29.5.15

O trono, a coroa

Sem ter o que fazer, observou o carro de lixo e logo tentou empurrá-lo, acabando apoiado nos varais. A montanha de lixo tremeu, deixando escorregar pelos lados avalanches de cascas, verdes e vermelhas. Descobrindo afinal uma utilidade, Fraji pôs o pé direito sobre uma das rodas, segurou-se na grade e subiu. Hesitante, enfiou suas perninhas no lixo podre e retesou-se. Olhou em torno de si: via-se mais alto que todos nós, mais alto que o mundo inteiro, sobre um trono multicor de papéis amarrotados, cascas de ovo e legumes. Desassossegadas, as moscas verdes e douradas aureolavam-no de uma coroa movediça, que brilhava ao sol. Então, levantou os braços ao céu e gritou, convencido como um galo: — Eu sou o rei! Eu sou o rei!

— Albert Memmi, A estátua de sal.

Heterogeneidade

Há tantas direitas no Brasil quantos são os motivos de autodesprezo. 

Grande marcha

Grande marcha em favor do que ninguém é contra.

Providências

Todas as vezes que acredito ter algo de muito importante a comunicar, a primeira providência que tomo é garantir que não haja quem me escute. A segunda é permanecer calado.

Passado

Duas perguntas que nunca se devem fazer a um homem: o que ele cometeu para ser preso, como ele adquiriu sua fortuna.

28.5.15

Extemporânea

Octavio Paz sobre o lugar da poesia no mundo moderno:
Em toda sociedade funciona um sistema de proibições e autorizações: o domínio do que se pode fazer e do que não se pode fazer. Há outra esfera, geralmente mais ampla, dividida também em duas zonas: o que se pode dizer e o que não se pode dizer. As autorizações e as proibições compreendem uma gama rica de matizes e que varia de sociedade para sociedade. Não obstante, umas e outras podem dividir-se em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição implícita é a mais poderosa: é o que “por sabido se cala”, o que se obedece automaticamente e sem reflexão. O sistema de repressões vigente em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que sequer requerem o assentimento de nossa consciência./ No mundo moderno, o sistema de autorizações e proibições implícitas exerce influência sobre os autores por meio dos leitores. Um autor não lido é um autor vítima da pior censura: a da indiferença. É uma censura mais efetiva que a do Índice eclesiástico. Não é impossível que a impopularidade de certos gêneros — a da poesia, por exemplo, desde Baudelaire e dos simbolistas — seja o resultado de uma censura implícita da sociedade democrática e progressista. O racionalismo burguês é, por assim dizer, constitucionalmente avesso à poesia. Daí que a poesia, desde as origens da era moderna — ou seja: desde o fim do século XVIII — se tenha manifestado como rebelião. A poesia não é um gênero moderno, sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro. É verdade, alguns poetas têm crido sincera e apaixonadamente nas ideias progressistas, mas o que dizem realmente suas obras é algo muito diferente. A poesia, qualquer que seja o conteúdo manifesto do poema, é sempre uma transgressão da racionalidade e da moralidade da sociedade burguesa. Nossa sociedade crê na história — periódicos, rádio, televisão: o agora — e a poesia é, por natureza, extemporânea.

23.5.15

Solução

Para a segurança das pessoas de bem — que até podem ser assassinadas, desde que por outras pessoas de bem —, fazer de cada morro e favela um presídio de segurança máxima, espécie de bairro penitenciário com uma única entrada e saída estritamente controlada pela polícia, do qual seus moradores só pudessem sair, depois de minuciosamente revistados e com hora certa para voltar, mediante a apresentação de um passaporte, no caso um documento que lhes comprovasse o subemprego. 

22.5.15

Homens do mundo

De A fazenda africana, da baronesa Karen Blixen (dinamarquesa que viveu por 17 anos numa fazenda de café no Quênia), livro que tem duas traduções para o português, uma já antiga do Per Johns e outra mais recente pela Cosac Naify:
A falta de preconceito dos nativos é uma coisa extraordinária para quem espera encontrar os tenebrosos tabus dos povos primitivos. Ela se deve, acredito, ao seu contato com uma grande variedade de raças e tribos, e ao animado intercâmbio humano de que a África Oriental foi palco, trazido primeiro pelos antigos mercadores de marfim e de escravos e, em nossos dias, pelos colonos e aventureiros. Quase todos os nativos, até o mais insignificante jovem pastor das planícies, teve em algum momento contato com uma enorme variedade de nações, tão diferentes entre si e em relação a ele, como um siciliano é diferente de um esquimó: ingleses, judeus, bôeres, árabes, indianos, somalis, suaílis, massais e kavirondos. No que concerne à receptividade de ideias, o nativo é mais homem do mundo do que o colono ou missionário suburbano ou provinciano, que se desenvolveu numa comunidade uniforme, com um conjunto estável de ideias. Em grande parte os desentendimentos entre brancos e nativos decorrem desse fato.

21.5.15

A volta

Nunca sair de um local para onde não se gostaria de voltar. 

No princípio (2)

É muito compreensível que os hebreus — um povo nômade — tenham concebido o castigo pelo pecado sob a forma de expulsão de um paraíso. Concepção compreensível no caso deles, mas que faria pouquíssimo sentido para outros povos — sedentários, moradores de regiões férteis —, em cujos mitos, não por acaso, é relativamente frequente a figura do deus criador que, ante a desobediência dos homens, em vez de expulsá-los de sua presença, antes os abandona à própria sorte retirando-se de entre eles. De fato: como poderiam supor que haviam sido expulsos de um jardim, se continuavam a viver em meio a um?

No princípio

No mito suaíli da criação do mundo — de inspiração islâmica, aparentemente sufi —, Deus ama tanto a alma de Maomé que acaba de moldar a partir da luz, que então decide criar os homens só para que tivesse a quem enviá-lo. Depois, cria para si um trono coberto por um tapete que se estende pelos céus até o limite do espaço, feito com as cores do arco-íris. A terceira coisa que Deus cria é uma tábua imensa que contém a descrição completa e detalhada de rigorosamente todos os eventos, assim do passado como do futuro. Essa tábua é chamada a Mãe dos Livros, porque todos os livros escritos, em todas as línguas, contêm apenas fragmentos de seu conteúdo. Dentre os vários anjos que residem no céu, há um anjo de mil cabeças, com mil bocas em cada cabeça, e cada boca proclamando a glória de Deus em um idioma diferente. Além desse anjo, chama a atenção um outro, cuja metade esquerda é de fogo e a direita é de neve, e a neve não apaga o fogo nem o fogo derrete a neve, porque sob as ordens de Deus a conciliação dos contrários é possível, razão pela qual os homens coexistem.

18.5.15

Constante

A grande constante da experiência humana: a violência. As guerras têm nome porque são familiares como os filhos. Quase nunca cessam, já que não há no mundo um único empenho que, quando menos, não as justifique. Inclusive e sobretudo o empenho pela paz, cujo sentido, não por acaso, dá-se por via negativa: breve intervalo de tempo estranhamente caracterizado pela ausência das agressões que o possibilitaram.  

17.5.15

Da utilidade

Sobre o “Canto de Débora” — poema do capítulo 5 de Juízes, em celebração a uma vitória dos invasores hebreus contra os habitantes locais —, oferece o assiriólogo francês Jean Bottéro, em Nascimento de Deus: a Bíblia e o historiador, uma grande refutação da ideia segundo a qual a poesia é inútil:
Tratava-se apenas de um punhado de homens, microscópicos, perdidos num momento qualquer da história, que lutavam sob a chuva por um lote de terra, sem que a ridícula agitação que faziam tivesse, na verdade, contribuição alguma para o homem e seu progresso, e que permaneceriam, eles e sua agitação, escondidos e esquecidos, como infinitos outros, sob a poeira do tempo, se esse canto imortal não os alçasse a um plano cósmico, universal e eterno, e os transformasse, aos olhos dos leitores, num momento crucial da história do mundo.

16.5.15

Leitura

Nenhuma leitura merece tanta desconfiança quanto aquelas que nos corroboram.