Milan Kundera está todo em Robert Musil, o que ele não só não elude como sugere. Em entrevista a Paris Review, por exemplo, aponta como único equívoco do austríaco o ter feito de Um homem sem qualidades uma obra inabarcável, — erro que ele presumivelmente busca corrigir escrevendo inúmeros romances de tamanho razoável embora de fundo praticamente indistinguível — romances os quais, ao fim e ao cabo, redundam no mesmo e interminável livro de Musil, agora fasciculado. Outro indício é ele dizer, na sequência da mesma entrevista, que seus livros todos poderiam muito bem intitular-se, indiferentemente, ou A insustentável leveza do ser, ou Risíveis amores, ou A brincadeira, desde que giram sempre sobre as mesmas questões, variam sobre os mesmos temas e — acrescento eu — são um só.
18.12.13
A importância
O chefe
É diretor de uma grande indústria, tem mais de sessenta anos, levanta às seis horas, tanto no verão como no inverno, às sete já está na fábrica, onde permanece até às oito horas da noite ou mais. Mesmo aos domingos vai trabalhar, embora as oficinas e os escritórios estejam desertos. Mas vai uma hora mais tarde, o que considera quase um vício. É um homem essencialmente sério, raramente ri, nunca ri. No verão concede a si mesmo, mas nem sempre, uma semana de férias na casa à beira do lago. Não conhece nenhum tipo de fraqueza, não fuma, não toma café, não bebe, não lê romances. Não tolera fraquezas nem nos outros. Imagina-se importante. É importantíssimo. Diz coisas importantes. Tem amigos importantes. Só dá telefonemas importantes. Mesmo suas brincadeiras em família são muito importantes. Considera-se indispensável. É indispensável. O enterro será amanhã às 14:30 horas, saindo o féretro da casa do falecido.
BUZZATI, Dino. As noites difíceis. Trad. de Fulvia M. L. Moretto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 102.
10.12.13
9.12.13
“Vil e calamitoso mundo nosso”
CAPÍTULO CINCO
A cinco de novembro de 1718, que, para a época fixada, estava tão perto dos nove meses do calendário quanto qualquer marido teria podido razoavelmente esperar, -- eu, Tristram Shandy, Cavalheiro, fui trazido a este vil e calamitoso mundo nosso. ---- Gostaria antes de ter nascido na Lua, ou em qualquer dos planetas (exceto Júpiter ou Saturno, porque nunca pude suportar clima frio), pois não é de esperar fosse eu dar-me pior em qualquer um deles (embora não responda por Vênus) do que neste nosso vil e sujo planeta, -- o qual, em plena consciência e com a devida vênia se diga, julgo eu tenha sido feito dos frangalhos e aparas dos demais; ---- não que o planeta não sirva bem a quem nele possa ter nascido para herdar um grande título ou grandes propriedades; ou possa, de algum modo, dar um jeito de ser chamado a exercer cargos públicos e empregos aureolados de dignidade ou poder; -- este porém não é o meu caso; ---- e por isso cada um falará da feira de acordo com o que nela tiver vendido; ---- pelo que de novo afirmo ser este um dos mundos mais vis jamais feitos; -- pois posso verdadeiramente dizer que desde a primeira hora em que nele respirei até agora, em que mal posso respirá-lo por causa de uma asma apanhada por ter patinado contra o vento de Flandres; -- tenho sido contínuo joguete daquilo a que o mundo chama Fortuna; e conquanto não a difame dizendo que me tivesse feito algum dia sentir o peso de qualquer grande ou assinalado mal; ---- mesmo assim, com a melhor disposição do mundo, digo, dela, que em todos os estágios de minha existência, e a cada volta e esquina em que me podia favoravelmente tratar, essa descortês Duquesa castigou-me com uma série de lamentáveis infortúnios e acidentes adversos quais nenhum pequeno HERÓI jamais enfrentou.
STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Tradução, introdução e notas de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 52.
6.12.13
Pessoas
Há pessoas que são ônibus-pra-Usina, isto é, pessoas que vemos partir com indiferença e atrás das quais ninguém corre. Outras, porém, são verdadeiros ônibus-pra-Barra, pessoas que até podemos perder, mas não antes dos esforços mais vexatórios e sem a frustração mais doída.
4.12.13
Elo desperdiçado
O romance realista do século XIX não apenas não é o romance, como talvez nem tenha sido tudo quanto este pôde e pode ser. Quem o alega é Milan Kundera. Paralelamente a Dickens, Balzac, Flaubert, Tolstoi e Dostoiévski, figuraria em segundo plano outra linhagem encabeçada por Rabelais, Cervantes, Fielding, Sterne e Diderot. Linhagem esta à qual pertenceria — fico pensando — Machado de Assis, que, se sai perdendo quando comparado aos primeiros (de onde a lenda do Machado de Assis que não sabia escrever romances, o Machado de Assis melhor contista do que romancista), nada fica devendo em liberdade aos segundos. Dessa outra perspectiva, o autor de Memórias Póstumas passa não só de “romancista defeituoso” a nobre continuador da vertente mais original do romance, como chega mesmo a ser, pela oposição ostensiva à quase obrigatória “ilusão de realidade” oitocentista, um antecipador do modernismo: Machado de Assis, por esse ângulo, teve ainda no século XIX e neste fim de mundo nosso uma concepção de literatura que os próprios europeus só vão retomar a sério, e recorrendo às mesmas fontes, nas décadas iniciais do século XX. Um verdadeiro elo desperdiçado.
30.11.13
A intenção
A intenção é o horizonte
mas a linha que se alcança
é a do papel, por mais
que force a vista, a mão.
No meio, porém, o mar não pára
tendo como pé-direito, o céu.
(Armando Freitas Filho)
mas a linha que se alcança
é a do papel, por mais
que force a vista, a mão.
No meio, porém, o mar não pára
tendo como pé-direito, o céu.
(Armando Freitas Filho)
Laus mortis
Ali, cessam os maus de atormentar,
e ali repousam todos os cansados.
Ali, descansam os presos juntamente,
sem que se ouça a voz do carcereiro.
Ali, tanto o pequeno como o grande
está, e o servo livre de tormento.
(Jó 3.17-19)
e ali repousam todos os cansados.
Ali, descansam os presos juntamente,
sem que se ouça a voz do carcereiro.
Ali, tanto o pequeno como o grande
está, e o servo livre de tormento.
(Jó 3.17-19)
29.11.13
Recorrências
Pelo até agora visto, recorrências ficcionais de Kundera: médicos e enfermeiras; piscinas ao redor das quais parte significativa da trama se desenrola; saunas; estações de águas; maridos que amam as mulheres com quem têm casamentos miseráveis enquanto as traem com todas as outras e se odeiam por isso; gente olhando fixamente um ponto distante sem saber o que fazer; gente deixando e retornando à Praga natal; música.
27.11.13
Artifício
Sempre que um escritor diz: “A literatura é isso ou aquilo”, eu leio: “Boa mesmo é a literatura que eu faço.”
Solidariedade
Todas as solidariedades já foram desmascaradas, menos uma: a entre os que fumam. Se Jesus aparecesse e de novo lhe perguntassem: “Quem é o nosso próximo?”, ele responderia: “O fumante sem isqueiro.” Em verdade vos digo que o mundo já pode negar comida ao faminto, água ao sedento, esmola ao miserável — mas ai daquele que não acende o cigarro a um desconhecido.
21.11.13
“Modernismo antimoderno”
Milan Kundera tem lá seu aspecto conservador, quase reacionário. Não oculta de ninguém sua romântica nostalgia de um mundo sem o barulho e a velocidade de veículos automotores, em que a vigilância institucional não tenha sido tão inescapável, mundo esse anterior à morte da música pelo rock e ao risco de ter-se o anonimato violado por órgãos de imprensa — que não diria dos celulares com câmera e das redes sociais? Em outras matérias, porém, mais relacionadas à existência humana, aos dramas do indivíduo, é tão moderno, atual, quanto possível. Todas as suas preocupações parecem partir da premissa de que já não se pode crer em nada. E parecem girar em torno de um único questionamento, a saber: uma vez que o século XX nos mostrou a indecência de todas as grandes causas, que fazemos nós dessa vidinha vazia e sem qualquer sentido? De onde sua galeria de personagens, sempre oscilando entre as angústias geradas pela leveza do ser e a vulgaridade sexual mais elementar, espécie de jogo que lhes resta.
16.11.13
Vício
Vício mais recentemente adquirido: Milan Kundera. Nada menos que o quarto ou quinto livro do escritor tcheco em sequência quase ininterrupta.
Sequência começada pelos ensaios, com os quais se aprende um caminhão de coisas, que vão desde as discussões sobre a natureza do romance à relação da evolução deste com a da música, passando por todos os seus santos de eleição (Cervantes, Kafka, Nietzsche), dos quais fala com insistência.
Kundera é um ensaísta estupendo. E, por sorte, faz ensaio mesmo quando faz romance, que acaba lhe servindo quase como pretexto, ou ilustração.
Quarto ou quinto livro dele em sequência, como eu disse, o que talvez se explique por outro defeito, que pelo menos a mim não incomoda, antes o contrário: além de entremear a narração com divagações filosóficas (o que é para muitos um crime, acusação da qual se defende com Rabelais, Fielding, Tolstói e sobretudo Musil), seus vários romances não passam, no fundo, de um único e interminável livro no qual vai elaborando sua dúzia de intuições fundamentais, todas do mais digno interesse.
As voltas
Ele, que vira sempre motivo de riso nas roupas furadas que seu pai nem por isso deixava de usar, agora graças rendia por não ter filhos.
14.11.13
Rio
Ontem de tarde eu mal pus os pés fora de casa, e logo me apareceu Virgílio, se oferecendo de guia.
10.11.13
Lampejo
No jardim do pátio do colégio dirigido por padres mercedários, as nunca antes vistas cartas espalhadas de um baralho pornográfico.
Terceira margem
No Brasil, a esquerda são as soluções absurdas de problemas que a direita sequer admite.
3.11.13
Tragédia
A família sai de casa para uma festa. Passa alegre por vários bairros enfeitados como em época junina: bandeirolas cruzam as vias de um lado a outro, todas cheias de pinturas espalhadas pelos muros e no asfalto. Chegados ao destino, todo o tempo me divido entre comer e correr com os de minha idade, enquanto os adultos bebem ruidosos em volta da TV. De repente, quando dou por mim, tudo acaba. Silêncio. Na despedida, o clima é fúnebre. Os abraços dão-se entre os familiares de um morto. As ruas, cheias na ida, vão agora desertas. Algo de muito grave aconteceu, e não só com os nossos. Também eu me consterno, embora sem nem desconfiar do motivo.
Até que — ao fim de duas décadas na mais completa ignorância do que teria sucedido aquele fim de tarde — ligo as pontas e descubro não ter visto senão a eliminação do Brasil para a Argentina, pelas oitavas de final da Copa de 90, tendo eu na época míseros 5 anos.
2.11.13
1.11.13
Salvadores
— Acreditam os senhores ter condição de me dizer precisamente de que se constitui [a cultura europeia], a qual os senhores pretendem defender embora não esteja sendo agredida de fora?
— Da religião! — disse o presidente, que nunca ia à igreja.
— Dos costumes — disse a dama cujas ligações ilegítimas eram do conhecimento de todos.
— Da arte — disse o diplomata, que desde os tempos de escola jamais contemplara um quadro.
(Joseph Roth, Fuga sem fim, 1927.)
30.10.13
26.10.13
Método
Por entre estantes carregadas de livros, caminha-se com a dispersão interessada de quem folheia um dicionário.
Padrão
Mesmo as fisionomias eventualmente se confundem; as ideias, gostos, gestos, não sendo infinitamente variáveis, por força se repetem. É verdade que se distinguem as íris e as digitais, mas não sem recursos biométricos, inaplicáveis ao trato interpessoal cotidiano... E se digo isso é porque, observando uma lista de presença, me ocorreu que talvez não tenhamos nada tão nosso quanto a caligrafia, não por acaso praticamente abolida em favor da uniformidade tipográfica.
25.10.13
21.10.13
“Metades de homens”
Impressão que, em “Dos canibais”, Montaigne atribui aos tamoios, aqui do Rio, levados pela turma de Villegagon em excursão pela França — índios com os quais Montaigne alega ter, inclusive, encontrado:
Alguém lhes havendo perguntado mais tarde o que pensavam da cidade e o que ela lhes tinha revelado [...] observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis, mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam “metades”); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais.
“Fechado, mesmo aberto”
Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.
Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
— João Cabral, “Para a feira do livro”, de A educação pela pedra.
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.
Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
— João Cabral, “Para a feira do livro”, de A educação pela pedra.
15.10.13
A diferença
Portugal descobre o Novo Mundo, e quem repensa o Velho são os franceses. Ou por outra: enquanto os jesuítas catequizam, é Montaigne que se pergunta: “E se somos nós os degenerados?”
12.10.13
Gentio
Acham-se muitos índios por toda esta costa do Brasil, que têm, de idade, mais de cem anos, e eu conheço alguns destes, aos quais lhes não falta dente na boca, e gozam ainda de suas perfeitas forças, com terem três e quatro mulheres, as quais conhecem carnalmente, e me afirmaram não haverem sido em todo o decurso da sua vida doentes.
11.10.13
Mutação
Graças ao smartphone, as pessoas passaram a digitar tão ininterruptamente com os polegares, que é de se imaginar o dia em que nasceremos com pinças de caranguejo em vez de mãos.
Ortoepia/Ortoépia
Em que outra língua do mundo a parte da gramática responsável pela definição da correta pronúncia das palavras é ela mesma uma palavra sem pronúncia correta definida?
7.10.13
“Machadismos”
As pessoas já até sabem que não se deve confundir os personagens de um romance com seu autor. Mas parecem cochilar quando o personagem é também o narrador. Ora, apesar de escritos por Machado de Assis, Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires têm por autores, respectivamente, Brás Cubas, Bento Santiago e o conselheiro Aires. Razão pela qual, se há quem exagere nas digressões, nos capítulos inúteis, nas citações pernósticas dos clássicos, nas reflexões pseudofilosóficas, nas metáforas batidas e/ou constrangedoras, — nas pirotecnias, em suma —, esse não é propriamente Machado, e sim as figuras patéticas de Brás Cubas e Bentinho, finas flores da indigência nacional. Tanto assim que os tais defeitos, os tais “machadismos” de que até hoje se queixam, não se encontram nos escritos do último, o velho Aires, que, ao contrário dos outros dois, se mostra alguém respeitável. O que significa dizer que talvez não fosse o Joaquim Maria quem tivesse, entre outros cacoetes, o vezo provinciano do eruditismo, o afã subdesenvolvido de passar por lido, educado, íntimo de gregos e latinos, mas mais possivelmente os filhos das boas famílias brasileiras, de cuja cara ele ri ao pô-los escrevendo como escreveram.
Fácil
Ninguém mais prontamente favorável à irrestrita liberdade da pesquisa biográfica do que a gente cuja vida nem à família interessa.
4.10.13
29.9.13
Encargo
Às vezes passam por mim uns senhores circunspectos não muito alinhados, mais contidos no gesto, porém, que a média, a barba cerrada e basta, os óculos de armação grossa, e recebo deles um olhar ao mesmo tempo cúmplice e apaziguado, de quem finalmente parte mas não sem antes deixar representante.
Saldo
A grande conquista do politicamente correto não foi senão fazer da cretinice de sempre um heroísmo.
Os tempos
O grande escritor já foi o que nos obrigava a ida ao dicionário; é hoje o que a inutiliza.
21.9.13
Lapso
São já duas senhorinhas feiíssimas jamais vistas pela Conde de Bonfim senão em dupla, trombando lateralmente uma na outra, tamanha a proximidade em que andam. Tão iguais, que até os dentes que faltam são os mesmos...
Eu me pergunto: que outro lugar do mundo ostentará caso tão singular de xifopagia, em que os gêmeos, nascidos por um triste equívoco anatomicamente separados, desfizeram de forma voluntária o lapso genético?
17.9.13
Espanto
As pessoas correm para o elevador que se fecha com um ímpeto que eu talvez não igualasse nem fugindo à morte.
15.9.13
Triunfo
Seja ele qual for (o corpo definido e tatuado, o cabelo vermelho da mulher, o carro mais valioso que muito apartamento, o sistema de som só avaliável em escala Richter, o cachorro com seu certificado de pureza), convém não deixar demasiado óbvio a quem vê que se está levando a passear pelas ruas, como numa volta olímpica, justo seu maior tesouro, seu muitas vezes único e solitário motivo de orgulho, espécie de troféu que, de momento, lhe justifica a existência, miserável (quem não sabe?) apesar de tudo.
Português
Lá para as tantas, Miguel Torga chama o português a “língua de que o diabo ainda se serve para falar à avó”. Ainda, porque as demais já lá se foram, finalmente libertas ou mesmo nunca confinadas ao influxo inquisitorial contrarreformista das origens. E para as conversas dele com a avó, que é com quem não se fala senão das coisas de sempre, e com o máximo de circunlóquios possível, não vá a velha melindrar-se.
14.9.13
Encontro
Adquire-se o último livro com a ânsia de quem aguarda o encontro definitivo ao fim do próximo minuto.
10.9.13
9.9.13
Irrelevante
As democracias ocidentais, semelhantemente a qualquer outro regime político, só toleram a liberdade do que, não tendo a mínima importância, não ofereça à ordem risco algum, como por exemplo a de culto, a de voto, a de opinião.
6.9.13
Confiança
Confiante o suficiente para julgar-se imbatível. Inseguro o bastante para ter de prová-lo.
5.9.13
Luizão
Uma das grandes figuras da minha infância foi um louco manso, alvo tanto da consideração como do temor da vizinhança. Era um nêgo enorme e forte, do tipo que, contrariado ou sem os remédios, devia ser incontrolável. Andava sempre descalço, boa parte das vezes sem camisa, as mãos abrindo e fechando em espasmos, os dedos contorcidos — os dos pés, duas lanchas, eram encavalados, espremidos um por cima do outro. Lembro de vê-lo achegar-se aos adultos, sempre educado: “Coisinha (era assim que tratava a todos), me dá um cigarro?” Ia nas pessoas do costume, na certeza de ser atendido. E assim que os conseguia, continuava: “Eu estou melhorando, não estou? Eu estou ficando melhor, você não acha?” Ao que as pessoas respondiam, culpadas de não terem consigo a solução: “Está, sim, Luizão, você está ótimo. Está muito bem.” Ele então acendia o cigarro no isqueiro da pessoa abordada (quantas vezes o meu pai), virava-lhe as costas e prosseguia a esmo pelas ruas do bairro, os braços junto ao corpo teso, a cabeça levemente inclinada para frente, tragando a intervalos não sem alguma ansiedade.
4.9.13
Guerra
Gregório de Matos não publicou nenhum livro em vida e simplesmente não deixou nenhum autógrafo. Diz-se que seus poemas circularam, originalmente, em folhas avulsas, as quais porém nenhum de seus compiladores jamais viu. Em resumo: a poesia de Gregório de Matos é hoje a poesia que a gente depois dele disse que era a poesia de Gregório de Matos. A verdade verdadeira é que ninguém sabe nem tem como saber. Para piorar (ou melhorar), reza inclusive a lenda que houve quem mandasse abrir cadernos em determinadas localidades para que todo aquele que conhecesse de cor algum poema de Gregório fosse lá e o transcrevesse. O que significa que Gregório de Matos é uma etiqueta; que Gregório de Matos é um guarda-chuva sob o qual se abrigam, possivelmente, todas as modalidades de poesia barroca praticadas na Bahia do século XVII.
26.8.13
Mínima pedra
............................
este estar cercada de vidro
por todo lado,
podendo a mínima pedra
ser a ocasião do desastre.
(Marly de Oliveira)
este estar cercada de vidro
por todo lado,
podendo a mínima pedra
ser a ocasião do desastre.
(Marly de Oliveira)
25.8.13
Grandeza
Como já ninguém pode sobressair-se aos demais sem rapidamente ser transformado em alvo de releituras críticas, levadas adiante pelos especialistas em desmerecimento, convém reformular o critério de grandeza. O grande homem passaria a ser não aquele em quem não se encontra sombra de baixeza, mas aquele que, ao contrário dos que o atacam, não se resume a elas. O escandaloso não seria, pois, que nos esfregassem as mesquinharias de alguém capaz de feitos extraordinários, mas antes um único grande ato do iconoclasta mais exigente. Assim, que Madre Teresa de Calcutá tenha mesmo desviado dinheiro de doações, como eu soube que se aventa, eu nem acho impossível, — não tão impossível quanto quem o sugere ter tirado um só miserável da rua, mesmo que por uma única noite.
23.8.13
Explicação
A esquerda, porque é mais ou menos dona do negócio, vive da necessária valorização do produto, acabando por deixar insatisfeita uma demanda irreprimível do nosso povo — a de ver-se xingado —, que é onde entra, de tempos em tempos, a direita.
Parábola
Trecho de um conto de Dino Buzzati, “A casa nova”, que fica muito bem de parábola. Conforme fazia Jesus, perguntemos: com o que se assemelha a vida? A vida se assemelha a um homem que
volta para casa após ter comprado um armário magnífico e, impaciente, anda de cá para lá no vestíbulo, esperando a chegada dos entregadores; altura em que a campainha toca, e, em lugar deles, aparece o carteiro, trazendo a ordem de despejo para hoje à noite, às 21 horas.
22.8.13
21.8.13
Suspeitos
São tantas as doenças contagiosas, que é pouco nos preocuparmos só com as de pele. O ideal é que fosse proibido o ingresso em ambientes fechados de quem quer que não apresentasse à porta atestado médico emitido por órgão público responsável, ficando sujeito à detenção o camarada que não fosse capaz de comprovar sua inocuidade biológica. Por que haveríamos de confiar na palavra das pessoas (nunca nada é contagioso), ou ficar reféns da aparência, tão enganosa? — tanta gente sem nenhuma pereba na cara e por dentro mais podre que um cadáver, querendo dividir com os outros o vagão do metrô... Devíamos ser todos suspeitos até que provássemos o contrário. Até imagino os agentes da polícia, vestidos tão hermeticamente quanto astronautas, abordando cidadãos acusados de terem coriza escorrendo pelo nariz: “Bom dia, senhor. Nós recebemos aqui a denúncia de que o senhor estaria fungando, ela procede? Trata-se de uma calúnia? O atestado, então, por gentileza. Como não tem, se a consulta semanal é obrigatória? Compromisso muito importante? Mais importante que a saúde da população?! O senhor está preso.”
18.8.13
Blasfêmia
A Linguística é para os dias de hoje o que foi a Biologia para os do século XIX, sendo Marcos Bagno o nosso Darwin. E se já ninguém faz caso de descender de macacos, ai de quem rele na origem divina da norma culta ou da ortografia de 45.
O ornamento do mundo
A Península Ibérica foi sempre a periferia mais remota dos impérios aos quais pertenceu, um verdadeiro fim de mundo. E muito possivelmente nunca teria deixado de ser esse cu de Judas, mesmo que por alguns poucos séculos, não fosse a chegada de Abd al-Rahman às margens do Guadalquivir, por volta de 750, fugido de Damasco, onde viu a família — a casa dos Omíadas — não só perder o Império Islâmico como ser quase totalmente exterminada. Talvez nunca tivesse conhecido o gosto da proeminência intelectual, não fosse esse príncipe exilado, sem esperanças de reaver o trono agora ainda mais distante, levado que fora pelos Abássidas para Bagdá, ter decidido fazer daquelas ruínas romanas habitadas por bárbaros tão beatos quanto ignorantes a grande al-Andaluz, um dos centros culturais mais ricos de todo o medievo — pelo que diz María Rosa Menocal, em livro homônimo a este post, parece que já no século X havia só na biblioteca do califa de Córdoba, cidade que contava com quase uma centena delas, mais livros do que na Europa inteira.
12.8.13
Tudo
Sempre que chegam os dias dedicados aos pais, eu me vejo numa grande oportunidade de eximir os meus. A culpa não é deles, que fizeram de tudo.
11.8.13
Sociedade
A sociedade é uma mãe que julga ser capaz de impedir as merdas do filho adolescente primeiro as proibindo e depois o castigando.
10.8.13
Motivo
Os artistas negligenciam as próprias vidas (quando não as arruínam), mas por um motivo nobre, muito especial, qual seja a distração daqueles que edificam as suas.
Arqueologia
Finalmente descobertas as ruínas do antigo palácio de Odisseu, em ilha que entretanto ninguém sabe se é a de Ítaca.
9.8.13
Mãe
Toda a força das três parábolas de Lucas 15 reside no fato de serem todas escandalosamente contrassensuais. O pai do filho pródigo, por exemplo, só é uma figura de Deus porque age como nenhum pai do mundo agiria. Deus é mãe.
8.8.13
6.8.13
Desespero
Sabendo chegada a sua hora, reunido aos discípulos pela última Páscoa antes de sua morte, Jesus começa a lavar-lhes os pés. A cerimônia corre bem até que Pedro — sempre ele — se recusa. — Os meus pés, nunca! — Mas, Pedro — explica o Mestre —, se eu não te lavar, é que não tens parte comigo. — Ah, é? Bom, se é assim, lava não só os pés, como também as mãos, os braços, mesmo as orelhas. E foi nesse desespero petrino que me fez pensar este outro, de Vinícius de Moraes:
Eu não sei tocar, mas se você pedir
Eu toco violino fagote trombone saxofone.
5.8.13
4.8.13
30.7.13
Uma questão
Não faz muito tempo descobri, com a leitura do Livro de Travesseiro, de Sei Shônagon, dama de honra de uma imperatriz japonesa do século X — espécie poética de diário, de uma sensibilidade quase única, com incríveis duas traduções diretas para o português —, que os homens e mulheres da corte podiam conversar livremente entre si, desde que separados por um biombo. Não faço a mais mínima ideia de quando o costume terá sido abolido, mas, num dos Contos da palma da mão, de Kawabata, escrito na década de 20 do século passado, encontro o que me pareceu um resquício. Uma jovem personagem feminina, incomodada com a insistência com que o também jovem e apaixonado interlocutor a encara, não vê alternativa senão em esconder o rosto com a manga do quimono, obrigando-o a retratar-se. E vinha com essas coisas na cabeça quando hoje, por acaso, encontro isto.
Gente
O escritor Roberto Arlt chega à cidade do Rio de Janeiro em 1930, onde passará cerca de um ano como correspondente de um jornal argentino. Chega à cidade do Rio de Janeiro e, observador atento, logo perscruta os cariocas. Perscruta os cariocas e de imediato os compara aos portenhos, seus conterrâneos. E não acredita. Esfrega os olhos, aguça a vista, repete toda a operação e não se aguenta, desabando rodriguianamente ao meio-fio, comovidíssimo com estar, pela primeira vez na vida, entre gente. (Os incrédulos que confiram nas crônicas que mandava daqui para Buenos Aires, recém-publicadas em português pela Iluminuras.)
Catábase
De repente nos aparece recurvada e ressequida feito uma árvore morta, tremendo como esta árvore sob um vendaval, mal se aguentando sobre o andador, e pedindo aos gritos, entre ais, que alguém a ajudasse pelo amor de Deus que eu estou passando mal.
Bem à minha frente, aflita como se diante da própria mãe, e indignada com a visão de tamanho desamparo, uma dona, enquanto providencia uma cadeira:
— Mas, minha senhora, a senhora não tem um filho, uma filha?
— Ai, meu filho morreu.
— Mas nem uma cuidadora?
— Ai, meu filho morreu.
— Mas nem uma cuidadora?
— Tenho. Cuidadora eu tenho.
— E cadê ela, minha senhora?
Ao que a velha, já acomodada e mais calma, com a placidez de quem dá um bom-dia:
— Foi fazer um aborto.
E enquanto cada um de nós se entreolha, duvidoso de que houvesse escutado direito, repete:
— Foi fazer um aborto.
*
Ao mesmo tempo, num canto próximo, o gerente tenta explicar a outro cliente que a dívida que ele (admirado de a ter contraído) questiona se deve unicamente ao fato de ter gastado mais do que recebe. Aparentemente em vão.
29.7.13
Rio
A descoberta da semana é que Melville esteve no Rio de Janeiro, tendo inclusive deixado impressões da cidade em White-Jacket, livro inédito em português.
Mão dupla
A comparação de Albert Camus entre Melville e Kafka, feita num ensaio de 1952 dedicado ao primeiro e reunido em português em A inteligência e o cadafalso, resume incrivelmente bem qual sempre foi minha principal objeção a Jorge Luis Borges, muito embora eu nem soubesse formulá-la. Carapuça que lhe serve nem um pouco por acaso, uma vez que é de conhecimento geral a admiração do argentino pelo que chamava a intemporalidade da obra kafkiana, melhor dizendo, sua autonomia artística frente à história — o fato de não ser possível apontar, por evidência interna, o lugar e a época de seu autor —, algo que para ele era um ideal a ser buscado. Na contramão um do outro, Borges elogia o efeito cuja causa Camus reprova, ficando eu com este último. Outra oportuna coincidência é o francês apontar para os “maiores”, contra uma estética esposada por Borges, cultor confesso de nomes secundários. Os grifos são meus.
Como os maiores artistas, Melville construiu seus símbolos sobre o concreto, e não sobre a matéria do sonho. O criador de mitos só atinge a genialidade na medida em que os inscreve na espessura da realidade, e não nas nuvens fugidias da imaginação. A realidade que Kafka descreve é suscitada pelo símbolo, o fato deriva da imagem; em Melville, o símbolo sai da realidade, a imagem nasce da percepção.
Volta (2)
O que os ateus requerem dos cristãos, hoje, não difere do que estes exigiram, ontem, dos pagãos, isto é, o alijamento do mundo que criaram, mais a cessão das instituições aos interesses de um grupo que talvez nem tivesse meios, com seus novos princípios, de as forjar.
Volta
Os ateus fazem agora com a estatuária católica o que os católicos fizeram no passado com a estatuária pagã. E o que fez o bispo da Universal contra a Virgem, já o bispo de Alexandria havia feito com Serápis, e com o mesmo fim: “Reparem aqui como nada acontece.”
26.7.13
Solução
O Senhor feriu a criança que a mulher de Urias dera a Davi, de sorte que adoeceu gravemente. Davi implorou a Deus pelo menino: observou rigoroso jejum e, recolhendo-se, passava as noites prostrado sobre a terra. Os dignitários de sua casa iam ter com ele para o levantar do chão, mas este se recusava, nada comendo. No sétimo dia, o menino morreu. Os servos de Davi tinham receio de lhe dar a notícia. Diziam: “Quando a criança estava viva, eram inúteis nossos consolos. Como lhe diremos agora que a criança morreu? Poderá cometer um desatino.” Davi notou que seus servos cochichavam entre si e compreendeu que a criança havia morrido. Perguntou-lhes Davi: “O menino morreu?”, e eles responderam: “Sim.” Então Davi se levantou do chão, lavou-se, ungiu-se, mudou de vestes e, entrando na casa do Senhor, adorou. Depois voltou, mandou que lhe servissem a refeição e comeu.
24.7.13
Melville
Um dos únicos parágrafos de Lévi-Strauss que já li dizia que a função da Antropologia era a de nos mostrar que há no mundo outras muitas formas possíveis de se viver além da nossa. E é nisso que reside, penso, o maior valor de Taipi, romance de estreia de Herman Melville e livro responsável pelo reconhecimento que teve ainda em vida. Enquanto Moby Dick — que de início passou despercebido da crítica e do público — se concentra na caça à baleia e, por conseguinte, na vida ao mar, Taipi se passa numa das ilhas do Pacífico, na qual o autor tem sua estadia entre os nativos, depois de fugir das más condições de serviço do navio americano em que havia embarcado. E o que prometia ser, pelos primeiros capítulos, um simples e previsível livro de aventura entre canibais (de como o herói escapa às vésperas de ser cozinhado), acaba se revelando uma valiosa etnografia. É verdade que há ficcionalização — lembremos que nosso narrador não é Melville, mas Tomo —, além de elementos romanescos — conseguirá a dupla escapar à tripulação do navio que abandona? sobreviverão ao tempo na floresta, sem muitas provisões? por quem o vale no qual descem é habitado, pelos temíveis taipis ou pelos benignos hapars? o que terá acontecido a Toby? qual o interesse dos nativos por trás da recusa em liberá-lo? afinal, como Tomo escapará? —, elementos que, se nos faltassem, não diminuiriam em nada o interesse pela obra, dada a satisfação que se encontra na mera descrição dos hábitos, do temperamento, do caráter, das festas, das relações sociais etc. dessa tribo polinésia entre a qual Melville teria permanecido cerca de dois meses. Todo um novo universo, sob muitos aspectos admirável, por meio do qual o narrador questiona o dos civilizados, sobretudo em seus esforços missionários: “Se fôssemos julgar a civilização por alguns de seus resultados, talvez conviesse mais, ao que chamamos de parte bárbara do mundo, que continuasse mergulhada em sua condição.” E se no Melville de Moby Dick encontramos um equivalente do nosso Euclides — pela valorização dos párias —, pode-se ver no Melville de Taipi — com sua solidariedade para com os selvagens — uma espécie de Darcy Ribeiro.
22.7.13
Providência
Kierkegaard fala do sujeito que, pensando em suicídio, dá muitas graças a Deus pela queda de um jarro que lhe arrebenta a cabeça.
21.7.13
20.7.13
Semelhanças
Dentre as muitas semelhanças entre os polinésios, como descritos por Melville em Taipi, e os índios brasileiros, segundo as descrições de um Cardim e de um Gandavo — o asseio, a indolência, a licenciosidade, a nudez, as frequentes guerras, os rivais permanentes, a antropofagia, as bebidas narcóticas, o fumo, a hospitalidade etc. —, uma diferença chama a atenção: as técnicas utilizadas na pintura corporal, também presente em ambos. Enquanto os daqui pintavam-se de modo temporário e para cada ocasião, os de lá iam-se tatuando progressivamente até chegarem à velhice com a pele completamente coberta.
19.7.13
Typee
Orgulho
Há no orgulho corporativista, pelo menos, um limite. Andam frequentemente armados contra os de fora, é verdade, mas sempre na defensiva. Acham-se os guardiães dos sagrados princípios de determinada ciência, mas só ostentam o fato se desafiados. Do contrário, vivem lá suas vidinhas, encastelados, limitadíssimos em alcance direto. Para todos os efeitos, alguém é bom não porque seja um deus caminhando sobre a terra, mas porque afinal foi aceito como membro. Porque afinal foi reconhecido como par. Porque, na sua insignificância, o tomaram por igual. E se não acreditam que ele tenha de fato algum valor, lá está sua titulação como prova. E isso é tudo. Enquanto no orgulho do isolamento, por sua vez, impera a desmedida. Ao solitário, nada há que o garanta, nem quem, motivo pelo qual não vive sem afirmar-se. Sem o parâmetro apaziguador da aceitação institucional, ao solitário não resta senão o ataque desmoralizante. Nessa condição, alguém é bom não porque tenha sido aceito num clubinho de medíocres. Alguém é bom não porque tenha se conchavado, elogiando para ser mais adiante elogiado. Ou porque se familiarizou com uma bibliografiazinha estreita e defasada. Ele é bom porque sabe mais, e leu mais, e produziu mais do que todos os acadêmicos juntos jamais produzirão, lerão e saberão em toda a vida.
18.7.13
Extraterritorial
A imagem mais alta que alguns fazem contemporaneamente do escritor — o escritor-escritor, sem comprometedoras concessões ao meio — é, curiosamente, a de certo tipo de judeu — desterrado, habitante das línguas, dos livros, da memória, — numa estranha promoção da contingência em ideal.
17.7.13
Hipótese
Os poetas de importância talvez se dividam entre aqueles cujos versos justificam a existência das palavras com que os compõem e aqueles outros, ainda maiores, que justificam a existência das próprias línguas como um todo. Um exemplo vernáculo. Era pois preciso que existissem no português as palavras sal, mar, salgado, lágrima, Portugal — e que tais significantes tivessem os significados que têm —, porque não poderia nos faltar a mais famosa pergunta retórica de Mensagem. Como era preciso que a língua portuguesa existisse exatamente como é, nem pior nem melhor, pra que fosse possível um Lusíadas.
Sentido
Revisar, em alguma medida: ser capaz de reconhecer a presença de um sentido que muitas vezes escapa.
16.7.13
13.7.13
Nunca mais
O carioca só é assim tão receptivo naqueles primeiros contatos que são também os últimos.
Primeira vista
É natural que se insista na importância das capas etc., mas quantas descobertas não devemos à boa disposição das lombadas, com seus bons títulos e sobrenomes curiosos?
12.7.13
7.7.13
Problema
O problema com os escritores cuja genialidade compensa um caminhão de defeitos é que a genialidade não se imita.
4.7.13
Solução?
Dois versos de Amado Nervo, poeta mexicano, —
Digo a la vida: ¡sé piadosa, vuela!que me fizeram lembrar outros dois versos bíblicos, já muito queridos:
Digo a la muerte: ¡sé piadosa, tarda! —,
Quando me deito, penso: “Quando virá o dia?”
Ao me levantar: “Quando chegará a noite?”
3.7.13
Nocaute
Julio Cortázar utiliza duas já famosas comparações para chegar a uma ideia geral do que lhe parece o conto. E o curioso é que ambas se aplicam também, e talvez até com mais propriedade, a formas literárias ainda mais breves, como por exemplo o aforismo. Em “Alguns aspectos do conto”, ele primeiro trata da semelhança do contista com o fotógrafo, cuja pretensão é a de “recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla”, — diferentemente do romancista, mais próximo do cineasta no esgotamento do assunto, com uma obra aberta, distendida. Se, tal como o fotógrafo, o contista tem os limites do foco, mais ainda o aforista, dependente de uma tensão explosiva ainda maior. Logo depois os compara (romance e conto) ao boxe. O romancista, trabalhando cumulativamente, tergiversando, digressionando, indo e vindo, ganharia por pontos, ao fim de longos doze assaltos, — enquanto o contista, mais incisivo, na ofensiva desde as primeiras linhas, sem desperdício de movimento, parte em busca do nocaute. Nocaute esse que o aforista alcança, — se o alcança —, não apenas ainda no primeiro assalto, como em geral com um só golpe.
2.7.13
Borges
Lembro de ter lido um breve ensaio em que se acusavam os partidários de Flaubert de lhe pagarem tributo não pelo conjunto da obra, — para o autor, além de escassa, de pouquíssimo mérito, com apenas um único êxito relativo —, e sim pela figura do escritor atormentado, noites e mais noites insone por causa de uma mísera palavra que não lhe parecia exata — o Flaubert das cartas. E o que não passa de provocação dito sobre os leitores do francês, acaba de muita justiça se aplicado aos de Borges, cuja obra, derivativa, metaliterária, é qualquer coisa de mais ou menos dispensável — valendo antes como método. Todos os quase-contos, falsos-ensaios, parábolas, pesadelos e poemas, por maiores as intuições que contenham, não se comparam em importância à figura emblemática do leitor cuja memória impede a distinção entre o sonhado e o testemunhado; à figura do frequentador daquela biblioteca infinita, universal, depositária do passado dos homens, o qual maneja com toda liberdade; à do leitor capaz de negligenciar, arbitrariamente, alguns dos melhores escritores de sempre, praticantes de um gênero que despreza, ao passo que se aferra a nomes secundários, às vezes obscuros, tão obscuros quanto os temas de que trata; à figura do latino-americano que não deixa nunca de ser um europeu desterrado e jamais se imiscui; à do erudito excêntrico, sem pejo algum de não ler o grego nem o latim, que se gaba de ter esquecido, enquanto estuda o anglo-saxão...
28.6.13
Lembrança
Arnaldo Cezar Coelho, comentando o beijinho mandado por Neymar ao jogador uruguaio que o havia xingado, ia dizendo que se tratava de coisa absolutamente normal durante os jogos, e que estava ali o Ronaldo que entendia muito bem do assunto, — quando este o interrompe e, como se ninguém lembrasse dele com os travecos, lhe pergunta: “Por que diabos eu saberia disso, Arnaldo?” E por fim riem-se todos, com aquele riso leve dos funcionários da Globo.
26.6.13
Encontro
Eu cometi a imprudência de folhear Mormaço, último livro de poesia publicado (primeiro na Espanha, com outro nome, depois aqui) por Lêdo Ivo, prolífico poeta alagoano falecido ano passado aos 88 anos de idade, — livro que, junto com Réquiem, de 2008, não consta ainda na sua Poesia Completa —, e desde então já li Mar Oceano, de 87, e Aluno relapso, de 91, sem conseguir pensar em outra coisa. Baita encontro.
24.6.13
Perguntas
Poeta é aquele que, a par de outros atributos, desaprendendo o olhar comum a todos, se volta para os fatos com a abertura da primeira vez. O que significa que, enquanto nos limitamos às gastas visões do costume, é o poeta capaz de surpreender, por entre o véu do hábito, a nudez das coisas. E, com efeito, poucas obras conseguem ilustrar tão perfeitamente esse fenômeno como o Libro de las preguntas, do chileno Pablo Neruda, composto todo ele de breves poemas feitos (ao longo da vida) de interrogações tão perplexas quanto inesperadas as imagens que afirmam — só comparáveis, estas, em frescor, às de um Ramón Gómez de la Serna, em suas greguerías.
Por qué el sombrero de la noche
vuela con tantos agujeros?
*
Cuántas preguntas tiene un gato?
*
Por qué los pobres no comprenden
apenas dejan de ser pobres?
*
Y por qué el sol es tan mal amigo
del caminante en el desierto?
*
No será nuestra vida un túnel
entre dos vagas claridades?
*
Cómo se llaman los ciclones
cuando no tienen movimiento?
*
Si todos los ríos son dulces
de dónde saca sal el mar?
19.6.13
Condição
Com esta condição, pesada e dura,
Nascemos: o pesar terá firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.
— Camões.
Nascemos: o pesar terá firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.
— Camões.
7.6.13
6.6.13
Teoria
Alguém se aproxima de uma sala sem professor e, da porta, pergunta aos presentes: “Vai ter aula agora?” De dentro, recebe como resposta: “Teoricamente...” Que é como dissessem: “Deveríamos ter, mas, pelo visto, não teremos.” Pois. Teoria, no português brasileiro não especializado, o português de toda a gente que não é dada a ciências nem a filosofias: qualquer ideia (ou conjunto de ideias) contrariada pelos fatos. Tudo quanto se pensava que era pra ser, mas não é nem será. Mero papo furado. Acepção que, apesar de correntíssima, falta aos dicionários todos, talvez pelo constrangimento com o que o sentido denuncia.
3.6.13
Europa
“A Europa”, de Almada Negreiros, 1943. Uma imagem que começa em Camões (“Eis aqui, quase cume da cabeça/ De Europa toda, o reino lusitano,/ Onde a terra se acaba e o mar começa”), passa por Unamuno (“Del Atlántico mar en las orillas/ desgreñada y descalza una matrona/ se sienta al pié de sierra que corona/ triste pinar. Apoya en las rodillas/ los codos y en las manos las mejillas/ y clava ansiosos ojos de leona/ en la puesta del sol...”), e chega até Pessoa (“A Europa jaz, posta nos cotovelos/ De Oriente a Ocidente jaz fitando/ ...com olhar sphyngico e fatal,/ O Ocidente, futuro do passado.// O rosto com que fita é Portugal.”).
Acentuação
Segundo Monteiro Lobato, enquanto os franceses perdiam tempo acentuando palavras, os ingleses foram lá e dominaram tudo.
Realidade
A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, e Os Lusíadas, de Camões — dois textos dos mais importantes para a narrativa em língua portuguesa, no mais tão afeita, nas origens, à mera crônica — guardam de comum o terem nascido sob o signo da aventura. O primeiro dá conta das “muitas e muito estranhas coisas” vistas e ouvidas pelo autor durante suas viagens ao Oriente; o segundo — escrito também por um viajante —, dos feitos do Gama por “mares nunca dantes navegados”, bem como da memória dos reis que “dilataram a fé e o império”. E o que os demais tiveram de inventar (“vãs façanhas,/ Fantásticas, fingidas, mentirosas”), protagonizaram os portugueses: “As verdadeiras [façanhas] vossas são tamanhas,/ Que excedem as sonhadas, fabulosas,/ Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro/ E Orlando, inda que fora verdadeiro”. Uma realidade mais rica, a portuguesa, que a ficção de outros povos... Com o tempo, porém, eles decaem, se imobilizam e perdem a prerrogativa. Ficam sem assunto. Ainda só lhes interessa — tanto quanto a nós, seus herdeiros — a vida, agora besta como não sei o quê.
31.5.13
27.5.13
Peretz
Logo num primeiro contato, é possível notar no precursor de Bashevis Singer uma relação mais ortodoxa com a religião. Comparado a ele, Singer acaba um supersticioso — com aquela espécie de temor do sobrenatural própria de quem o desconhece. Peretz, por sua vez, transuda a piedade de quem sabe a que (a quem) teme — o Deus dos pais. Consequência disso, talvez, é o didatismo, aqui não em sentido necessariamente pejorativo. Tiram-se lições dos contos de Peretz. Sai-se deles edificado. Coisa a que os de Singer nem sempre se propõem.
Mas ainda mais significativa é a distinção nós-eles. Em Peretz, o outro está sempre em vista: trata dos judeus (os justos), mas sempre em oposição aos gentios (cristãos cruéis e opressores). Quando em Singer, possivelmente por conta da vida na América, a preocupação é mais genericamente humana. Mesmo quando escreve sobre circunstâncias só possíveis a judeus, ou, ainda mais especificamente, a certo tipo de judeus, Singer não o faz como se tratasse de uma minoria. Não parece haver, para quem o lê, outro mundo senão o das aldeias. Ou que elas o resumem.
26.5.13
24.5.13
Resultado
Uma mulher é violentada no Central Park. A polícia, muito eficiente, faz bem o seu trabalho e logo apresenta 5 suspeitos. Por acaso todos pretos. Consegue, sabe-se lá como, de cada um deles um vídeo em que se confessam culpados e explicam como procederam. Os depoimentos são contraditórios entre si, mas concordam na mais importante das coisas: foram eles. Enquanto isso, os peritos avançam nas análises investigativas. O DNA que encontram no corpo da vítima, que sobreviveu, não é de nenhum deles, além de outras incompatibilidades. Todas irrelevantes, uma vez que existem os vídeos. Fica decidido: devem ir a julgamento, que se transforma em circo. Alegam-se, todo o tempo, inocentes. Que não há provas contra eles. Que foram coagidos. Que confessaram sob pressão. Apesar dos esforços, a defesa, prevendo o desfecho, fala em acordo. Os réus se negam: são inocentes. Não querem acordo: ou tudo ou nada. O resultado: todos condenados a — em média — 10 anos de prisão num reformatório de segurança máxima — eram adolescentes. À saída, o povo aplaude a promotoria, aliviado. Estavam a salvo.
Treze anos mais tarde, dá entrada na mesma prisão que um deles um malandro dizendo à boca pequena que conhecia quem estivesse ali por um crime que não havia cometido. O culpado, na verdade, era ele. Os boatos correm. A direção do presídio o chama. Ele esclarece: foi ele quem estuprou a tal mulher do Central Park, treze anos antes. Reabrem-se os arquivos. As histórias batem. O DNA, por fim, encerra a questão: prenderam as pessoas erradas. Os advogados dos (então) jovens pleiteiam o cancelamento da sentença. A justiça acede, prontamente. E não é que não era?... Mals aê.
22.5.13
Submundo
Sempre se forja, para épocas de transição, um dado arsenal argumentativo contra ideias fundamentais que depois passam (via consenso curricular) por liquidadas sem terem, no entanto, se extinguido. O resultado é que, pelas gerações seguintes, por já ninguém acreditar na necessidade de armamento contra o que se supõe morto e enterrado — os filhos começam de onde os pais terminam —, aparece desde o submundo a herdada teimosia de uns quantos retardatários que, vendo a inabilidade dos contemporâneos na luta contra os zumbis conceituais que ostentam — não são muitos os que desamam tanto a vida a ponto de se tornarem eruditos —, acham-se ainda, só por isso, no dever de vangloriar-se.
13.5.13
10.5.13
Aparência
É até possível desamar as riquezas que se herdam e (por inércia) se conservam; jamais porém as que se buscam.
7.5.13
4.5.13
Leitura crítica
O sujeito lê nas Escrituras: “Abre tua boca em favor dos mudos”, e, considerando a difusão da língua de sinais, pensa de imediato em defasagem.
Imprevisto
Os reformadores, se puderam sonhar com uma Bíblia na mão de cada crente, foi porque ainda não havia o Brasil nem os brasileiros.
3.5.13
Kaputt
Umas cinquenta páginas de Kaputt, de Curzio Malaparte — um Marcel Proust para homens, diria um Graciliano —, e o sujeito que se comove com uma égua morta e com o metal retorcido das máquinas de guerra deixadas pelo caminho, é o que menciona com frieza, se não com indiferença, pelo que passam os judeus, mais preocupado com esquadrinhar as motivações alemãs que com lamentá-las.
1.5.13
Troféu
Os de direita sempre viram no Caetano um desmiolado, desses cuja opinião não se leva em conta, representante máximo daquilo que gostam da chamar pseudointelectualidade. Jamais lhe admitiram qualquer mérito, tomando antes seu prestígio como prova de insalubridade nacional. Até que de repente aquele mesmo Caetano — parceiro do ainda mais desconexo Gilberto Gil, autor de velhas e novas letras sem pé nem cabeça, dono de preferências literárias das mais duvidosas e juízos invariavelmente enviesados —, se apresenta, nessa ou naquela questão, quase como um deles. Que fazem, então, os detratores, para quem nunca foi mais que motivo de piada? Enrubescem? — Brandem-no como troféu.
29.4.13
Fases
A melhor fase do meu corte de cabelo não dura mais que uns poucos dias antes do início da pior.
25.4.13
Amizade
Dois motoristas emparelham os ônibus que dirigem e, abrindo o da esquerda a porta dianteira e o da direita a janela, rápido passam a uma longa série de xingamentos, dos mais ostensivos, após a qual fecham a porta e o vidro e partem satisfeitos com o reencontro, cada qual com seu sorriso.
23.4.13
Dinâmica arbitral
Um ou dois anos atrás — o Barcelona no auge, ainda “o maior time da história” —, três dos quatro gols do Bayern (justo os três primeiros) seriam com toda certeza impugnados pelo juiz, estivesse acontecendo o jogo onde estivesse. Com toda a certeza veríamos marcados a carga de Dante sobre Daniel Alves, o impedimento de Mario Gómez e a falta de Müller sobre Jordi Alba, responsável por Robben. Mas, hoje, com um Barça rateando, sem brilho, e um Messi sem condições de dar show, num jogo na Alemanha...
20.4.13
Oposição
A oposição no Flamengo: “Eles prometeram cortar gastos; e no entanto vão pagando tudo quanto devem. Onde já se viu?...”
Genealogia
Havia no Japão algo muito vário chamado genericamente de jiu-jitsu, — a partir do que Jigoro Kano concebe o judô, — a partir do qual os Gracie, por sua vez, desenvolvem o jiu-jitsu. De modo que, sim, é verdade que o judô veio do jiu-jitsu. Tanto quanto o jiu-jitsu veio do judô.
Drama
Se a coisa a respeito de que mais se é obrigado a pensar durante um curso de Letras é sobre o porquê de afinal ensinar-se língua portuguesa (essa superfluidade), em que aflições não viverá um licenciando em Química?...
12.4.13
9.4.13
Frustração
Uma das muitas frustrações que boa parte de meus professores me proporciona é a de não ser mímico.
5.4.13
3.4.13
Amanho
No Brasil, uma das formas de minimizar certos inconvenientes tem sido, por incrível que pareça, a de amplificá-los, dando ares de escandalosa exceção ao que se sabe mais frequente do que se gostaria. “Estamos chocados. Nunca vimos coisa parecida.” — dizem agora por nada nossos delegados, feito virgens.
Homonímia
Eu até sabia da existência na Europa de outra Galícia além da região espanhola bem ao norte de Portugal, em algum lugar dividido atualmente entre a Ucrânia e a Polônia. Mas que tenha havido (ou haja) outra Ibéria além da que avança sobre o Atlântico, na região do Cáucaso em que hoje é a Georgia, assim chamada pelos gregos desde a Antiguidade (e causa de confusão durante a Idade Média, graças aos que pretendiam deduzir dessa igualdade — até o presente não muito bem esclarecida — de nomes algum parentesco entre esses povos em tudo tão distantes), foi um susto.
1.4.13
Cantos indecisos
V
Neste mundo, durante a nossa vida,
Todos nós esperamos, sempre em vão.
Sempre uma luz nos olhos acendida,
Em volta, sempre a mesma escuridão.
Sempre à vista da terra prometida,
Há de morrer o nosso coração.
E assim foi, desde a mais antiga idade,
E assim será, por toda a Eternidade.
XXX
Em tudo o que julgamos ser mentira,
Vive a presença oculta da Verdade.
Num coração amante, que delira,
Num astro, numa flor, numa saudade,
Naquele infindo sonho que me inspira,
Transluz inextinguível claridade.
Não há visão quimérica e ilusória,
Nem há vida que seja transitória.
XXXV
O poeta é um pobre doido, errando, sempre além.
Deste mundo, a cantar, em vida, se desterra.
Anjo de Satanás, anjo de Deus, que tem,
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra.
— Teixeira de Pascoaes, Cantos indecisos, 1921.
Neste mundo, durante a nossa vida,
Todos nós esperamos, sempre em vão.
Sempre uma luz nos olhos acendida,
Em volta, sempre a mesma escuridão.
Sempre à vista da terra prometida,
Há de morrer o nosso coração.
E assim foi, desde a mais antiga idade,
E assim será, por toda a Eternidade.
XXX
Em tudo o que julgamos ser mentira,
Vive a presença oculta da Verdade.
Num coração amante, que delira,
Num astro, numa flor, numa saudade,
Naquele infindo sonho que me inspira,
Transluz inextinguível claridade.
Não há visão quimérica e ilusória,
Nem há vida que seja transitória.
XXXV
O poeta é um pobre doido, errando, sempre além.
Deste mundo, a cantar, em vida, se desterra.
Anjo de Satanás, anjo de Deus, que tem,
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra.
— Teixeira de Pascoaes, Cantos indecisos, 1921.
27.3.13
24.3.13
22.3.13
“A origem de todos os poemas”
2
[...]
Have you reckon’d a thousand acres much? have you reckon’d the earth much?
Have you practis’d so long to learn to read?
Have you felt so proud to get at the meaning of poems?
Stop this day and night with me and you shall possess the origin of all poems,
You shall possess the good of the earth and sun, (there are millions of suns left,)
— Whitman, em “Song of Myself”, de Leaves of Grass, 1855.
[...]
Have you reckon’d a thousand acres much? have you reckon’d the earth much?
Have you practis’d so long to learn to read?
Have you felt so proud to get at the meaning of poems?
Stop this day and night with me and you shall possess the origin of all poems,
You shall possess the good of the earth and sun, (there are millions of suns left,)
You shall no longer take things at second or third hand, nor look through the eyes of the dead, feed
on the spectres in books,
You shall not look through my eyes either, nor take things from me,
You shall listen to all sides and filter them from yourself. — Whitman, em “Song of Myself”, de Leaves of Grass, 1855.
14.3.13
13.3.13
Ideia
— Senhores, é mais do que hora de voltarmos a ter um papa italiano.
— Certo. Mas como, se a expectativa é por um da América Latina?
— Deixem comigo. Tenho aqui uma ideia...
— Certo. Mas como, se a expectativa é por um da América Latina?
— Deixem comigo. Tenho aqui uma ideia...
6.3.13
Graças
Toma-se conhecimento das crises de um Marrocos (pobre país africano a meio metro da Europa), e a primeira coisa que se dá é graças pela largura do Atlântico.
4.3.13
26.2.13
19.2.13
Ansiedade
Terminada a tão proveitosa leitura de um volume sobre a interpretação dos sonhos, nunca mais dormiu.
14.2.13
10.2.13
Carnaval
Como ouvisse que se aproximavam os dias de passar-se autorizadamente pelo que durante o ano menos lhe convinha, decidiu-se pela fantasia de si mesmo.
Problema
O cônjuge aparece como a solução de todos os problemas, indo se despedir como o maior deles.
Ainda piores
Só uma coisa é capaz de rebaixar ainda mais a imagem dos tele-evangelistas, e é imaginá-los sinceros.
9.2.13
Al-Hikam
Do Kitab al-Hikam, famosa coleção de aforismos de Ibn Ata’illah al-Iskandari, sufi egípcio do século XIII, aqui a partir de uma tradução para o inglês:
Lança tua existência na terra da obscuridade, porquanto não floresce a semente que germina sem ter sido semeada.Entre os sinais de um fim bem sucedido está o voltar-se para Deus ainda no início.
O melhor que se pode pedir a Deus é o que Ele nos pede.
Os presentes dos homens são privações. Mas Deus galardoa até quando tira.
Nenhuma ação de uma pessoa generosa é inútil. Nem frutifica a de nenhum avaro.
Se te acompanha alguém pior do que tu, acabas por julgar-te melhor do que és.
Ante Sua justiça, nenhuma falta é mínima. Nem grande, ante Sua misericórdia.
Ele às vezes dá enquanto tira, às vezes tira enquanto dá.Não fossem as sementes da ambição, não eram tão bastos os ramos da desgraça.Quando Ele dá a compreender a privação, esta se iguala à fortuna.Se queres uma glória imperecível, gloria-te no que não perece.Que seja pequeno o número das coisas que te alegram, para ser ainda menor o das que te entristecem.
7.2.13
6.2.13
Esclarecimento
Não é que o Neymar seja uma fraude. É que ainda lhe falta o hábito de enfrentar zagueiros.
Os três elementos da lírica
A lírica tem por objeto a imitação de estados de ânimo, através de um discurso organizado de maneira especial, e, por finalidade última, determinado conhecimento de verdades humanas universais. Aí estão os três elementos da imitação lírica: objeto, medium e fim. Estes elementos podem ser mal concebidos e mal operados em sua essência. Assim, se o poeta se enganar sobre o objeto, o poema, disposto como lírico, poderá resultar desproporcionalmente “épico” ou “dramático”; se, como unidade, não se tratar de um poema misto, a consequência estética será negativa; se o engano for quanto à natureza do medium ou veículo, haverá insuficiência de expressão; o poema será defeituosamente articulado; se o erro atingir a natureza do fim, em vez de verdades poéticas, teremos o vício do didatismo, ou então a supressão da força cognitiva do literário. Estes erros podem afetar a criação (erros do poeta) ou a leitura (erros do leitor e do crítico). [...] Os elementos do processo lírico podem ser confundidos não em sua essência, mas uns com os outros; se se confundir o medium com o objeto, o poema cairá no puro verbalismo, seja ele acadêmico ou de (pseudo) vanguarda; se o fim for tomado por objeto, o poema, dedicado à pintura de universalidades abstratas, será o oposto da astúcia da mímese, da figuração do universal no e pelo singular; será produto do que se deveria chamar “mímese ingênua”, o pecado que Allen Tate classifica como “angelismo”. Finalmente, o processo de mímese lírica pode ser todo ele confundido com um de seus elementos: é o caso de confusão da lírica com seu objeto; pela extensão da identificação deste com os estados de ânimo a um império generalizado do emotivo, encarado também como fim e veículo da poesia, o poema se diluirá em versalhada sentimental, isenta de energia intelectual, desprovida de qualquer insight sobre a experiência, e (paradoxo apenas aparente) do próprio poder de emocionar. Já Lessing dizia da lírica de Klopstock que era “tão cheia de sentimento, que, ao lê-la, com frequência não se sente nada”. Esta última confusão criada pelo baixo romantismo, e dotada de uma persistência daninha, é a seu modo uma sinédoque, uma pars pro toto: toma-se um elemento do processo lírico pela sua totalidade.
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese: ensaios sobre lírica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 28-29.
5.2.13
Preferência
É preferível fracassar com a certeza de que seria ajudado a tê-la finalmente desmentida.
Função
Os noticiários parecem cumprir a função exclusiva de provar que, se por acaso há no mundo coisa pior do que o “Ocidente”, só mesmo tudo quanto o não seja.
Impressão
A impressão é de que a Igreja foi sempre oficialmente contra os abusos com os quais nem por isso não se beneficiou.
2.2.13
29.1.13
“Cova do tempo”
[...]
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
— liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.
Aqui, além, pelo mundo,
ossos, nomes, letras, poeiras...
Onde, os rostos? onde, as almas?
Nem os herdeiros recordam
rastro nenhum pelo chão.
[...]
— Cecília Meireles, em “Fala inicial”, de Romanceiro da Inconfidência, 1953.
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
— liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.
Aqui, além, pelo mundo,
ossos, nomes, letras, poeiras...
Onde, os rostos? onde, as almas?
Nem os herdeiros recordam
rastro nenhum pelo chão.
[...]
— Cecília Meireles, em “Fala inicial”, de Romanceiro da Inconfidência, 1953.
27.1.13
SP
A única coisa que os cariocas não gostam de São Paulo é frequentá-la. Fora isso, e à distância...
“Silêncio que o poeta exuma do pó”
[...]
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não ouça coisa alguma.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não ouça coisa alguma.
— Ferreira Gullar, em “Falar”, de Em alguma parte alguma, 2010.
26.1.13
Escoamento
A grande tragédia lusa na América foi não terem viabilizado um escoamento natural para nossos esnobes. Foi não nos terem dado uma metrópole própria e definitiva. Um centro modelar para o qual fugir. Foi, pela própria sucursalização, nos terem tirado Lisboa, ficando a nossa gente — e também a deles — condenada a uma superioridade exclusivamente teatral. Pois, se a América Inglesa teve sempre sua Londres, e a Espanhola, sua Madri, à nossa não restou senão — Paris?
Relação
A relação dos brasileiros com o governo é a de quem delega um serviço tão baixo, tão sujo, que a mera supervisão dele é já uma desonra. O brasileiro — mesmo o pior — é alguém muito especial pra se ocupar com resolver problemas, ainda mais dos outros.
22.1.13
20.1.13
Duplo fim da linguagem
O fim da linguagem é, assim, duplo e contraditório: comunicação e cerceamento. Leva-nos para fora de nós, mas reentra-nos em nós pela vida de fraternidade e entendimento com aqueles que são nossos iguais ou próximos pelo espírito, pelo passado, pelas emoções comuns, pelo ofício e pelos interesses. O idioma une um povo adentro de si, mas separa-o dos outros povos. Quanto mais se aprende uma língua, tanto mais se desaprendem e esquecem todas as outras. Falar uma língua, que não é a nossa, é sempre tentar mudar de alma e de aparelho de fonação. Quando se fala bem a nossa língua, com domínio pleno de todos os seus mistérios, com estreita identificação com as experiência nela estratificadas, implicitamente praticamos um ato de guerra passiva contra todos os povos estranhos, porque nos isolamos por detrás de uma forte muralha espiritual, aquela selva das nossas peculiaridades separadoras. Só têm forte personalidade os povos que sabem expressar essa personalidade com mestria em palavras próprias, palavras fiéis aos aspectos fugentes do seu sentir mais típico e dos seus gostos mais enraizados, desde a cozinha até a etiqueta, através de todos os escaninhos da ética.
— Fidelino de Figueiredo, em “Onipresença da palavra”, de A luta pela expressão: prolegômenos para uma filosofia da literatura, 1944.
Ibero-americana
Y ahora, ¿son en las repúblicas del Plata tan poco y tan mal conocidas las producciones literarias y científicas del Brasil como aquí son poco y mal conocidas las de Portugal? No sé por qué me inclino a sospechar que sí.
Ahí, entre naciones de lengua española, hay una, y una gran nación, en vía de rápido progreso, de lengua portuguesa.
¿No debería ser esto una razón para que los americanos de lengua española se interesaran por el espíritu que se vierte en lengua portuguesa? Un providencialista creería que el haber metido Dios ahí una gran nación de habla portuguesa entre las naciones de habla española es para que un día se integre ahí, como aquí se integrará, el común espíritu ibérico al que le están, aquende y allende el océano, reservados tan grandes destinos.
— Miguel de Unamuno, em La literatura portuguesa contemporánea, 1907.
18.1.13
16.1.13
Cara e coração
Os cariocas se dividem entre os que já foram assaltados — e os que têm cara de assaltante.
15.1.13
Opção
Agora, ou o Flamengo se reduz ao tamanho do que pode bancar, até poder bancar de novo o tamanho que tem, ou continua no seu faz-de-conta, servindo mais a quem o dirige que a quem o sustenta.
Cada qual
“O asno a quem um cachorro ofereceu carne retribuiu com feno, ficando ambos com fome.” — Ditado posto por Tolstói na boca de Khadji-Murát, líder checheno e herói do livro a que dá nome.
14.1.13
12.1.13
Diferenças
Sobre a questão racial, talvez fosse mais justo lutar contra a ideia de superioridade que lutar a favor da de igualdade, numa superficialização das diferenças em que só as de culturas periféricas perdem. Agora somos todos iguais, e só nos distinguem a cor da pele, a textura do cabelo e a largura do nariz, meros detalhes, motivo pelo qual devem todos abandonar suas particularidades a fim de ingressarem no mundo magnífico da Civilização. E o que era para dignificar as divergências, serve agora para as eliminar: já não há quem seja inferior aos europeus — desde que se lhes assemelhe. Mil vezes não. É justamente por não serem intrinsecamente inferiores que não têm por que se igualarem. É justamente por serem iguais que podem manter-se diferentes.
11.1.13
Malandragem
Sempre me falta dinheiro para os livros mais caros porque nunca deixo passarem os mais baratos.
9.1.13
7.1.13
As palavras
2
Os cardos se abriram
fecharam-se os lírios
horizontes amplos
estreitaram o âmbito
só pela palavra
que em tempo de espera
nos foi negada.
A casa estremece
no próprio alicerce
pelo desatino
de alguma palavra
de metal ferino
que nos fira o ouvido
sem qualquer preparo.
Os verdes ondulam
ao longo das várzeas
espelhos se aclaram
no colo das grutas
por palavra terna
que a alma nos enleva
no momento exato.
Ó cores nascidas
ó sombras criadas
ó fontes detidas
ó águas roladas
ó campos abertos
por simples palavras.
LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: Poesia Geral, 1929/1983. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 515-516.
Os cardos se abriram
fecharam-se os lírios
horizontes amplos
estreitaram o âmbito
só pela palavra
que em tempo de espera
nos foi negada.
A casa estremece
no próprio alicerce
pelo desatino
de alguma palavra
de metal ferino
que nos fira o ouvido
sem qualquer preparo.
Os verdes ondulam
ao longo das várzeas
espelhos se aclaram
no colo das grutas
por palavra terna
que a alma nos enleva
no momento exato.
Ó cores nascidas
ó sombras criadas
ó fontes detidas
ó águas roladas
ó campos abertos
por simples palavras.
LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: Poesia Geral, 1929/1983. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 515-516.
6.1.13
Círculo
Andam todos muito desanimados com nossa falta de entusiasmo pelas coisas deles pra se entusiasmarem com as nossas.
5.1.13
2.1.13
Ilusão
La amarga ironía
Dicen que suicidarse es un delito;
Que hay que aceptar la vida como es.
La fórmula optimista es esta fórmula:
“luchar para vencer”.
No maldigas tu vida. Sufre y calla;
piensa en la dicha, sueña en el amor.
¿El corazón te duele? Busca un médico:
¡cúrate el corazón!
Si tienes hambre piensa en que has comido;
— ¡llénate la barriga de ilusión! —
pero no te suicides ni protestes,
que te castiga Dios...
Arrástrate, envilécete, mendiga.
La vida hay que aceptarla como es;
y aun en el lodo, di dentro del lodo:
“luchar para vencer...”
Dicen que suicidarse es un delito;
Que hay que aceptar la vida como es.
La fórmula optimista es esta fórmula:
“luchar para vencer”.
No maldigas tu vida. Sufre y calla;
piensa en la dicha, sueña en el amor.
¿El corazón te duele? Busca un médico:
¡cúrate el corazón!
Si tienes hambre piensa en que has comido;
— ¡llénate la barriga de ilusión! —
pero no te suicides ni protestes,
que te castiga Dios...
Arrástrate, envilécete, mendiga.
La vida hay que aceptarla como es;
y aun en el lodo, di dentro del lodo:
“luchar para vencer...”
GUILLÉN, Nicolás. Obra poética. Pról. de A. Augier. 4.ed. La Habana: Instituto Cubano del Libro, 2002, 2 t.
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