28.8.21

Pirandello contra o cinema


Dizer que Cadernos de Serafino Gubbio operador foi um romance escrito contra o cinema é dizer pouco. E continuaria insuficiente acrescentar que, além do cinema, também foi escrito contra o automóvel, contra a fotografia e contra vários outros mecanismos que começavam a se colocar entre as pessoas. Pirandello foi um romancista muito especial para escrever um panfleto disfarçado de romance, e um romance oferece sempre mais do que favor ou oposição ao que quer que seja. Como toda a rejeição de Pirandello às inovações tecnológicas do período partiam não do hábito ou da preguiça ou da teimosia conservadora, mas de um olhar muito atento à influência dessas coisas na vida interior das pessoas, poucas vezes se encontrarão personagens descritos com tanta sutileza e compreensão psicológica. Muito mais do que suas teses, o operador Gubbio nos oferece o emaranhado das coisas humanas. E a verdade é que, se levamos em conta o ano em que o livro foi escrito (1915), encontramos em Pirandello uma visão que, de tão aguda, resvalou na profecia. Já então, vemos Gubbio atestar a impassibilidade e a indiferença de que é tomado todo aquele que se põe atrás das lentes de uma câmera, o que de imediato nos obriga a lembrar da nossa tendência a filmar (agora que todos nos tornamos operadores de câmeras portáteis) situações em que mais valeria a nossa interferência; além de que, no desfecho do romance, Pirandello aponta a grande vocação do audiovisual para o grotesco, o escabroso, o violento, como que predizendo a nossa TV. Além de todas essas coisas, não deixa de ser interessante observar um ataque ilustre (embora malogrado e esquecido) a algo tão vitorioso e estabelecido como o cinema, cujo status artístico nem sempre foi admitido. 

27.8.21

Caminho da imortalidade


















Entre as coisas mais inesperadas na compreensão taoísta do sexo (e são muitas), aquela que sem dúvida mais sobressai é seu caráter medicinal. Tudo que diz respeito a esse campo de atividade humana deve estar subordinado à manutenção ou à restauração da saúde, à cura das “cem doenças” — ou, em último grau, à imortalidade, mas no caso uma imortalidade física mesmo. Até por esse motivo, ficamos sabendo, todos os textos que compõem o Fang-chung-shu - A Arte Chinesa do Amor chegaram até nós por fazerem parte de compilações médicas. Nem é preciso dizer que se trata, nesses textos, de uma medicina que nós já não reconhecemos exatamente como tal, tamanha a vinculação com a magia. De qualquer forma, assim como o céu e a terra, unidos harmoniosamente um ao outro, permanecem para sempre enquanto tudo o mais desaparece, assim o homem e a mulher perecem apenas por não se unirem da maneira adequada. E porque não seguem o caminho da união, gastam-se, ao invés de se energizarem; definham, ao invés de se revigorarem. E é essa maneira de se encher perpetuamente de vida por meio da relação sexual — ou melhor, essa maneira de não se esvaziar pouco a pouco da vida durante o sexo — que os textos tratam de expor.

14.8.21

Katherine Mansfield, velha amiga

Podemos amar ou detestar um autor por amarmos ou detestarmos os personagens que ele nos apresenta. Mas também nos é possível gostar de um autor apesar dos seus personagens: amar Machado mesmo sem suportar Brás Cubas e Bentinho, venerar Flaubert mesmo quase morrendo de ódio com Emma Bovary e Frédéric Moreau. Em casos assim, só o que nos impede de abandoná-los de uma vez é a intermediação do narrador (presente mesmo na sua impessoalidade), como aquela única companhia que nos salva numa festa com gente insuportável. É isso o que acontece com a grande Katherine Mansfield, cujos contos são muitas vezes protagonizados por madames sem qualquer noção da vida, cheias de preconceitos de classe mesmo quando bem-intencionadas. Tudo isso é compensado pelo tom íntimo da narradora e pelo olhar atencioso às mínimas coisas, capaz de enxergar nelas os maiores sentidos, que depois vem generosamente compartilhar conosco, seus amigos. São muitos os autores que lutamos para ler. E, por mais satisfatória e compensadora que seja a vitória sobre um texto inacessível, é infinitamente maior a felicidade que dá abrir pela primeira vez um autor desconhecido, como Katherine Mansfield era para mim, e reencontrar um velho amigo cuja conversa finalmente podemos retomar.

5.8.21

Por intermédio do que não sabemos

Uma das queixas de Platão contra os poetas era o fato de eles necessariamente tratarem do que desconhecem. Mas, enquanto Homero, que tão magistralmente canta a guerra de Troia, não sabia conduzir exércitos nem arremessar lanças, o samurai Miyamoto Musashi só parou para escrever O Livro dos Cinco Anéis após uma vida inteira dedicada ao combate com espadas.

Por isso mesmo é fascinante como, sendo um especialista nas artes marciais, Musashi comece o manual da sua escola — a Nitô-Ichi-Ryu, Escola de Duas Espadas — discorrendo sobre as exigências da... carpintaria. O guerreiro, diz ele, é semelhante ao carpinteiro, o qual deve saber isto e aquilo, fazer esta e aquela coisa, trabalhar desta e daquela forma. 

E é incrível como talvez essa não seja uma limitação exclusiva dos místicos, e de fato só nos seja possível falar do que sabemos por intermédio mesmo do que não sabemos.

3.8.21

O Silênco, de Shusaku Endo


Tudo nesse livro, que gira em torno à tentativa fracassada de cristianização do Japão no século XVII, é inesperado. A começar por ser o livro de um japonês, mas um japonês católico. Depois, por apresentar, em plena época de regime inquisitorial contrarreformista, padres portugueses e espanhóis não como perseguidores na Europa, mas como perseguidos no Japão. Por último, por transferir o foco desde a questão da perseguição religiosa (afinal, os japoneses não perseguem em nome de outra verdade) para a questão moral daquele que vai promover uma ideia em nome da qual inocentes serão mortos — além de várias outras questões como, por exemplo, em que medida o cristianismo de quem é catequizado é o mesmo cristianismo de quem catequiza? e se tudo não passa de um grande mal-entendido? e até que ponto renegar apenas superficialmente a religião torna alguém infiel ao cerne dessa religião? se boca e coração nem sempre estão de acordo na crença, por que também não poderiam estar separados na descrença apenas exterior? A rigor não é possível tornar-se mártir por vaidade, enquanto se pode ser um apóstata contrito? Além de que — e passei toda a leitura me fazendo essa pergunta —, quanto vale, em termos de testemunho de fé, o martírio de um povo com venerável tradição suicida?

A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges


Todo historiador nos fala simultaneamente de no mínimo dois períodos históricos, o passado a que se dedica e o presente do próprio historiador e com muito mais certeza deste do que daquele. Os livros de história são como aquelas superfícies cujo desenho muda conforme se passa a mão sobre elas de um lado para o outro. 

Já esse é um livro — estudo a respeito das bases religiosas primitivas da organização social dos gregos e romanos — que explica tantas coisas velhas e atuais, ilumina tantos cantos obscuros da história antiga e não tão antiga assim, que parece ir nos tirando da cegueira. Enquanto o lemos, a certeza é de que finalmente começamos a entender todas as leituras que já fizemos, leituras que agora descobrimos foram todas muito precárias. 

E de todas as muitas coisas que o autor desse livro nos ensina, enquanto trata da Antiguidade sob o ponto de vista da França e suas revoluções, a principal talvez seja a persistência dos gestos humanos, que resistem encarniçadamente mesmo muito tempo depois de as crenças que os fundamentavam terem desaparecido. E que isso nos faz viver quase sempre entre ruínas, em torno das quais os homens disputam uns para as terminar de derrubar e outros para mantê-las a todo custo de pé, mesmo que já sem fundamento algum.