30.7.13

Uma questão

Não faz muito tempo descobri, com a leitura do Livro de Travesseiro, de Sei Shônagon, dama de honra de uma imperatriz japonesa do século X — espécie poética de diário, de uma sensibilidade quase única, com incríveis duas traduções diretas para o português —, que os homens e mulheres da corte podiam conversar livremente entre si, desde que separados por um biombo. Não faço a mais mínima ideia de quando o costume terá sido abolido, mas, num dos Contos da palma da mão, de Kawabata, escrito na década de 20 do século passado, encontro o que me pareceu um resquício. Uma jovem personagem feminina, incomodada com a insistência com que o também jovem e apaixonado interlocutor a encara, não vê alternativa senão em esconder o rosto com a manga do quimono, obrigando-o a retratar-se. E vinha com essas coisas na cabeça quando hoje, por acaso, encontro isto.

Gente

O escritor Roberto Arlt chega à cidade do Rio de Janeiro em 1930, onde passará cerca de um ano como correspondente de um jornal argentino. Chega à cidade do Rio de Janeiro e, observador atento, logo perscruta os cariocas. Perscruta os cariocas e de imediato os compara aos portenhos, seus conterrâneos. E não acredita. Esfrega os olhos, aguça a vista, repete toda a operação e não se aguenta, desabando rodriguianamente ao meio-fio, comovidíssimo com estar, pela primeira vez na vida, entre gente. (Os incrédulos que confiram nas crônicas que mandava daqui para Buenos Aires, recém-publicadas em português pela Iluminuras.)

Catábase

De repente nos aparece recurvada e ressequida feito uma árvore morta, tremendo como esta árvore sob um vendaval, mal se aguentando sobre o andador, e pedindo aos gritos, entre ais, que alguém a ajudasse pelo amor de Deus que eu estou passando mal.

Bem à minha frente, aflita como se diante da própria mãe, e indignada com a visão de tamanho desamparo, uma dona, enquanto providencia uma cadeira:

— Mas, minha senhora, a senhora não tem um filho, uma filha?
— Ai, meu filho morreu.
— Mas nem uma cuidadora?
— Tenho. Cuidadora eu tenho.
— E cadê ela, minha senhora?

Ao que a velha, já acomodada e mais calma, com a placidez de quem dá um bom-dia:

— Foi fazer um aborto.

E enquanto cada um de nós se entreolha, duvidoso de que houvesse escutado direito, repete:

— Foi fazer um aborto.

*

Ao mesmo tempo, num canto próximo, o gerente tenta explicar a outro cliente que a dívida que ele (admirado de a ter contraído) questiona se deve unicamente ao fato de ter gastado mais do que recebe. Aparentemente em vão.

29.7.13

Rio

A descoberta da semana é que Melville esteve no Rio de Janeiro, tendo inclusive deixado impressões da cidade em White-Jacket, livro inédito em português.

Mão dupla

A comparação de Albert Camus entre Melville e Kafka, feita num ensaio de 1952 dedicado ao primeiro e reunido em português em A inteligência e o cadafalso, resume incrivelmente bem qual sempre foi minha principal objeção a Jorge Luis Borges, muito embora eu nem soubesse formulá-la. Carapuça que lhe serve nem um pouco por acaso, uma vez que é de conhecimento geral a admiração do argentino pelo que chamava a intemporalidade da obra kafkiana, melhor dizendo, sua autonomia artística frente à história — o fato de não ser possível apontar, por evidência interna, o lugar e a época de seu autor —, algo que para ele era um ideal a ser buscado. Na contramão um do outro, Borges elogia o efeito cuja causa Camus reprova, ficando eu com este último. Outra oportuna coincidência é o francês apontar para os “maiores”, contra uma estética esposada por Borges, cultor confesso de nomes secundários. Os grifos são meus.
Como os maiores artistas, Melville construiu seus símbolos sobre o concreto, e não sobre a matéria do sonho. O criador de mitos só atinge a genialidade na medida em que os inscreve na espessura da realidade, e não nas nuvens fugidias da imaginação. A realidade que Kafka descreve é suscitada pelo símbolo, o fato deriva da imagem; em Melville, o símbolo sai da realidade, a imagem nasce da percepção

Volta (2)

O que os ateus requerem dos cristãos, hoje, não difere do que estes exigiram, ontem, dos pagãos, isto é, o alijamento do mundo que criaram, mais a cessão das instituições aos interesses de um grupo que talvez nem tivesse meios, com seus novos princípios, de as forjar.

Volta

Os ateus fazem agora com a estatuária católica o que os católicos fizeram no passado com a estatuária pagã. E o que fez o bispo da Universal contra a Virgem, já o bispo de Alexandria havia feito com Serápis, e com o mesmo fim: “Reparem aqui como nada acontece.”

26.7.13

Solução

O Senhor feriu a criança que a mulher de Urias dera a Davi, de sorte que adoeceu gravemente. Davi implorou a Deus pelo menino: observou rigoroso jejum e, recolhendo-se, passava as noites prostrado sobre a terra. Os dignitários de sua casa iam ter com ele para o levantar do chão, mas este se recusava, nada comendo. No sétimo dia, o menino morreu. Os servos de Davi tinham receio de lhe dar a notícia. Diziam: “Quando a criança estava viva, eram inúteis nossos consolos. Como lhe diremos agora que a criança morreu? Poderá cometer um desatino.” Davi notou que seus servos cochichavam entre si e compreendeu que a criança havia morrido. Perguntou-lhes Davi: “O menino morreu?”, e eles responderam: “Sim.” Então Davi se levantou do chão, lavou-se, ungiu-se, mudou de vestes e, entrando na casa do Senhor, adorou. Depois voltou, mandou que lhe servissem a refeição e comeu.

2 Samuel 12:15-20.

Segredo

Um papa que, de tão jesuíta, até por franciscano se passasse. 

24.7.13

Melville

Um dos únicos parágrafos de Lévi-Strauss que já li dizia que a função da Antropologia era a de nos mostrar que há no mundo outras muitas formas possíveis de se viver além da nossa. E é nisso que reside, penso, o maior valor de Taipi, romance de estreia de Herman Melville e livro responsável pelo reconhecimento que teve ainda em vida. Enquanto Moby Dick — que de início passou despercebido da crítica e do público — se concentra na caça à baleia e, por conseguinte, na vida ao mar, Taipi se passa numa das ilhas do Pacífico, na qual o autor tem sua estadia entre os nativos, depois de fugir das más condições de serviço do navio americano em que havia embarcado. E o que prometia ser, pelos primeiros capítulos, um simples e previsível livro de aventura entre canibais (de como o herói escapa às vésperas de ser cozinhado), acaba se revelando uma valiosa etnografia. É verdade que há ficcionalização — lembremos que nosso narrador não é Melville, mas Tomo —, além de elementos romanescos — conseguirá a dupla escapar à tripulação do navio que abandona? sobreviverão ao tempo na floresta, sem muitas provisões? por quem o vale no qual descem é habitado, pelos temíveis taipis ou pelos benignos hapars? o que terá acontecido a Toby? qual o interesse dos nativos por trás da recusa em liberá-lo? afinal, como Tomo escapará? —, elementos que, se nos faltassem, não diminuiriam em nada o interesse pela obra, dada a satisfação que se encontra na mera descrição dos hábitos, do temperamento, do caráter, das festas, das relações sociais etc. dessa tribo polinésia entre a qual Melville teria permanecido cerca de dois meses. Todo um novo universo, sob muitos aspectos admirável, por meio do qual o narrador questiona o dos civilizados, sobretudo em seus esforços missionários: “Se fôssemos julgar a civilização por alguns de seus resultados, talvez conviesse mais, ao que chamamos de parte bárbara do mundo, que continuasse mergulhada em sua condição.” E se no Melville de Moby Dick encontramos um equivalente do nosso Euclides — pela valorização dos párias —, pode-se ver no Melville de Taipi — com sua solidariedade para com os selvagens — uma espécie de Darcy Ribeiro.

22.7.13

Impossibilidade

Há impossibilidades nas quais só acreditam os que as defendem e os que as combatem. 

Providência

Kierkegaard fala do sujeito que, pensando em suicídio, dá muitas graças a Deus pela queda de um jarro que lhe arrebenta a cabeça.

21.7.13

A vida

Sairmos a resolver determinada coisa e, nos ocupando com uma série interminável de outras, voltarmos sem a única que nos tirou de casa. 

Uma tarde

Quanto menor minha disposição para leitura, maior o número de livros com que me cerco.

20.7.13

Semelhanças

Dentre as muitas semelhanças entre os polinésios, como descritos por Melville em Taipi, e os índios brasileiros, segundo as descrições de um Cardim e de um Gandavo — o asseio, a indolência, a licenciosidade, a nudez, as frequentes guerras, os rivais permanentes, a antropofagia, as bebidas narcóticas, o fumo, a hospitalidade etc. —, uma diferença chama a atenção: as técnicas utilizadas na pintura corporal, também presente em ambos. Enquanto os daqui pintavam-se de modo temporário e para cada ocasião, os de lá iam-se tatuando progressivamente até chegarem à velhice com a pele completamente coberta.

19.7.13

Typee

O problema dos romances não é serem demasiado longos. Definitivamente, o problema dos romances é não serem escritos por Melville.

Orgulho

Há no orgulho corporativista, pelo menos, um limite. Andam frequentemente armados contra os de fora, é verdade, mas sempre na defensiva. Acham-se os guardiães dos sagrados princípios de determinada ciência, mas só ostentam o fato se desafiados. Do contrário, vivem lá suas vidinhas, encastelados, limitadíssimos em alcance direto. Para todos os efeitos, alguém é bom não porque seja um deus caminhando sobre a terra, mas porque afinal foi aceito como membro. Porque afinal foi reconhecido como par. Porque, na sua insignificância, o tomaram por igual. E se não acreditam que ele tenha de fato algum valor, lá está sua titulação como prova. E isso é tudo. Enquanto no orgulho do isolamento, por sua vez, impera a desmedida. Ao solitário, nada há que o garanta, nem quem, motivo pelo qual não vive sem afirmar-se. Sem o parâmetro apaziguador da aceitação institucional, ao solitário não resta senão o ataque desmoralizante. Nessa condição, alguém é bom não porque tenha sido aceito num clubinho de medíocres. Alguém é bom não porque tenha se conchavado, elogiando para ser mais adiante elogiado. Ou porque se familiarizou com uma bibliografiazinha estreita e defasada. Ele é bom porque sabe mais, e leu mais, e produziu mais do que todos os acadêmicos juntos jamais produzirão, lerão e saberão em toda a vida.

18.7.13

Extraterritorial

A imagem mais alta que alguns fazem contemporaneamente do escritor — o escritor-escritor, sem comprometedoras concessões ao meio — é, curiosamente, a de certo tipo de judeu — desterrado, habitante das línguas, dos livros, da memória, — numa estranha promoção da contingência em ideal.

17.7.13

Hipótese

Os poetas de importância talvez se dividam entre aqueles cujos versos justificam a existência das palavras com que os compõem e aqueles outros, ainda maiores, que justificam a existência das próprias línguas como um todo. Um exemplo vernáculo. Era pois preciso que existissem no português as palavras sal, mar, salgado, lágrima, Portugal — e que tais significantes tivessem os significados que têm —, porque não poderia nos faltar a mais famosa pergunta retórica de Mensagem. Como era preciso que a língua portuguesa existisse exatamente como é, nem pior nem melhor, pra que fosse possível um Lusíadas.

Sentido

Revisar, em alguma medida: ser capaz de reconhecer a presença de um sentido que muitas vezes escapa.

16.7.13

Vocação

Não tinha vocação para otário, como um padre a quem faltasse a do sacerdócio. 

13.7.13

Indiferença

Alguém que só trocasse de roupa por razões exclusivamente higiênicas. 

Nunca mais

O carioca só é assim tão receptivo naqueles primeiros contatos que são também os últimos. 

Primeira vista

É natural que se insista na importância das capas etc., mas quantas descobertas não devemos à boa disposição das lombadas, com seus bons títulos e sobrenomes curiosos?

4.7.13

Solução?

Dois versos de Amado Nervo, poeta mexicano, —
Digo a la vida: ¡sé piadosa, vuela!
Digo a la muerte: ¡sé piadosa, tarda! —,
que me fizeram lembrar outros dois versos bíblicos, já muito queridos:
Quando me deito, penso: “Quando virá o dia?”
Ao me levantar: “Quando chegará a noite?”

3.7.13

Nocaute

Julio Cortázar utiliza duas já famosas comparações para chegar a uma ideia geral do que lhe parece o conto. E o curioso é que ambas se aplicam também, e talvez até com mais propriedade, a formas literárias ainda mais breves, como por exemplo o aforismo. Em “Alguns aspectos do conto”, ele primeiro trata da semelhança do contista com o fotógrafo, cuja pretensão é a de “recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla”, — diferentemente do romancista, mais próximo do cineasta no esgotamento do assunto, com uma obra aberta, distendida. Se, tal como o fotógrafo, o contista tem os limites do foco, mais ainda o aforista, dependente de uma tensão explosiva ainda maior. Logo depois os compara (romance e conto) ao boxe. O romancista, trabalhando cumulativamente, tergiversando, digressionando, indo e vindo, ganharia por pontos, ao fim de longos doze assaltos, — enquanto o contista, mais incisivo, na ofensiva desde as primeiras linhas, sem desperdício de movimento, parte em busca do nocaute. Nocaute esse que o aforista alcança, — se o alcança —, não apenas ainda no primeiro assalto, como em geral com um só golpe.

2.7.13

Borges

Lembro de ter lido um breve ensaio em que se acusavam os partidários de Flaubert de lhe pagarem tributo não pelo conjunto da obra, — para o autor, além de escassa, de pouquíssimo mérito, com apenas um único êxito relativo —, e sim pela figura do escritor atormentado, noites e mais noites insone por causa de uma mísera palavra que não lhe parecia exata — o Flaubert das cartas. E o que não passa de provocação dito sobre os leitores do francês, acaba de muita justiça se aplicado aos de Borges, cuja obra, derivativa, metaliterária, é qualquer coisa de mais ou menos dispensável — valendo antes como método. Todos os quase-contos, falsos-ensaios, parábolas, pesadelos e poemas, por maiores as intuições que contenham, não se comparam em importância à figura emblemática do leitor cuja memória impede a distinção entre o sonhado e o testemunhado; à figura do frequentador daquela biblioteca infinita, universal, depositária do passado dos homens, o qual maneja com toda liberdade; à do leitor capaz de negligenciar, arbitrariamente, alguns dos melhores escritores de sempre, praticantes de um gênero que despreza, ao passo que se aferra a nomes secundários, às vezes obscuros, tão obscuros quanto os temas de que trata; à figura do latino-americano que não deixa nunca de ser um europeu desterrado e jamais se imiscui; à do erudito excêntrico, sem pejo algum de não ler o grego nem o latim, que se gaba de ter esquecido, enquanto estuda o anglo-saxão...