Os monoteísmos se preocupam tanto com o destino eterno dos homens, que até a polícia eles estão dispostos a interpôr entre estes e o inferno.
29.11.15
26.11.15
Moderados
A gente só lembra do meio-termo quando puxam com força maior que a nossa rumo à extremidade oposta.
22.11.15
Formalidade
A sensibilidade ocidental não está lá muito preocupada com a prática ou não da violência — isso é o de menos —, desde que exista contra ela alguma espécie de condenação formal. Desde que exista contra ela um papelucho subscrito em que se leia: “Não é certo fazer isso que vocês vão continuar fazendo.” Daí porque pouco importa o tratamento desumano que populações inteiras tenham recebido nas colônias europeias: importa é que exista uma bula, assinada pelo papa não sei qual, dizendo que essa gente tinha alma. Pouco importa que comunidades judaicas tenham sofrido violência de maneira regular durante todo o medievo: importa que exista outra bula, assinada por sei lá qual outro papa, proibindo cristãos de perseguirem judeus. Pouco importa que povos cristãos hajam sempre se matado uns aos outros pelos mais diversos e fúteis motivos: importa que Cristo mandou dar a outra face. De onde o problema ocidental com o mundo islâmico, cuja (in)sensibilidade prescinde dessa grande ferramenta de conforto psicológico: a hipocrisia. Parece que lá eles admitem abertamente a violência entre as formas legítimas de resolver algumas questões. É claro que os ocidentais também acreditam nisso, aliás mais do que em qualquer outra coisa, mas já não conseguiriam sobreviver a essa admissão, que lançaria por terra toda a superioridade moral do cristianismo, a qual não consiste em outra coisa que não seja os cristãos fazerem sistematicamente tudo que a religião cristã proíbe.
21.11.15
Biblioteca
Em kikongo, uma das línguas bantus que nos chegaram vindas principalmente de Angola, a palavra com que eles, hoje em dia, designam biblioteca é makulu, a qual originalmente significava: a) antiga aldeia, velha cidade, ruína onde o passado ou sua história estão ocultos; b) a cidade dos ancestrais, o mundo espiritual.
17.11.15
Ocidente
O Ocidente é a violência expansionista do Império Romano a serviço da caridade da Igreja. É por isso que o Ocidente fere conclamando à cura. Assassina em nome da misericórdia. Mente por amor da verdade. Oprime com a libertação como pretexto. Com essa dupla natureza, o Ocidente habituou-se a gozar de todos os benefícios da violência contra os outros, mas com a consciência leve e tranquila de quem jura que não quer senão o bem universal. O mundo que a Igreja criou jamais teria chegado a ser o que é sem o emprego sistemático da violência mais injusta, muito embora esta se ufane de ter sido fundada sobre aquele que primeiro ensinou a dignidade de todo ser humano.
16.11.15
Subterrâneo
A mensagem cristã, embora tenha permitido ou até solicitado ser imposta, como aliás qualquer verdade, abriu porém um inesperado caminho subterrâneo até o Outro, ao fim do qual ninguém jamais escapou à urgência de negá-la. A singularidade da mensagem cristã — poderíamos dizer: sua única superioridade — está em que nenhuma outra religião acaba suprimida pelo próprio cumprimento, ou preservada apenas pela própria traição. Sempre só pôde haver cristianismo ali onde faltasse cristianismo.
15.11.15
O evidente
Aquilo que acusam de incompreensível [na poesia moderna] é afinal o ‘evidente’ de que falam todas as grandes obras, o qual deve ser esquecido e continuar esquecido, porque não será tolerado nem resgatado pela sociedade./ A recordação do evidente, daquilo que nos permanece oculto, é que motivou insultos e perseguições à poesia, onde quer que na história tenha aparecido o poder sem disfarces. O que as ditaduras empregam contra a poesia prova que forças dela emanam. Por mais insignificante que seja seu alcance, do ponto de vista estatístico, seu efeito é imprevisível. A poesia é um elemento residual. Sua mera existência questiona o existente. Por isso o poder não a suporta. Ela é intolerável a todos os regimes totalitários. Na interminável lista de livros proibidos e queimados, a poesia moderna tem um lugar de honra. A existência de muitos de seus melhores autores foi marcada pelo terror fascista e stalinista; não se pode ignorar a lista de exilados, assassinados, mortos no exílio, tombados na guerra civil, levados ao suicídio, mortos nos campos de concentração, arruinados nas prisões, torturados, fuzilados, na Alemanha, na Espanha, na Rússia: muitos poetas de nosso século acabaram assim. Eles testemunham que a poesia moderna não pode existir sem liberdade: ou ela mesma realiza um fragmento dessa liberdade, ou acaba sucumbindo.
(Enzensberger)
13.11.15
11.11.15
Fortuna
Poucas coisas são tão indecentes quanto a possibilidade de se fazer fortuna com a obra de artistas que, por nenhum outro motivo além da criação dessas obras, viveram na miséria.
O pastor
Van Gogh não só foi o filho mais velho de um pastor reformado holandês, como foi ele mesmo, por volta dos seus vinte anos, pastor-auxiliar de umas quantas igrejinhas na Inglaterra, e depois missionário entre os mineiros de Borinage, na Bélgica.
9.11.15
6.11.15
La Rochefoucauld
Nas máximas de La Rochefoucauld, aquilo que por vezes nos parece gratuito, ou mesmo arbitrário, e, durante a leitura, nos compele a ir respondendo: “nem sempre”, “não necessariamente”, “muito pelo contrário”, se deve não tanto a possíveis desatenções do autor, e menos ainda a qualquer deficiência intrínseca à forma literária utilizada, mas ao fato de as coisas já não se darem entre nós, hoje, exatamente como se davam para a aristocracia francesa do século XVII. Não é que seja impossível La Rochefoucauld ter errado: é que não somos nós, que já quase nada sabemos da dinâmica social nas cortes do Antigo Regime, as pessoas mais indicadas para apontar esses equívocos. A menos que sejamos especialistas, ou adivinhos, o máximo que nossa eventual divergência a qualquer afirmação categórica de La Rochefoucauld pode significar é que — na matéria em questão, já não somos assim. A consequência disso é que, apesar da pretensão universalizante, suas generalizações não são assim tão gerais. A “natureza humana” investigada por ele tem, pois, localização espaço-temporal muito bem determinada, e nem sempre coincide por completo com a “natureza humana” de períodos posteriores, como o nosso: ele diz “o homem”, e nós sabemos que esse homem é um nobre francês da metade dos 1600. Daí que se, nas máximas, La Rochefoucauld pode ser absolutamente impessoal, é justamente porque seus juízos não são seus, mas pertencem à figura do honnête homme, ideal humano de toda uma classe. E se esses juízos podem dispensar justificativas — justificativas que o caráter sentencioso da máxima, aliás, não permitiria —, é porque são emitidos em nome de um consenso — um consenso que nunca foi o nosso.
5.11.15
Assinar:
Postagens (Atom)