O fundo inconsciente de todo conservadorismo é a crença primordial de que determinados gestos são as traves que sustentam o céu sobre as nossas cabeças, impedindo-o de desabar. Ou as coisas continuam da forma como disseram ao conservador que elas sempre foram, ou então o sol se tornará um imenso pedaço de carvão apagado, a lua gotejará sangue, os astros cairão por terra como caspa, e os montes se precipitarão no mar, que enfim escoará até não deixar uma gota.
28.9.15
23.9.15
Origens
Nada explica melhor o Brasil do que a crônica das suas origens. Que outra coisa seria o “negro metido a inglês” lançado em meados do séc. XX por Graciliano Ramos contra Machado de Assis, além de mera atualização contextualizada do seiscentista “um paiaiá mui prezado de ser caramuru”, de Gregório de Matos?
21.9.15
Para sempre
Os contos de fadas operam a popularização medieval do herói mitológico, e o romance, a sua democratização burguesa. O herói romanesco tem nome, genealogia e endereço (ao menos até Kafka), assim como o dos mitos; ao passo que o herói dos contos de fada é a rigor qualquer menino ou menina — “príncipe” ou “princesa” —, filhos de pai e mãe quaisquer — genéricos “reis” e “rainhas” —, habitantes de um reino em geral não identificado em algum lugar “muito, muito distante”. Em outras palavras, porque os burgueses têm a pretensão da singularidade, seus heróis estão condenados ao fracasso, como estão os heróis trágicos; enquanto nos contos de fadas camponeses, satisfeitíssimos no seu anonimato — chamando-se quando muito João ou Maria, essa forma nominal de não ter nome —, lutando apenas contra problemas comezinhos da vida, próprios das existências mais banais — como o ciúme dos irmãos, a negligência dos pais, a perseguição da madrasta —, sem qualquer outra ambição para além de uma monótona sobrevivência, afinal podem, vencendo aqueles imprevistos, sonhar com terminarem “felizes para sempre”.
Volta
Esta parte das Américas também não era cristã quando os portugueses chegaram e vestiram os índios.
19.9.15
Lição
Em sebos, não existe outro meio eficaz de não perder para sempre um livro que se quer, e que por qualquer motivo não se pode comprar, além de escondê-lo, o que mais frequentemente se consegue apenas com trocá-lo de lugar — eu mesmo acabo de esconder um livro sobre o caminho percorrido entre a alquimia e a química, isto é, entre o pensamento mágico e o científico, num canto pouco acessível reservado aos livros sobre animais domésticos. Se há uma lição que importa a um frequentador de sebos, é a de que não convém o desprezo por prateleira alguma, mesmo as menos promissoras, justamente porque quanto mais mal-frequentada uma estante, mais ideal ela é como esconderijo — sem contar que nada impede a um livreiro desavisado colocar um volume do José Guilherme Merquior intitulado O elixir do Apocalipse na seção de escatologia bíblica. E é por isso que de tempos em tempos cada qual deve passar em revista inclusive os livros de gurus ocidentais com apelidos indianos e os romances psicografados pela Zíbia Gasparetto, entre os quais não faz nem quinze dias encontrei escamoteado o Pele negra, máscaras brancas do grande Franz Fanon.
18.9.15
Paródia
Segundo Kierkegaard, a paródia é o último estágio do desenvolvimento de qualquer processo (estágio a que Borges dará o nome de Barroco). Isso trocado em miúdos significaria que, pra Kierkegaard, a burocracia é a paródia das relações humanas, assim como a velhice é a paródia da infância e a dobra é a paródia da linha reta.
Risco ou destino
O grande risco de todo esforço de preservação — se não mesmo seu destino inevitável — é a centralização dos gestos secundários.
17.9.15
Centro
Tratando da alegada facilidade do judeu europeu em adaptar-se ao exílio — “sem pátria mas radicado em um livro”, “em casa em qualquer lugar” —, Claudio Magris acrescenta que era como se para eles “o mundo inteiro fosse um bairro familiar” ou “a rua da infância em que se fala o próprio dialeto”. Imagem esta que, curiosamente, apenas invertida descreve com exatidão os contos de Bashevis Singer, os quais, se não apresentam muito mais do que os reles falantes de iídiche dos bairros judeus de Varsóvia, o fazem como se dessem a conhecer o centro do mundo.
9.9.15
Spinoza
No capítulo final de No tribunal de meu pai, Bashevis Singer menciona brevemente o deslumbramento que, para escândalo da ortodoxia paterna, o panteísmo do anatematizado Spinoza lhe causou. Descoberta da mais suma importância, já que é esse panteísmo que sem dúvida alguma explica a possibilidade da sua obra. Se Deus é tudo quanto existe, logo tudo leva em si a natureza da divindade, mesmo aquilo que há de mais desmerecido sobre a terra, como era a precária existência de tudo que o cercava. Se Spinoza estava certo, Singer não precisava deixar o seu fim de mundo para chegar ao centro, que de repente descobria estar em toda parte. E foi esse encarecimento do todo pela imanência de Deus que — desconfio — lhe permitiu escapar do horror provinciano pelo provincianismo.
Impossível
Não deixam de ser singulares as coisas a que se dão o mesmo nome. Nenhuma situação no mundo é realmente como outra. Os problemas dos homens repelem o rigor fácil das equações. Os dilemas e quem os protagoniza não são intercambiáveis. Cada ação iniciada ou abortada modifica. Jamais duas frases seguidas foram proferidas pela mesma pessoa. Toda incoerência é absolutamente impossível.
7.9.15
Singer
Era limitadíssimo o ambiente do qual Bashevis Singer tirava suas personagens, suas histórias. Chamar provinciano a tudo que o cercava seria generosidade. Mais do que afastado do centro, aquele era um mundo isolado mesmo da periferia. Em seus contos, Singer não escreveu sobre europeus cosmopolitas, também não sobre os poloneses como um todo, e nem mesmo sobre os judeus poloneses em geral, — mas sobre um grupo ainda mais específico de homens e mulheres, fruto de circunstâncias ainda mais estreitamente determinadas: certo tipo, geralmente pobre e deseducado, de judeu polonês adepto do misticismo hassídico — esse grande resquício medieval —, habitante ora de cidadezinhas interioranas, ora de ruas absolutamente insignificantes do subúrbio de Varsóvia. Além de material tão desprestigioso, enclausura-se ainda mais escrevendo em uma língua que a Segunda Guerra deixou praticamente sem leitores. Apesar disso — ou precisamente por isso, quem sabe? —, é tão magnífico, que acaba traduzido para cerca de sessenta idiomas, ilustrando talvez melhor do que nenhum outro autor moderno o preceito tão disputado — atribuído a Tolstoi — segundo o qual a universalidade, em arte, estaria na pintura da própria aldeia.
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