O romance pôde ser tão bem acolhido pelo mundo burguês porque, se é verdade que ainda é literatura, é uma literatura que ao menos impõe trabalho a quem a faz.
31.1.15
28.1.15
Paraíso
O mesmo Padre Antonio Vieira que tanto se bateu contra a escravidão indígena foi o que não apenas defendeu a escravidão africana como chegou ainda a alegar que os negros deveriam ser gratos a Deus por terem vindo cativos para os engenhos da Bahia, onde então puderam ser alcançados pela maravilhosa graça de Cristo por intermédio da Igreja. E se pôde lhes recomendar gratidão a Deus por terem sido arrancados das trevas em que viviam nas brenhas da África, não foi porque desconhecesse ou não admitisse a condição degradante em que se viam metidos desde que eram jogados nos porões dos negreiros, e sim porque considerava que rezar à Virgem fosse remédio suficiente para transformar todo aquele inferno — palavras suas — em paraíso.
22.1.15
Ainda
Passados cinco mil anos de história, e nós ainda aqui, chamando atrocidades de “atos desumanos”...
Diferença
Não se desfaz uma injustiça criada pela pretensão de diferença apenas com a promulgação formal da igualdade. O caminho que levou até a desigualdade mais profunda precisaria ser todo ele refeito agora na direção contrária. Sem o que se muda para continuar na mesma.
10.1.15
Exemplo
Contra o absurdo que é a imposição de valores culturais e religiosos por meios violentos, o exemplo dos povos europeus, que só chegaram a colonizar cada pedaço do globo mediante convite.
9.1.15
A expensas de
Em que altura a blasfêmia deixa de ser crime no Ocidente e se transforma em valor a ser preservado? Quem foram entre nós os que lutaram pelo direito de se referir publicamente e da maneira mais leviana e desrespeitosa possível mesmo e sobretudo às coisas que se reputassem mais sagradas? Desde quando no Ocidente o pecado para o qual não há perdão deixou de ser o pecado contra o Espírito Santo para tornar-se o pecado contra a liberdade? Graças ao empenho de que indivíduos a liberdade se torna o único princípio do qual é indecente abjurar, pelo qual ainda é preciso estar disposto a morrer, sem o qual o Ocidente não é Ocidente? Qual o momento em que uma conquista de resto nem um pouco pacífica de forças secularizantes, e adquirida a expensas de todas as prerrogativas fundamentais da religião cristã, passa a ser um troféu erguido também pelo cristianismo, adorno característico mesmo de seus fiéis, que agora se gabam da parte numa vitória alcançada justamente contra eles?
5.1.15
Geracional
O pai que passou a vida no sofá diante da TV não compreende como pode o filho desperdiçar a sua com a internet.
Começos
Se há uma coisa cuja privacidade não negociamos, essa é o fracasso. Daí as redes sociais serem uma sucessão de começos.
1.1.15
A origem
Quando, no Diálogo em defesa da língua portuguesa — publicado em 1574 por Pero de Magalhães de Gândavo, o mesmo da História da Província de Santa Cruz —, o espanhol contra o qual a língua lusa vai sendo defendida alega que, se a língua portuguesa valesse mesmo o que ele estava dizendo que valia, “cual es la causa porque los mismos portugueses siendo ella suya la desdeñan, y por su boca confiesan ser ella la más tosca y bárbara del mundo?”, ele responde:
Esta nação portuguesa pela maior parte é mais afeiçoada às coisas dos outros reinos que às da sua mesma natureza, coisa que se não acha nas outras nações: porque todas engrandecem sua língua, e fazem muito pelas coisas que quadram nela, só os portugueses parece que negam nesta parte o amor à natureza. E daqui vem muitos a dizerem mal de sua língua, e consentirem na opinião dos estrangeiros, o que realmente se pode atribuir mais a ignorância que a razão alguma que a isso os mova.
Formidável explicação a partir da qual se descobre que todo o problema brasileiro com ser brasileiro, antes de ser um problema nosso, é a continuação do problema já português com não ser primeiro espanhol, depois francês, depois inglês, — e que, por muito paradoxal que pareça, dar as costas a Portugal talvez tenha sido o gesto mais português que o Brasil já realizou.
Formas de voltar
Além de tudo, um livro sobre o “ofício estranho, humilde e altivo, necessário e insuficiente” do escritor (“passar a vida olhando, escrevendo”) e a diferença essencial, na relação com esse “livro ilegível e genuíno” que é a memória, entre o romance (“o reverso [daquele] outro livro imenso e estranho”, “que traduzimos, que traímos pelo hábito de uma prosa passável”) e a poesia (recordação das “imagens em plenitude, sem composições de lugar, sem maiores cenários”, sem “desculpas”), essas duas formas de voltar para casa.
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