30.3.12

Uma questão psico-etimológica

Gnoscere, um dos verbos latinos para conhecer. Acrescente-se-lhe o prefixo de negação, e eis o verbo desconhecer, ignorar? Curiosamente, não. Ignosco, eu perdôo, eu desculpo. Em latim, a idéia de perdoar viria, pois, da de não tomar conhecimento da ofensa, ou já não lembrar-se dela. Fácil conclusão imediata, daquelas que dariam um best-seller nas mãos de um Augusto Cury.

Mas, logo abaixo, continuando o verbete, aventa o autor do dicionário Francisco Torrinha — outra possibilidade, que exigiria processo psicológico exatamente inverso. Diz ele que ao verbo gnoscere pode ter sido acrescentado, em vez do prefixo de negação in, suposição a meu pobre ver mais óbvia, o de movimento — também in, como em invidere, olhar obcecadamente para algo, isto é, invejá-lo —, que daria à palavra, intensificando-a, o sentido de conhecer mais a fundo, de buscar compreender a razão por trás dos atos ofensivos. Compreensão essa que implicaria a justificação deles. “Tudo compreender é tudo perdoar”, como se diz.

Não saber ou esgotar. 

29.3.12

Dúvida

Talvez não haja maior prova da existência de certas realidades que nunca nos livrarmos da dúvida quanto a se existem. 

Oferta

Há de fato os que nunca se venderam, mas por pura falta de oferta, mesmo a mais pobre. Os que nunca se venderam, é verdade, mas de muito bom grado se dariam, gratuitamente, soubessem de interessados em os carregar.

24.3.12

Dalí et caterva

Há quem não seja homem o suficiente nem pra ser viado.

Thor

O problema de casos como o envolvendo o filho do homem mais rico do país e o pobre de um pedreiro é que durante quatro quintos de nossa curta história houve parcela da população excluída, oficialmente, do direito à justiça. E mesmo depois do chamado princípio da isonomia, na prática, até hoje, a distinção se verifica. De modo que, a meu ver, a grita acaba por se justificar, em função do óbvio. Tirando os tidos e havidos como ressentidos revanchistas, não há brasileiro que de fato ache justo conspurcar a tão prometedora vida de um herdeiro bilionário pela perda de um morto de fome qualquer. Dado o abismo entre as respectivas contas-correntes, aquele sujeito estaria errado ainda que fosse atropelado no quintal de casa — se é que tinha quintal; se é que tinha casa.

22.3.12

Caro crítico

Envio por e-mail uma recolha de pequenos textos meus — publicados quase todos em alguma das várias encarnações deste blog, a partir de 2008 — a um crítico cujo interesse pelo gênero eu conhecia, pedindo a gentileza de uma leitura e o favor de algum direcionamento. Não muitos dias depois, recebo como resposta uma tabela de preços tão bem discriminada (tantos reais por lauda impressa em Times New Roman, corpo 12, espaço duplo, mais forma de pagamento e prazo para o relatório), que só me deixou com uma dúvida: a de quantos elogios o pacote incluía.

Mas, brincadeira à parte, sendo improvável que ele não tenha passado as vistas pelo PDF, ainda que para cálculo do possível lucro, lendo aqui e ali, até sem querer, alguma frase minha, a cobrança serve ela mesma de veredito.

15.3.12

Espanto

Os lugares em que se retalia a morte de compatriotas inocentes com a explosão de outros. 

13.3.12

Benefício

O grande benefício que o dinheiro proporciona é o de dispensar quem o tem de consegui-lo. 

12.3.12

Dos livros

As livrarias são a TV aberta das letras. Encontra-se nelas apenas o que prometa o máximo de audiência. Quando muito (Cultura, Travessa, Da Vinci), chegam a TV por assinatura. Algo mais seletivo, ligado ainda aos interesses do tempo, claro, mas a interesses sobretudo estrangeiros, bem menos populares. Já os sebos, por sua vez, são nosso Youtube literário. Nestes, depende-se basicamente da sorte, isto é, de outras almas com bom gosto uparem conteúdo, o que fazem limpando as bibliotecas; e de o encontramos antes de ele ser deletado, que é ser vendido. E, muito embora acumulem tanta porcaria quanto a pior TV, o que neles há de bom é bom de um modo que já nem existe.

11.3.12

Piores

Racismo é se gloriarem os piores da pertença à pretensa raça dos melhores. 

10.3.12

Sãos

Releiam lá o Sermão do Monte, seus beatos. Cristianismo não é não praticar o mal, mas não ter ganas de fazê-lo. Não é não externar uma má intenção, reprimindo-a. É, antes, não nutri-la. Diferença da mais alta importância, já que não era outro o problema de Cristo com os de seu tempo. A ele já não bastava a conformidade exterior pela conformidade exterior. Estava demonstrado: a prática da justiça por parte de corações ímpios não produzira senão orgulho. Que houvesse dos homens maus ao menos o reconhecimento de que o fossem: de onde a preferência por publicanos e pecadores, sem a blindagem das boas ações. A preferência pelos doentes, em detrimento dos sãos, deixados à própria sorte. Meus amigos, uma vez surgido o mau desejo, e já não há diferença fundamental entre quem o consuma e quem o constrange, podendo o primeiro ser tão temente a Deus quanto o último um grande dum canalha. 

8.3.12

Conclusão

Conclusão retirada da última aula de latim: Não confiar na acuidade filosófico-psicológica de povos cujas línguas não possuam voz média nem verbos depoentes. 

Com efeito, um povo capaz de dizer: “A criança vai nascer amanhã” e “Fulano morreu ontem”, está nesse mundo a trabalho ou a passeio, não sabendo nada de nada.

7.3.12

Falta

Entre os que dizem na cara e os que dizem pelas costas, aqueles a que falta mesmo o que calar. 

4.3.12

Defeitos

Aqueles (poucos) cujos defeitos eu tolero já não toleram os meus. 

A diferença

O samba talvez não existisse sem algumas escolas (Estácio, Portela, Mangueira, Império). Algumas escolas talvez não existissem sem a Globo.