que a alma nos enleva
no momento exato.

Ó cores nascidas
ó sombras criadas
ó fontes detidas
ó águas roladas
ó campos abertos
por simples palavras.

LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: Poesia Geral, 1929/1983. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 515-516.

6.1.13

Círculo

Andam todos muito desanimados com nossa falta de entusiasmo pelas coisas deles pra se entusiasmarem com as nossas. 

5.1.13

2.1.13

Ilusão

La amarga ironía

Dicen que suicidarse es un delito;
Que hay que aceptar la vida como es.
La fórmula optimista es esta fórmula:
“luchar para vencer”.

No maldigas tu vida. Sufre y calla;
piensa en la dicha, sueña en el amor.
¿El corazón te duele? Busca un médico:
¡cúrate el corazón!

Si tienes hambre piensa en que has comido;
— ¡llénate la barriga de ilusión! —
pero no te suicides ni protestes,
que te castiga Dios...

Arrástrate, envilécete, mendiga.
La vida hay que aceptarla como es;
y aun en el lodo, di dentro del lodo:
“luchar para vencer...”

GUILLÉN, Nicolás. Obra poética. Pról. de A. Augier. 4.ed. La Habana: Instituto Cubano del Libro, 2002, 2 t.