30.12.15

Omphalos

Uma das alegações mais insistentes feitas por Mircea Eliade é a de que o mito faz parte tão fundamental da existência humana, que nos é algo absolutamente inextirpável, por maiores que sejam as hostilidades contra ele. Quando muito, aquelas grandes imagens se degradam, se marginalizam, ou então vestem a máscara da racionalidade mais respeitável e passam a circular despercebidas entre os homens. Entretanto basta que se trave contato com suas formas primordiais, mais elementares, para que seus resquícios modernos sejam facilmente reconhecíveis. Esse é, aliás, um dos principais divertimentos que a leitura do historiador romeno proporciona: a possibilidade de pegarmos no contrapé o primitivismo de gestos considerados os mais cultivados. Por exemplo, a crença no axis mundi. Todos os povos antigos, inclusive e sobretudo os mais rudimentares, se consideravam o centro do mundo, habitantes daquela região em torno da qual os deuses haviam criado tudo que existe, sobre a única porta de acesso ao reino do sobrenatural. Para além de cada um deles, só poderia haver o caos, as trevas, as forças demoníacas — ou, em linguagem mais familiar, a barbárie. É bem verdade que, se tradicionalmente todos os povos se consideravam centrais, indispensáveis para a manutenção do cosmos, a experiência colonial conseguiu a proeza de forjar os primeiros povos com a triste consciência da periferia. Mas, apesar dessa consciência — ou justamente por causa dela —, por acaso houve alguma tribo que tenha acreditado mais intensamente na sacralidade de determinado sítio quanto as mentes brasileiras mais ilustradas acreditam na sacralidade da Europa — único lugar do globo onde o grande deus Civilização se manifesta?

24.12.15

Ninguém

As pessoas não se incomodam de falar apenas para alguns, desde que esses alguns ou sejam muitos, ou raros. Quando o indispensável é dirigir-se a todos, ainda que se fale a ninguém.

23.12.15

Vitória

Enquanto dois partidos ideologicamente contrários polarizam uma disputa, a vitória assegurada é a do que têm em comum. 

21.12.15

Alívio

Uma das primeiras coisas que a literatura me deu foi o alívio de descobrir que então não era só comigo.

Única

A única violência que o Ocidente não admite é a do mais fraco.

20.12.15

Cassirer

Encontro em Ernst Cassirer algo que até então nunca tinha visto: um filósofo, mas um filósofo etnograficamente muito bem informado. Não sem frequência o lemos afirmar que, segundo Kant, ou Bergson, ou Hegel, ou qualquer outro filósofo ainda menos acessível, a arte, ou a música, ou a religião, ou o mito, é isso ou aquilo, para logo em seguida concluir: contudo, entre as tribos de não sei que lugar verifica-se que a arte, ou a música, ou a religião, ou o mito, nunca foi nada parecido com isso. E, sinceramente, não consigo pensar em contribuição mais valiosa do que essa: a correção de generalizações universalizantes a respeito das coisas humanas, feitas a partir do gabinete, pelo contraste com a experiência concreta de homens espalhados pelas partes mais distantes do globo. Cassirer definitivamente conhecia tudo o que os europeus haviam suposto sobre o homem. Mas também tinha notícia dos homens como de fato eram. 

4.12.15

Cosac

O livro pelo qual mais sou grato à Cosac Naify — o livro que mais me dá a impressão de que, não fosse a Cosac Naify publicá-lo, e eu nunca nem teria chegado a tomar conhecimento de sua existência — é o Romance das origens, origem do romance, da francesa Marthe Robert, autora especialista também em Kafka. Nesse livro iluminador, ela apresenta uma versão psicanalítica para a origem do romance, o qual seria uma objetivação artística do fenômeno conhecido em psicanálise como “romance familiar do neurótico”, que, porcamente resumido, são as histórias que as crianças se inventam em resposta às primeiras grandes frustrações com os pais. Outro fundamento de Marthe Robert é O mito do nascimento do Herói, livro de Otto Rank, em que se demonstra como o referido mecanismo estaria na base da formação dos mitos heroicos — não sei se já repararam, mas com muita frequência o herói mitológico começa por não ser exatamente o filho das pessoas que o criam, isso quando não é criado mesmo por animais: Moisés não é filho da família egípcia em que cresce, Édipo mata o pai biológico tentando fugir dos pais que não sabia serem adotivos, Jesus não era filho de José mas de Deus etc. etc. — o mesmo se daria com os contos de fada, cujo cerne familiar é evidente, com todos os reis e rainhas, príncipes e princesas, crianças ora abandonadas pelos pais, ora perseguidas por madrastas... Nisso consiste a primeira parte do livro: em demonstrar como a fabulação teria nascido dessa tentativa de rearranjo da relação de todo ser humano com a figura paterna. Na segunda, ela aplica toda essa hipótese, construída sobre Freud e Rank, na interpretação propriamente dita de duas obras consideradas, a depender do ponto de vista, o primeiro romance moderno: o Dom Quixote, do Cervantes, e o Robinson Crusoé, do Defoe, para isso as enquadrando em duas categorias de “romance familiar”, a do “filho bastardo” e a da “criança perdida”. Uma das coisas mais surpreendentes e cheias de sentido que já li.

O caminho

O primeiro passo rumo ao “bom selvagem” se dá quando os missionários calvinistas franceses, vendo o horror dos missionários católicos ante certos costumes indígenas, se perguntam: “E desde quando católico tem moral pra reclamar da selvageria alheia?” (Jean de Léry faz a pergunta pensando na tão celebrada Noite de São Bartolomeu.) Esse raciocínio chega até Montaigne, que, mesmo sendo católico, o corrobora, apenas ampliando a identificação religiosa para cultural: “Os povos europeus também não cultivam suas barbaridades?” — pergunta ele, pensando sobretudo nas fogueiras espanholas. E vai um pouco além: “Não tem essa gente uma nobreza que nós já perdemos, e não estão eles mais próximos do espírito da Antiguidade do que nós?” Depois chega Rousseau (não por acaso de educação calvinista), e responde que sim, e tira daí as consequências.

1.12.15

Evolucionismos

O mais importante tem me parecido conseguir escapar a toda e qualquer forma de evolucionismo, seja religioso, seja cultural, seja estético, seja biológico. Escapar a toda e qualquer compreensão que se afigure como uma linha ascendente ligando um ponto primitivo de origem a um ponto final plenamente desenvolvido. Escapar a toda e qualquer compreensão universalizante que pretenda substituir a linha que vai do Gênesis ao Apocalipse, além, claro, da própria linha que vai do Gênesis ao Apocalipse.