Os autores que Montaigne mais cita são os filósofos e os historiadores gregos e romanos: Plutarco, Sêneca, Platão, Cícero, Aristóteles, Suetônio, e por aí vai. Também cita muito os poetas latinos: Horácio, Juvenal, Virgílio, Ovidio, Lucrécio. Muito mais raramente Montaigne recorre a alguma autoridade cristã. E, quando o faz, é sempre a propósito de alguma coisa muito inesperada, esdrúxula até, quase absurda. Quando cita Santo Agostinho é para mostrá-lo afirmando o domínio da vontade sobre o corpo com o exemplo de um homem capaz de soltar sonoros gases intestinais a hora que bem entendesse. E corrobora o testemunho do santo com o de um célebre comentarista que sabia de alguém que, além disso, o fazia ainda no tom estipulado. Em outro ensaio, Montaigne apresenta São Tomás de Aquino afirmando que um dos motivos pelos quais as relações incestuosas são proibidas é que Deus não queria uma vinculação assim tão grande entre homem e mulher, o que inevitavelmente aconteceria em casais formados por pessoas tão próximas quanto parentes. Mais adiante, dá o exemplo de Santo Hilário, que, com medo de precisar casar a filha que gostaria de ver consagrada à vida religiosa, pede muito a Deus que a mate.
3.10.20
As autoridades cristãs de Montaigne
27.9.20
A vida é sonho: As Mil e Uma Noites, Calderón de la Barca e Liezi
Badruddin é levado enquanto dorme de uma cidade a outra para se casar com a prima, de cuja cama na mesma noite é retirado durante o sono para acordar numa terceira cidade, onde vive 17 anos até ser reunido novamente à mulher. Isso em As Mil e Uma Noites.
Em A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca, o filho de um rei é criado desde o nascimento num calabouço, do qual um dia é retirado enquanto dorme para ser reconhecido filho do rei, posição da qual é logo depois levado dormindo de volta ao calabouço.
Antes de tudo isso, Liezi conta do rei que sonhava todas as noites que era escravo e do escravo que sonhava todas as noites que era rei.
26.9.20
A história arquetípica da imaginação islâmica
Ao tomar conhecimento da traição da
mulher, um sultão decide que mandará matar ao amanhecer cada mulher com a qual
tiver se casado na noite anterior. E assim o faz, até que Xerazade tem um plano. E o
plano de Xerazade para manter-se viva é contar ao sultão a reencenação
interminável da própria condição. A cada noite Xerazade retoma a história
interrompida ao fim da noite anterior, quase invariavelmente a história de alguém que
conta uma história para escapar da morte, tantas vezes envolvendo mulheres
adúlteras. No fundo de todas as histórias, ressoando, a história arquetípica da
imaginação islâmica: a história de José. Aquele que escapa da morte e leva a
melhor sobre os que o queriam matar. Aquele que escapa do poço e chega ao
trono. Nesse sentido, José seria o primeiro conto escrito das Mil
e Uma Noites. Primeiro e talvez único: o conto que — como o quarto do
palácio de cem quartos dentro do qual há outro palácio de cem quartos — contém todos
os outros. Um conto com tanto poder sobre a imaginação islâmica, que a ele tiveram de acomodar até mesmo a história de Cristo, o qual não poderia senão ter escapado, na última hora,
de morrer sobre a cruz.
21.9.20
Novo Mundo, Américo Vespúcio
Américo Vespúcio se diferencia dos demais cronistas do “descobrimento”
por não ser um simples marinheiro como Hans Staden, nem um alucinado como
Colombo, nem um padre como Thevet, nem um pastor calvinista como Léry, nem um
propagandista da colonização portuguesa como Soares de Sousa, mas o mais
próximo de um humanista que pisou ainda muito cedo nestas terras. É dessa
educação literária que tira ele a certeza de que as Índias a que Colombo jurava
ter chegado eram na verdade uma porção de terra desconhecida dos antigos e que, não
se tratando de uma ilha, configurava um Mundus Novus. Esse Américo Vespúcio,
que discute tecnicamente nas cartas as coordenadas astronômicas das viagens,
afirma ter ido para a Espanha, de Florença, para ser um mercador; e que, após
quatro anos de trabalho comercial, decidiu abandonar a busca sempre tão incerta
de lucro pelo conhecimento dignificante das coisas ignotas. Essa circunstância
pessoal explicaria a natureza econômica de dois comentários muito interessantes para os quais gostaria de atentar. Numa das
cartas, Vespúcio diminui a circum-navegação portuguesa da África até as
Índias, porque toda ela feita sem nunca se perder de vista a costa africana, o que, na
avaliação do navegador florentino, tornava-a muito menos meritória do que
qualquer viagem através do Atlântico, através do Desconhecido. A não ser por um aspecto: o econômico, ao qual
infelizmente — segundo ele — então se dava importância excessiva. Vespúcio está
dizendo que, mesmo sem nenhum achado imediatamente lucrativo, a chegada ao
Novo Mundo teve mais valor do que a grande vitória comercial que chegar à Índia
por mar deu a Portugal. Mas uma outra observação vespuciana acaba em
contradição com o critério do heroísmo. Em outra carta, chama ele
atenção para a total falta de motivação
política e econômica das guerras entre os povos indígenas das costas brasileiras.
De acordo com a observação de Vespúcio, os nativos estranhamente não lutavam nem pela
aquisição de novos territórios, nem pelo aumento de riquezas, nem por nada que
em geral leva os povos a lutarem entre si. As tribos inimigas enfrentavam-se até a morte de alguns e o aprisionamento de outros,
e depois voltavam cada qual para a sua casa. E
quando era de se esperar que Vespúcio louvasse a desconsideração econômica da
guerra indígena, da mesma forma que louvou a desconsideração econômica das próprias viagens a este lado do Atlântico, o florentino saiu-se com uma queixa à “crueldade” desses povos,
a qual estaria na base da gratuidade dessas guerras. Trata-se de um juízo tão
inconsequente, que foi inevitável que Montaigne, no famoso ensaio que certamente teve como uma das fontes as cartas de Vespúcio, desfizesse a referida incoerência
ao afirmar a nobreza da guerra indígena, absolutamente livre de causa
tão espúria como o lucro.
11.9.20
A imaginação islâmica na literatura medieval
Quando o espanhol Asín Palacios publicou, em 1919, seu estudo a respeito das fontes islâmicas da Divina Comédia, O Livro da Escada de Maomé ainda não havia sido redescoberto. Diz-se que, nesse texto árabe que foi traduzido na Europa pouco antes do nascimento de Dante, Maomé aparece guiado através do Inferno e do Céu pelo anjo Gabriel.
Se em A Linguagem dos Pássaros, poema do persa Farid ud-Din Attar (século XII), os pássaros partem reunidos em busca do Simorg, o rei dos pássaros, no Livro das Bestas (1286), do catalão Raimundo Lúlio, são os animais em geral que se reúnem para eleger um rei.
Se no poema de Attar é a Poupa quem dá o sermão aos pássaros, nos Fioretti de São Francisco (século XIV) o pregador aos pássaros é o próprio santo de Assis.
Aliás, da mesma forma que os pássaros de Attar saem em demanda do Simorg, os cavaleiros da Távola Redonda sairão na Demanda do Santo Graal. Muitas aventuras da Demanda inclusive se assemelham a aventuras, igualmente fantásticas, das Mil e Uma Noites.
No conto “A princesa apaixonada pelo escravo”, do poema de Attar, bem como no conto de Badrudin das Mil e Uma Noites, um personagem é apresentado a determinada realidade como a um sonho, da qual depois é tirado como se dela despertasse, o que é o cerne da peça A Vida é Sonho (1635), de Calderón de la Barca.
Além disso, há a questão da moldura, uma das principais características da velha narrativa islâmica: a narração de uma situação maior dentro da qual os contos são narrados (As Mil e Uma Noites, A Linguagem dos Pássaros, Kalila e Dimna são todos assim). E é justamente esse o procedimento de grandes coleções europeias medievais, como Os Contos de Cantuária e também o Decamerão (os dois do século XIV). Os Contos de Cantuária, aliás, têm com A Linguagem dos Pássaros o fato de a moldura de ambos os livros ser uma peregrinação, no livro persa ao Simorg, no livro inglês à Catedral de Cantuária.
Há ainda o Libro de Buen Amor (século XIV), do Arcipreste de Hita, escrito no espírito do clássico Kalila e Dimna, essa coleção de fábulas e exemplos morais traduzida para o árabe no século VIII a partir da versão persa de um antigo livro indiano.
Sem falar no Quixote, onde o próprio Cervantes brinca com a origem árabe da história.
3.9.20
A Epopeia de Gilgamesh
15.5.20
Metáforas náuticas
Diários da Descoberta da América, Cristóvão Colombo
É muito significativo que o primeiro europeu a pisar em solo sul-americano não apenas planejava chegar a outro lugar, como acreditou que estava nesse outro lugar o tempo inteiro em que esteve aqui. Desde o primeiro momento a nossa parte das Américas parece condenada a não mais existir por e para si. Seja como for, esse europeu — mescla de doido, místico e charlatão — foi, segundo o juízo mais benevolente, uma espécie de Quixote avant la lettre. Havia lido tantos relatos antigos de viagem ao Oriente, que também queria sair e realizar a própria, mesmo contra o descrédito de todos. Vivia tão alucinado por essas leituras, que enxergava a realidade por meio delas, imune a qualquer prova em contrário. O que poderia a disposição geográfica do globo terrestre contra a força da cartografia fantástica de seus estudos? (Aliás, como não chorar com o mapa de Toscanelli, pelo qual Colombo se guiava?) Se Aristóteles dizia que “este mundo é pequeno e a porção de água é muito escassa”, então da Europa até o Oriente pelo Atlântico tinha de ser um pulo. Dessa forma, havendo planejado alcançar a Índia navegando rumo ao Poente (algo que os conhecimentos náuticos da época já suspeitavam não ser possível), Colombo chega às ilhas do Caribe acreditando estar em Cipango, o Japão, portanto muito próximo de realizar o sonho de encontrar o Grande Cã. Então o testemunhamos, ao longo do diário, enxergar Cipango na ilha de Cuba da mesmíssima forma que, um século depois, Cervantes imaginará o Quixote enxergando gigantes em moinhos de vento, donzelas em meretrizes, e assim por diante. Não satisfeito, à medida que a confiança e os favores da coroa espanhola diminuem, Colombo não apenas mantém a inabalável certeza de seu feito, como o encarece ainda mais. Porque, se regressou da primeira viagem afirmando ter chegado aos confins do Oriente, as viagens seguintes (ao todo foram quatro) o tornaram convicto de ter achado nada menos que a localização geográfica do Paraíso, perdida desde a expulsão de Adão e Eva, e não apenas isso, mas também a fonte de todo o ouro do Oriente, do qual davam notícia tanto as Sagradas Escrituras quanto a segunda Bíblia que tinha, o livro de Marco Polo.
11.5.20
Duas associações indevidas
9.5.20
Lutero
Escrita, esquecimento, memória
Reforma religiosa e reforma linguística
A história da humanidade conforme contada pelos assassinos
Lucro e prejuízo
O velho Rousseau, novo Adão
Escrita e burocracia divina
Os Patriarcas
O marinheiro que perdeu as graças do mar, Yukio Mishima
Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
3.5.20
Romance e paródia
2.5.20
A prioridade daquele que vem depois
A impotência perante as coisas
A maneira correta de roubar
Sonho vingativo
Último refúgio do profetismo
Vida aglomerada de inseto
Toda vez que me vejo no meio de uma multidão, penso em insetos. Não sou o primeiro a observar a semelhança, mas levo um susto sempre que confirmo essa impressão. Uma recepção oficial é um exemplo de um mundo de insetos que se debatem entre si — os vestidos enormes das mulheres têm as cores brilhantes das asas dos besouros e os homens de fraque parecem besouros pretos que passeiam pelo esterco. Diante dos bufês sempre cheios, as pessoas devoram a comida como se fossem insetos. Misteriosamente, ninguém consegue manter-se à margem, a pessoa é levada, empurrada a se comportar subitamente como um besouro faminto, seguindo o exemplo das outras pessoas presentes.