O grande problema da linguística — talvez maior do que a defesa da língua como ela é — se deve a que, por trás de cada um desses muitos desvios cometidos espontaneamente, existe um fundamento bem menos óbvio a ser apreendido pelos semicultos do que as meras normas gramaticais que determinam os acertos. Em outras palavras, o grande problema da linguística é que a gramática é normativa, e reivindicar o acatamento é sempre ação mais cômoda que a de compreender as causas da desobediência. Compreender o porquê dos equívocos já banais que no dia a dia mesmo a gente escolarizada insiste em cometer com a naturalidade da inconsciência requer bastante mais do que o necessário para não cometê-los. Fica parecendo maluquice para a totalidade dos leigos e não baixo número de estudantes, mas acertar um uso, ou mesmo ser capaz de elucidar suas regras, é bem menos custoso, exige bem menos, do que escavar a razão de uma possível inobservância quase generalizada.
30.6.15
27.6.15
Último a chegar
Quando eu ouvia dizer que Ulisses eram as 24h na vida de um homem, e que Joyce, se não foi seu criador, foi ao menos quem mais longe levou a técnica do fluxo de consciência, eu imaginava que o livro fosse todo ele um jorro interminável com os pensamentos de Leopold Bloom durante sua perambulação por Dublin — talvez por sugestão de Grande Sertão: Veredas, um monólogo aparentemente sem fim que eu algumas vezes mal comecei. Vou descobrindo agora que não é bem só isso — são muitos e variados os psiquismos a que vamos tendo acesso, não só ao de Bloom. E, para além disso, o livro — verdadeiro compêndio de procedimentos narrativos, repositório de toda forma possível de texto escrito: o jornalístico, o ensaístico, o propagandístico, o jurídico etc. — é uma colagem de tudo o que numa cidade perpassa a vida de um homem, concentrado num único dia que por sua vez são todos os dias.
15.6.15
Comigo
Parece que, no princípio, a boa relação com Deus não passava pela boa relação com os homens. Todos os patriarcas foram, ao mesmo tempo que fieis guardadores da aliança com Javé, desavergonhados ou inescrupulosos no trato com os outros. Abraão mentiu sobre o status de sua relação com Sara para se proteger e abandonou à morte a serva Agar junto a seu filho Ismael; Isaac enganou o pai cego e tomou o que era devido ao irmão mais velho; Jacó enriqueceu à custa do sogro, de cuja casa depois que estava rico fugiu durante a noite, malocando consigo todo o rebanho dele; Moisés cometeu homicídio e depois guiou o povo para fora Egito carregando o máximo de tesouro alheio que conseguiam carregar; Davi, não satisfeito com pegar a mulher de um general seu, ainda mandou matá-lo pra ficar com ela só pra si... Nada que fosse suficiente para desaboná-los aos olhos de Deus, a quem estranhamente continuavam fieis, de quem estranhamente continuavam protegidos. E não terá sido esse, fico me perguntando, o tipo de relacionamento que Cristo buscou restaurar, com todo a defesa de publicanos e pecadores? “Danem-se os homens, o negócio voltou a ser comigo.”
Joyce
Todo o virtuosismo técnico de Ulysses não nos deve fazer esquecer a baixeza da matéria que o compõe. Pode ser que o livro esteja repleto de charadas eruditas — como se gosta de lembrar —, mas tanto quanto de imagens do mais profundo mau gosto. Por exemplo, esse trecho tão engenhosamente executado, em que a leitura de um jornal é apresentada em paralelo — ou em que a redação da imprensa diária é igualada — ao ato de... bem, leiam vocês, na pioneira tradução do Houaiss:
Refestelado no trono desdobrou o jornal virando as páginas sobre os joelhos nus. Algo novo e fácil. Não há grande pressa. Demorar-se um pouco. Nossa novidade premiada. O golpe-de-mestre de Matcham. Escrito pelo senhor Philip Beaufoy, clube dos Playgoers, Londres. Pagamento à razão de um guinéu por coluna foi feito ao autor. Três e meia. Três libras e três. Três libras treze e seis.
Calmamente ele lia, dominando-se, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. A meio, uma última resistência cedendo, permitiu que os seus intestinos se aliviassem de todo enquanto lia, lendo ainda pacientemente, toda ida aquela ligeira prisão de ventre de ontem. Espero não seja demasiado grosso e provocar hemorroidas de novo. Não, está exato. Assim. Ah! Constipado, uma tablete de cáscara sagrada. Vida podia ser assim. Aquilo nem o agitava nem o comovia, mas era algo rápido e limpo. Imprime-se qualquer coisa hoje em dia. Época idiota. Lia adiante sentado calmo sobre o próprio odor montante. Limpo certamente. Matcham pensa frequentemente no golpe-de-mestre com que ganhou dessa bruxa gargalhante que agora. Começa e termina moralmente. A mão na mão. Sagaz. Remirou o que lera e, no que sentia verter sua água calmamente, invejou com carinho o senhor Beaufoy que escrevera aquilo e recebera de pagamento três libras treze e seis.
6.6.15
Nietzsche
Quando lemos Nietzsche, o espetáculo que testemunhamos é o de alguém que se põe a combater, ora triunfante, ora resignado, o surgimento de um mundo que nós, por nossa vez, já encontramos feito, já que nos deu à luz: um mundo em que todo o mundo tem direitos, um mundo em que todo o mundo tem razão, um mundo em que todo o mundo, se não é capaz de aprender, ao menos o é de se informar. O que Nietzsche passa todas aquelas páginas tentando fazer é nos alertar, a nós que o lemos hoje, para o fato de que a minha existência e a sua, tal como elas são, representam um retrocesso, um desperdício de séculos e séculos de história: não foi para a espécie chegar a gente como a gente que no princípio Homero e Sófocles existiram. Algo deu muito errado no caminho. E esse algo foi o cristianismo, grande responsável pela contaminação da Europa com o vírus da dignidade humana, que pôs tudo a perder.
Confessio
A minha têmpera tem na família um ilustre precursor, o irmão mais velho do meu pai, que por sua vez está entre os mais novos. Mesmo com quase nenhuma convivência (até hoje foram pouquíssimos os encontros, ainda mais escassas as conversas), tenho com ele pelo menos quatro grandes similaridades: tanto ele quanto eu fomos batistas durante a juventude; tanto ele quanto eu fomos seminaristas de nossas igrejas e nos dedicamos incompletamente ao estudo da Teologia, que depois ele trocou pelo Direito e eu pela Literatura; tanto ele quanto eu quase nunca estamos nas reuniões de família, acho que ele bem menos do que eu, que de vez em quando ainda dou as caras no Natal, ele nem isso; tanto ele quanto eu nos dedicamos aos livros, sobretudo aos usados, muito embora o interesse de meu tio seja um bocado mais desordenado que o meu: os meus poucos livros cabem num mísero cômodo, os dele demandam não sei quantos apartamentos. E tudo isso — percebo agora — me salva. Hoje minha madrinha — a pessoa em cuja casa eu, quando criança, tomava café todas as manhãs, e ao lado de quem lançava para um batalhão de pombos as bolinhas que fazíamos à mesa com o miolo que ela e meu padrinho me habituaram a retirar do pão, e que hoje em dia eu quase não visito — esteve aqui em casa e, na hora de se despedir, me chamou sorrindo pelo nome do irmão mais velho, como que me desculpando pelas negligências todas.
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