18.12.16

Vida

O compromisso cristão com a vida foi sempre algo tão sério que, na Idade Média, uma mulher grávida condenada à fogueira só podia ser queimada depois do parto.

16.12.16

Alquimia

Na base do pensamento alquímico estaria a crença de que todos os minérios não passam de etapas interrompidas no longo e demorado processo de chegarem a ser ouro; a crença de que os vários tipos de metais devem a existência ao fato de que, a determinada altura, são impedidos pela extração de alcançarem sua destinação final. O trabalho do alquimista, aliás, seria justamente o de retomar esse processo e, por outras vias que não as naturais, abreviar o arrastado tempo geológico. Impossível tomar conhecimento dessa ideia de finalidade progressiva da natureza sem pensar na forma teleológica de pensamento evolucionista que decorre do providencialismo cristão, uma das ideologias mais fundamentais do Ocidente. Trata-se do mesmo princípio, apenas descolado a outro campo: determinada forma biológica, ou cultural, ou social, ou religiosa, ou estética, ou histórica como ouro, isto é, como ápice em relação à qual todas as outras formas são resquícios de estágios a serem superados. Daí que, se isso faz sentido, toda missão civilizatória deseja reproduzir a tarefa alquímica. Assim como o alquimista ambicionava vencer a defasagem da matéria por meio da ação sobre ela, promovendo pelo próprio esforço a eliminação de um caminho progressivo demasiado extenso, o civilizado precisa fazer o mesmo com o mundo. Transmutar o ferro em ouro, o bárbaro em gente, a barbárie em civilização. Guiar os homens ao estado de perfeição aurífera do qual se encontram privados. O alquimista, “salvador fraterno da natureza”; o civilizado, salvador fraterno da humanidade.

Discursos

Segundo Lévi-Strauss, se o discurso é uma mensagem transmitida por um emissor, o sonho é uma mensagem transmitida por um receptor, e o mito, uma mensagem recebida de emissor nenhum.

Segredo

Os leitores de Jó espalhados no tempo e no espaço compõem uma espécie de maçonaria. E da mesma forma que um maçom não aperta a mão de outro maçom sem que ambos saiam do cumprimento sabendo-se confrades, é simplesmente impossível que um leitor de Jó leia as páginas de alguém que também leu Jó sem que isto lhe seja patente.

Problema

O grande problema que o século XIX viu surgir, resumido por Musset: “tudo que era deixou de ser, e tudo que será ainda não é”.

9.12.16

Caverna





















Os historiadores da arte são unânimes em afirmar o caráter mágico da arte rupestre, isto é, em afirmar que o homem paleolítico pintava com a intenção de trazer à realidade, circunstância que explicaria não só o realismo da representação — e não é bonito que algumas das primeiras e mais antigas manifestações artísticas de que se tem notícia sejam “naturalistas”, “fotográficas”? —, como a presença quase exclusiva de alvos e cenas de caça. E tudo isso ganha ainda mais sentido quando se lê, em Eliade, sobre a importância ritual das cavernas. Ora, se a Terra era (e é) compreendida como Mãe, seu interior só poderia ser tomado como ventre. Daí cavernas e grutas serem úteros, as fábricas primordiais de realidades novas.

7.12.16

Estratégica

As pessoas, hoje, se compadecem mais prontamente de animais que de outras pessoas, e, se com facilidade conseguem deixar um semelhante sem comida, já não suportam a ideia de um cãozinho sem xampu. Se não bastasse, um morador de rua cercado de cachorros causa menos indignação do que um morador de rua cercado de filhos. Os filhos acusam a irresponsabilidade, a imprevidência, a bruteza do sexo sem privacidade; enquanto a posse dos bichos, ao contrário, o humaniza, dá testemunho de um coração amoroso, piedoso, solidário. Além do mais, como as pessoas cada vez mais deixam de ter filhos e os substituem por animais de estimação, é muito natural que se identifiquem mais com as lutas de quem tem um cão do que com as lutas de um progenitor. Se eles não querem filhos com que gastar, como vão gastar com os filhos dos outros? Mas a experiência de tirar do desamparo um vira-latinha eles não só a conhecem muito bem, como a consideram a mais digna de recompensa. Ainda mais se a pessoa que o fez não tem o suficiente nem para si. “Precisamos ajudá-lo!”

4.12.16

Reconhecimento

De acordo com o etnógrafo Marco Antonio Gonçalves, para os pirahã, “as coisas não são feitas de uma só vez: passam por etapas, testes e experimentações até atingirem o que são.” Até mesmo Igagai, responsável pela organização do mundo, faz experimentos. Implícito nessa concepção de criação está o risco sempre grande de insucesso. Por isso, dão muita importância ao fazer vagarosamente (maihege) — equivalente a fazer bem-feito —, em oposição ao fazer apressadamente (aiboge) — o mesmo que fazer malfeito. Para os pirahã, eles mesmos fazem as coisas apressadamente, e por isso deixam marcas de imperfeição em tudo. Já os seres sobrenaturais trabalham com vagar, e por isso produzem coisas bem-feitas: “Igagai faz o sol devagar, Apapiuepe faz as estrelas devagar”. Para os pirahã, só existe um outro povo sobre a terra que sabe fazer as coisas tão vagarosamente quanto os seres sobrenaturais, e esse povo não é senão o povo “diaponeso”. Isso mesmo, o povo japonês. Segundo Gonçalves, os pirahã atribuem aos japoneses qualquer produto considerado bom — uma boa máquina fotográfica, um bom gravador, um bom motor de popa —, porque só os japoneses sabem fazer as coisas bem-feitas. — Mas como? Como uma tribo amazônica pôde chegar a ter os japoneses em tão alta conta? O etnógrafo esclarece: os pirahã são uma tribo bastante acostumada a lidar com antropólogos e até mesmo com missionários. Já tiveram entre eles diversos pesquisadores norte-americanos e brasileiros, e uma vez receberam a visita de uma equipe de TV japonesa. A impressão que os japoneses deixaram nos pirahã foi tamanha que, de acordo com Gonçalves, eles chegaram mesmo a criar um mito de origem a partir desse encontro — desse reconhecimento —, que se deu na década de 80. Segundo os pirahã, no princípio de tudo japoneses e pirahã formavam uma única sociedade. Em determinado momento, porém, alguns conflitos dividiram essa sociedade em dois grupos. Um dos grupos ficou onde sempre esteve, enquanto o outro saiu vagando pelo mundo, até se fixar em local muito distante. O grupo que permaneceu deu origem aos pirahã, o grupo que partiu deu origem aos japoneses. Ao longo do tempo, os japoneses foram fazendo muitos experimentos, até que aprenderam a fazer as coisas vagarosamente. E é por isso que tudo que os japoneses fazem, hoje em dia, é muito bem-feito.

Modelo

O que é o Livro de Gênesis, senão a crônica de uma família ao longo de várias gerações? E, como tal, poderia ser outro o modelo (primitivo) para o tipo de romance que tem numa família o grande personagem? Devia ser tamanha a convivência dele com o texto bíblico, que o mesmo Thomas Mann que estreia na literatura, em 1901, com Os Buddenbrook: decadência de uma família vai escrever depois, em 4 volumes publicados durante 16 anos, José e seus irmãos.