Aquela história de que quem ateia fogo em livro é porque ainda vai ateá-lo em gente me enche de preocupação toda vez que rasgo algum volume demasiado velho da minha estante: quanto tempo, meu Deus, até que eu esteja por aí esquartejando idosos?
30.5.14
29.5.14
“Beleza da intenção”
Um poema de António Botto (uma pequena poética, aliás) que reforça a queixa de Gide, segundo a qual não se faz literatura com bons sentimentos:
Busco a beleza na forma;E jamais
Na beleza da intenção
A beleza que perdura.
Só porque o bronze é de boa qualidade
Não se deve
Consagrar uma escultura.
A par disso, as três repetições de “beleza” ainda na primeira estrofe (a beleza que o poeta busca) revelando sozinhas todo seu projeto estetizante, em que a obra vale ou deixa de valer por si mesma, isto é, por sua forma, indiferentemente à matéria de que é feita (o bronze: os valores morais, as ideias) e a qualquer outro propósito que não o de perduração.
23.5.14
Diálogo
Eu sei que não há nada mais obsoleto que a polêmica da semana anterior. É só que, folheando aqui o meu Assim falou Zaratustra, esbarrei com o que bem poderia ser uma resposta de ninguém menos que Nietzsche à famigerada campanha promovida por Neymar. Fiquei achando o diálogo tão insólito e digno de acontecer que, apesar do atraso e da consequente falta de propósito da coisa, reproduzo a contraparte do alemão, a título de curiosidade. Então quer dizer que somos todos macacos? Foi o tempo. Hoje “o homem é ainda mais macaco do que qualquer macaco”.
20.5.14
Armistício
A música sempre ameaça dissolver a palavra, fazer dela instrumentalidade “vacante”, cerrar as portas do sentido reduzindo a linguagem à tautologia do sonoro. A palavra, por sua vez, põe em perigo a renúncia a toda tradução, a toda paráfrase, a toda redução ao unívoco da verdade analítica e pragmática, renúncia esta que é própria da música. Irmãs para sempre inimigas que entretanto não podem deixar de se encontrar em uma intimidade indissolúvel lá onde a poesia reclama, revoca (estas palavras tão “vocais”) o que nela é canto.
Patinho
Lembro muito bem que uma das razão que me convenceram a ler António Botto — uma das, porque houve outras — foram os elogios de escritores célebres que entremeavam o volume em que estavam coligidas suas “canções”. Eram de vários e vários, mas um em particular teve peso mais decisivo: Miguel de Unamuno. Folheando o voluminho, lá para as tantas, logo antes do início de uma nova série, vinha lá um baita elogio do basco: porque o António Botto isso, a poesia do António Botto aquilo. Ora, se Unamuno o leu e o recomenda...
Até que outro dia, passando desavisadamente por um ensaio sobre a mitomania de outro poeta, dessa vez a do brasileiro Bruno Tolentino — lido e elogiado por não sei que grande poeta francês, casado com a filha de não sei que outro figurão, professor convidado de não sei que universidade inglesa —, o autor, já não recordo quem, mencionava que, caso similar ao deste, talvez só o do — acreditem — António Botto, que parece havia inventado loas e mais loas de escritores de tudo quanto é nacionalidade à sua obra, escritores os quais muito provavelmente nem nunca o leram.
17.5.14
Cruzada
Acabado o vídeo do gato que salvou uma criança do ataque de um cachorro, de repente me sinto capaz de iniciar uma cruzada contra essa espécie abjeta que é a canina — cuja maior virtude é justo algo tão deplorável quanto a sujeição, máximo defeito que compensa e anula uma multidão de outros, e a respeito da qual estão certos os povos muçulmanos, para quem a figura do cão é das mais insultuosas.
Evidente que estou sendo injusto. Tão injusto com os cães quanto seus donos, esses caluniadores, são com os gatos, bichos “traiçoeiros”, que “se apegam mais ao lugar que ao dono”, e sei lá mais quantas merdas incansavelmente ditas e reditas.
Com a diferença de que, se eles são injustos a vida inteira, eu quero ser injusto apenas hoje: os cães não valem nada e merecem a sorte que têm na China.
12.5.14
Ao pai
Não bastasse Kafka passar a carta inteira se dirigindo ao pai como quem se justifica diante de Deus, ainda no final lhe concede a palavra e imagina por ele os possíveis contra-argumentos, fazendo da carta um perfeito Livro de Jó. Bizarro.
8.5.14
Diferença
É verdade que nada que os povos europeus tenham feito de condenável ao longo e a partir do período colonial não foi praticado em igual ou maior escala, antes ou depois, pelos mais diversos povos do mundo — como seus defensores se apressam em lembrar —, com a diferença de que nenhum destes o fez imbuído da caridade cristã e da salvação do mundo.
2.5.14
Admissão
Foi duro mas inevitável chegar ao fim da adolescência e me ver obrigado a admitir que não, eu não era melhor do que o tempo em que vivia, nem mesmo melhor do que o país em que havia nascido, do qual aliás nem teria meios de me livrar caso quisesse. Foi duro, inevitável e cheio de consequências talvez incalculáveis, dentre as quais a principal eu conheço e é a seguinte: desde então, nada se tornou pra mim mais inútil, mais incompatível comigo, mais inconveniente, que o discurso daqueles que — ora pelo apego a uma ideia parcial do passado, ora pela filiação a uma cultura estrangeira mais prestigiosa, ora pela participação no agenciamento de determinado futuro — falam como se de fora do tempo em que vivem, do país em que nasceram, da espécie a que pertencem...
Ameaça
A liberdade foi uma estratégia criada para que se pudesse perseguir em paz aqueles acusados de ameaçá-la.
Tentativa
Quem sabe se tentando ser melhor do que pode o homem não acabou muito pior do que precisa?
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