Ignoro se terá deixado de ser assim hoje em dia, mas é verdade: em nossa época o recreio era uma forma de regressão à primitividade. Volvíamos à sala de aula como se tivéssemos dado um passeio pelo paleolítico: amarfanhados, esfrangalhados, quando não estropiados. Verdadeiro milagre atravessá-lo vivos. Corríamos uns dos outros como se cruzássemos savanas com leões nos calcanhares. Eram nossos 15 ou 20 gloriosos minutos diários pra surrar e ser surrado, sob o olhar ineficaz dos inspetores, talvez coniventes. Só mais tarde, aos poucos, fomos notando a existência das meninas e nos dando conta das potencialidades da nossa humanidade. Então quer dizer que temos a capacidade de sentar e conversar? Então quer dizer que nem todo divertimento consiste em agressões? Que nem tudo na vida é ovinho-porrada?...
30.12.12
29.12.12
Oportunidade
Os livros são também uma questão de oportunidade. Gostam de tratar seu acúmulo como coisa sem sentido, quando a experiência mostra que deixar passar a compra de alguns deles às vezes é perdê-los para a vida. E não apenas em sebos, onde isso é máxima. Lembro muito bem uma antologia de Sophia de Mello Breyner Andresen com a qual sempre esbarrava numa livraria e cuja compra, confiante, sempre adiava. Até que o voluminho sumiu, vindo eu descobrir, da pior forma possível, tratar-se talvez do último em circulação. Nunca mais vi nem sombra. E como esse caso, incontáveis outros. Razão por que é de fato melhor se arrepender de um livro comprado, mesmo que inutilmente. Desses, nós nos desfazemos. Já aqueles, para os reencontrar...
27.12.12
Inferno
O calor é um problema das classes intermédias. Nossos ricos não o sofrem porque vão as 24 horas do dia de ar-condicionado em ar-condicionado — do de casa ao do carro, do do carro ao do escritório, e assim até poderem se entregar à praia, na esquina de onde moram. Os momentos de sufoco seriam os de transição de um ambiente a outro. Seriam, não fossem os corpos ainda resfriados. Nossos pobres, por sua vez, se não contam com o auxílio da refrigeração, têm ao menos a compensação da laje, da mangueira e da piscina de plástico. Sobrando mesmo para os que não são uma coisa nem outra, e não gozam dos benefícios da riqueza nem dispõem da guerreiragem da pobreza. A esses, perdidos nesse meio de caminho, além do inferno das ruas, o dos apartamentos.
25.12.12
Coplas
A Argentina gaúcha, crioula, a dos espanhóis com índios; própria, substanciosa e marginalizada; capaz de coisas como essas coplas de “El payador persegudido”, de Atahualpa Yapanqui.
La sangre tiene razones
que hacen engordar las venas.
Pena sobre pena y pena
hacen que uno pegue el grito.
La arena es un puñadito
pero hay montañas de arena.
*
El trabajo es cosa buena,
es lo mejor de la vida;
pero la vida es perdida
trabajando en campo ajeno.
Unos trabajan de trueno
y es para otros la llovida.
*
Tal vez otro habrá rodao
tanto como he rodao yo,
y le juro, creameló,
que he visto tanta pobreza,
que yo pensé con tristeza:
Dios por aquí no pasó.
*
Si alguien me dice: “señor”,
agradezco el homenaje;
mas soy gaucho entre gauchaje
y soy nada entre los sabios.
Y son pa mi los agravios
que le hagan al paisanaje.
24.12.12
15.12.12
Resumo (2)
Se em “Diamundo” Drummond resume o brasileiro em três versos, em “Entre Noel e os índios”, dedicado ao médico judeu-ucraniano Noel Nutels, no mesmo As impurezas do branco, ele resume em um único o Brasil. Aqui, o indigenista naturalizado brasileiro baixa de helicóptero e vê:
... a fome à beira d'água trêmula de peixes.
13.12.12
Casos
No pior dos casos, a experiência universitária ensina ao menos a não rir do diferente. Já no melhor, nem isso.
12.12.12
Orgulho
Sempre tento justificar minha nulidade pensando que Deus não dá asa às cobras. Que eu seria muito orgulhoso caso fosse bom em algo. Que, se eu já sou assim tão cheio de mim sem qualquer talento, imagina se eu tivesse algum. E que Deus é mesmo muito justo. E sabe muito bem o que faz. Até que de repente lembro do Romário...
11.12.12
5.12.12
4.12.12
Resumo
O brasileiro explicado em três versos de “Diamundo”, poema de As impurezas do branco, de 1973:
Povo lincha ladrão
a soco a pé a pau
e reparte 240 cruzeiros que ele roubou
3.12.12
Memória
Memória, tu dos anos inimiga,
Das coisas fiel guarda e despenseira
— Torquato Tasso, Jerusalém libertada, I, 36, trad. Ramos Coelho.
Das coisas fiel guarda e despenseira
— Torquato Tasso, Jerusalém libertada, I, 36, trad. Ramos Coelho.
1.12.12
30.11.12
Escrita
As redes sociais tornaram a quase todos, e mesmo aos ímpios entre nós, ao menos em um aspecto semelhantes a São Paulo, acusado pelos coríntios de só ser macho por escrito.
29.11.12
Intermitências
Quem quer que tenha passado por uma graduação sabe que a vida não é um sopro assim tão curto, nem a morte sombra tão iminente, havendo mesmo professores e mais professores que nos acompanham pelos quatro ou cinco longos anos de curso — incólumes, sem nem resfriado.
28.11.12
Uma derrota
Talvez só se devesse repudiar o a que se falhasse em aderir, com o máximo de orgulho possível a uma derrota.
25.11.12
Outro escritor, mesma gente
Disse ter sido Euclides da Cunha nosso único escritor a trocar o conforto do gabinete pela experiência em outro mundo, entre outra gente, — experiência que lhe proporcionou um de nossos maiores livros, — mas por ignorância de outro, nem um pouco menos importante. Só hoje descubro que Grande Sertão: Veredas, a par de outras histórias, nasce de uma expedição de Guimarães Rosa — não por acaso, e eu diria até que de maneira bastante emblemática — por outro sertão, agora o mineiro, no ano de 1952: — uma viagem de 240 km percorridos em dez dias, a cavalo, durante os quais ele observou e anotou a vida e a fala de uma dezena de vaqueiros responsáveis por um rebanho de 300 cabeças.
23.11.12
Sexto selo
E vi quando abriu o sexto selo, e houve um grande terremoto; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua toda tornou-se como sangue; e as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira, sacudida por um vento, deixa cair os seus figos verdes. E o céu recolheu-se como um pergaminho que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares. E os reis da terra, e os grandes, e os capitães, e os ricos, e os poderosos, e todo escravo, e todo livre, se esconderam nas cavernas e nas rochas das montanhas; e diziam aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós, e escondei-nos da face daquele que está assentado sobre o trono, e da ira do Cordeiro.
— Ap. 6:12-16.
22.11.12
Ou morte
O amor de um gato pelo dono é proporcional à dificuldade deste em resistir à vontade de esganá-lo. É sério: Só um tipo de gente pode lamentar a independência afetiva da maior parte dos felinos, e é quem jamais conviveu com um que não a tivesse.
20.11.12
19.11.12
Insignificância
Cada um de nós deve tanta coisa à internet: amigos, interlocutores, livros, bandas, ódios, que só por isso já ficamos impedidos de um anátema generalizado. Mas há um outro lado dela que, considerado, desanima. É que na internet, apesar de todas as vantagens — de que outra forma ouviríamos música curda? —, alguém como eu — vejam bem: como eu... — pode chamar de merda a qualquer nome mais decisivo da história e receber ainda por cima o endosso de pessoas como vocês. E toda essa nossa insignificância, que era pra ser remoída no anônimo e inconsequente segredo de uma sala de estar, acaba aí sujeita à apreciação de potencialmente toda a gente. — Não que não existam consagrações injustas. Digo apenas que não somos nós os capazes de proscrever quem quer que seja, sendo essa falta de proporção — esse abismo entre a nulidade do que se é e a importância definitiva com que se fala — um espetáculo que deprime.
18.11.12
Vocação
Você sabe que não tem vocação acadêmica quando, entre outras coisas, nunca lembra de quem disse o que, nem onde.
17.11.12
Outro mundo, outra gente
Uma das grandes faltas na literatura brasileira é a da generosa contribuição, nela, de espíritos curiosos, aventureiros. Nossos escritores foram sempre raquíticos ou balofos homens de salão, afeitos à segurança cômoda de seus gabinetes. Nunca tivemos um Melville, um Stevenson, um Hemingway, um Conrad e outros cuja fama desconheço. Mesmo o valoroso Alencar, buscando formular seu bem-intencionado indianismo, — e tendo índios ali na esquina —, o fez com um dicionário de tupi sobre a mesa. Mesmo Mário de Andrade, depois dele, pretendendo sua releitura da coisa, tratou de encomendar sua bibliografia etnográfica. Selva nem pensar. Também os escritores que andaram presos, encrencados com a polícia política, não o foram por qualquer ação temerária que tenham praticado, mas pelo que andaram publicando em jornais e revistas, só de onda. Todos frouxos, apáticos. O que é de se lamentar, uma vez que o único brasileiro que levantou o rabo da escrivaninha para uma excursão antes de se pôr a escrever foi justo o autor do nosso livro mais singular, mais desconcertante. É verdade que Euclides da Cunha não foi protagonista de rigorosamente nada — não pegou em armas contra Canudos, mero repórter que era —, mas teve pelo menos o mérito de ser testemunha de um grande e trágico episódio, em outro mundo, entre outra gente.
14.11.12
Desábito
De João Cabral, são famosas a neurastenia, a incapacidade para a música e a fascinação por Sevilha. Menos público, porém, é seu gosto por futebol. Que João Cabral não só apreciava — há poemas muito apropriados sobre o tema, obras de um entendedor —, como praticava. Ainda novo — sendo mais exato, em 35, aos 15 anos —, embora torcedor do América de Recife, chegou a disputar (e ganhar) um campeonato juvenil pelo Santa Cruz, como voltante — cerebral de mais para zagueiro e antilírico em excesso para camisa 10, acabou no meio-termo da cabeça de área. E é àquele América, aliás, que dedica um poema cujos primeiros versos são perfeitos na fixação de qual seja a grande e talvez única vantagem do fracasso esportivo mas não só:
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
12.11.12
Babel
Se se lastima o que os povos fazem uns contra os outros, é por desconsideração do que fariam juntos.
9.11.12
Ilusão
Nem toda indiferença ao dinheiro — essa vulgaridade — é prescindência dele. Melhor dizendo, quase nenhuma. Em boa parte dos casos ela não é mais que o desconhecimento da necessidade de ganhá-lo, somado à virtual inexistência do risco de perdê-lo. Muito semelhantemente à que se tem em relação ao ar, enquanto este não falta.
3.11.12
Culturas
Jardim da Praça da Liberdade
Verdes bulindo.
Sonata cariciosa da água
fugindo entre rosas geométricas.
Ventos elísios.
Macio.
Jardim tão pouco brasileiro... mas tão lindo.
Paisagem sem fundo.
A terra não sofreu para dar estas flores.
Sem ressonância.
O minuto que passa desabrochando em floração inconsciente.
Bonito demais. Sem humanidade.
Literário demais.
..................................
Verdes bulindo.
Sonata cariciosa da água
fugindo entre rosas geométricas.
Ventos elísios.
Macio.
Jardim tão pouco brasileiro... mas tão lindo.
Paisagem sem fundo.
A terra não sofreu para dar estas flores.
Sem ressonância.
O minuto que passa desabrochando em floração inconsciente.
Bonito demais. Sem humanidade.
Literário demais.
..................................
Não é por acaso que cultivamos tanto uma planta quanto o intelecto. Nesse outro poema de Drummond aparece, em contraste com os “pobres jardins do meu sertão” da segunda estrofe, a imagem do “Jardim da Praça da Liberdade”, o qual compunha, segundo o poeta, uma paisagem deslocada, artificial, “sem fundo” e “sem ressonância”, perfeita demais para onde se encontrava, com suas “rosas geométricas” cortadas por águas cuja música vinha em forma clássica e por ventos cuja origem era grega. Um jardim “lindo”, “bonito demais”, ele admite, mas “tão pouco brasileiro”. Jardim sem participação alguma da terra, que “não sofreu” para gerá-lo, e cuja floração se dá, rápida, de modo “inconsciente”. Jardim sem a aspereza do entorno. De uma perfeição fria, distante, pouco humana... Sem consequência, como os períodos do poema, curtos, estanques. Em resumo, um jardim parnasiano. — E, não por acaso, a imagem que serve para essa cultura serve, também, para a outra. Não por acaso, a visão que teve o poeta desse jardim é, de igual modo, a que se teve daquele outro, feito de letras. Para ele, aquele era um jardim demasiado “literário”, como demasiado literária era a literatura que o antecedeu.
2.11.12
Imagem e semelhança
Só conseguiram imaginá-la sucumbindo ao Tentador de tanto verem suas filhas sucumbindo a eles.
31.10.12
Sandy
Quanto bem não faz uma catástrofe. O jornal de hoje, por exemplo, tem o triplo da espessura do de ontem.
Impressão
Sempre me fica a impressão de que, no fundo, quem vende livros acha um belo de um trouxa quem os compra.
Comércio
Quanto à cultura, o brasileiro é aquele homem que quer enriquecer pelo comércio, começando por se livrar da herança.
Democracia
O espírito democrático na literatura americana: em Whitman, com o homem igual a todo homem; em Melville, com o heroísmo trágico dos párias; em Faulkner, com um mesmo episódio segundo as incertezas de cada personagem.
Pergunta
Publicada a correspondência entre Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, dando ainda mais motivos para a pergunta sobre a quem Mário de Andrade não terá escrito. Se bem que exista uma possível resposta: alguém dizia numa entrevista — acho que o Secchin — que João Cabral se queixava justamente de ter sido o único poeta/escritor iniciante a cujas cartas Mário não havia respondido...
A história do regresso
Bem ao contrário de nós, que vamos deixando o passado para trás, tendo pela frente todo um hipotético futuro, — e não sem certa razão, se pensamos duas vezes —, os tuvanos, povo de origem turca que habita alguma parte do que hoje é a Rússia, falam uma língua em que este fica às costas de quem vive, uma vez (dizem) que é ignorado, enquanto aquele fica à frente, já que está sempre ante os olhos da memória. De modo que, pra eles, “seguir adiante” é deter-se no passado, tanto quanto “voltar atrás”, dedicar-se ao futuro.
29.10.12
Desinformação
Ou nos comunicam alarmados mais um passo dado rumo ao fim do mundo, cada vez mais próximo, ou então nos denunciam a amplificação politiqueira de fatos que, em todo caso, ficaremos sem saber.
27.10.12
O sono
Consolo na praia
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
Nada mais brasileiro que esse poema de Drummond. Nele, o poeta está desamparado, entregue aos elementos, “nu na areia, no vento”, e uma voz o consola: “Vamos, não chores...” E de que forma? Apontando as coisas boas em oposição às más, buscando convencê-lo de que as primeiras ultrapassam em número as segundas? Ou ainda, mais simplesmente, desviando seus olhos dessas últimas, assinalando qualquer outro bem que as compense? Quem sabe apelando sinceramente a uma resposta vinda dos céus, dada toda desesperança terrena, como aliás fez Murilo Mendes? Nada disso. A voz o consola alegando que, mesmo não havendo solução — “A injustiça não se resolve” —, é isso aí, resta ainda qualquer coisa — um cão, o humour — e, afinal, a vida continua — outros mais virão, também com queixas. Essa voz, que por fim descobrimos ser uma voz maternal (que pai falaria assim com um filho?), conclui dizendo: “Tudo somado / devias precipitar-te, de vez, nas águas”. Tudo somado... Quando é precisamente o resultado dessa soma que ela quer impedir, recomendando-lhe, após umas reticências que são um convite à desconsideração do previamente dito, o sono: “Dorme, meu filho”. Esquece. — Não é que o brasileiro, com o poeta, não enxergue a realidade, incômoda o mais das vezes. Não é que o brasileiro goste de se enganar. Não é que persevere, a espera de uma intervenção divina. É mais que o brasileiro evite a todo o custo tirar do que vê as devidas conclusões, as quais o obrigariam a uma tomada de posição. É mais que ele prefira a inércia, só conseguida nesse caso com o amortecimento da consciência. Com o sono. (À parte isso, que grande verso é o: “À sombra do mundo errado”, digno de figurar como título do mais belo e triste livro jamais escrito.)
24.10.12
Fama
O responsável pela fama diabólica adquirida pelos gatos durante a Idade Média foi o modo como sempre reagiram aos banhos de água benta.
23.10.12
22.10.12
18.10.12
Homenagem
Nuper erat medicus, nunc est vespillo Diaulus.
Quod vespillo facit, fecerat et medicus.
Diaulus, que até ontem era médico, hoje é coveiro.
E quanto faz hoje o coveiro já ontem o médico fazia.
— Martialis, Liber I, XLVIII.
Quod vespillo facit, fecerat et medicus.
Diaulus, que até ontem era médico, hoje é coveiro.
E quanto faz hoje o coveiro já ontem o médico fazia.
— Martialis, Liber I, XLVIII.
Cume
O Flamengo é o cume do futebol sul-americano, estando numa altura tão elevada, que o ar rarefeito até os impede de correr, coitados.
Mistério
O problema com o baixíssimo rendimento de alguns jogadores que passam pelo Flamengo — quando fica descartada a primeira de todas as hipóteses, que é a da mais irremediável ruindade — é que a gente já não sabe distinguir entre aquele provocado pelo peso da camisa e aquele devido à mera falta de pagamento.
17.10.12
14.10.12
Jesus, Maria, José
O time que não ganha em casa de outro treinado pelo Celso Roth é porque não ganha de mais nenhum. Mas o pior é que o Flamengo nem está assim tão ruim pra que se possa esperar por melhoras. Estamos visivelmente no limite, todos correndo o quanto podem, o que no caso de alguns é nada. É isso ou é isso, até o fim, pra desespero nosso.
13.10.12
Ecos
Terá Mário de Andrade conhecido o perspectivismo de Ortega y Gasset? Melhorando a pergunta, terá Mário de Andrade lido as Meditações do Quixote, publicadas em 1914? Isso me pergunto pois não apenas encontro no trecho da carta a Drummond ecos do famoso “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela não me salvo a mim”, como a variação de um mesmo argumento, qual seja, o do enriquecimento da cultura geral por parte de um povo a partir da confirmação da própria. Nela, diz Mário que “O dia em que nós formos inteiramente brasileiros”, isto é, o dia em que nos relacionarmos integralmente com nossas “necessidades imediatas práticas e espirituais”, sem tomarmos de empréstimo as de outros, a “humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas.” O que uns dez anos antes Ortega, tratando do caso espanhol, agravado já pelo particularismo nacionalista de bascos e catalães, no capítulo “A crítica como patriotismo”, disse dessa forma:
Olvidamos que toda raça é, afinal, um ensaio para viver de maneira nova, experimento de nova sensibilidade. Quando a raça consegue desenvolver plenamente suas energias peculiares, o orbe se enriquece de modo incalculável: a nova sensibilidade suscita outros usos e instituições, outra arquitetura e outra poesia, outras ciências e outras aspirações, outros sentimentos e outra religião. Pelo contrário, quando uma raça fracassa, toda essa possível novidade e aumento ficam irremediavelmente nonatos, porque a sensibilidade que os cria é intransferível. Um povo é um estilo de vida e, como tal, consiste em certa modulação simples e diferencial que vai organizando a matéria em torno. Causas exteriores desviam de sua trajetória ideal este movimento de organização criadora em que se vai desenvolvendo o estilo de um povo e o resultado é o mais monstruoso e lamentável possível. Cada passo à frente nesse desvio soterra e oprime ainda mais a intenção original, envolvendo-a numa crosta morta de produtos fracassados, toscos e insuficientes. A cada dia é esse povo menos o que deveria ter sido.
9.10.12
Memória
A memória acredita antes que o conhecimento recorde. Acredita mais tempo do que recorda, mais do que o conhecimento pode imaginar.
— William Faulkner, Luz em agosto.
— William Faulkner, Luz em agosto.
Abstração
Um homem que não é daqui ou dali, desta ou de outra época, que não tem sexo nem pátria — uma ideia, enfim. Isto é, um não-homem.
— Miguel de Unamuno, logo na abertura de Do sentimento trágico da vida, de 1913, em capítulo intitulado, não por acaso, “O homem de carne e osso”.
8.10.12
Ajuda
Se há uma coisa que me incomoda na ideia de uma outra vida, num céu ou num inferno, é o fato de que ela prolongaria a desigualdade entre os homens para além da morte, que serve justamente para igualá-los. Antes do predomínio da crença numa recompensa divina dada nesses termos, a esperança dos homens ante as injustiças do mundo fundamentava-se em que, na cova, já não há rei nem súdito, servo nem senhor, rico nem pobre. Mais tarde, entra em jogo com o cristianismo uma espécie de inversão, ainda aceitável, na qual o grande sofre no outro mundo a dor que permitiu ou infligiu ao pobre, enquanto este goza finalmente do consolo que não recebeu daquele — o episódio entre Lázaro e o rico, por exemplo —, ficando elas por elas. Com o tempo, porém, cai a inversão proporcionada pela interdição à riqueza, podendo a gente agora ser grande nessa vida como na outra, ou viver miseravelmente aqui como lá, — o que não ajuda.
7.10.12
“Camisa apertada”
É fácil condenar uma vida
de fora, sem ter que vesti-la
— João Cabral, em Agrestes, sobre a de Camilo Castelo Branco.
de fora, sem ter que vesti-la
— João Cabral, em Agrestes, sobre a de Camilo Castelo Branco.
4.10.12
Índole
O futebol é tão parte da índole do brasileiro, que nem no campo das ideias ele resiste a um chute.
3.10.12
Tipologia
Os brasileiros se dividem entre os que não desperdiçam ocasião de um ganho ilícito — e os medrosos.
2.10.12
30.9.12
A pergunta
A primeira pergunta que me veio à mente outro dia, ainda deitado: o que afinal distingue o que só eu vejo, estando acordado, daquilo com que sonho?
29.9.12
Dilema falso
Trecho de uma das primeiras cartas de Mário de Andrade em resposta a um Drummond ainda jovem e inédito, por volta dos seus 22 anos, muito bem educado em francês e cheio de asco do Brasil. Carta que se encontra em A lição do amigo, reunião delas feita e comentada pelo próprio destinatário, publicada pela José Olympio.
Mais adiante você fala em “apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites”. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros — ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente, deixará de ser nacional. O despaisamento provocado pela educação em livros estrangeiros, contaminação de costumes estrangeiros por causa da ingênita macaqueação que existe sempre nos seres primitivos, ainda por causa da leitura demasiadamente pormenorizada não das obras-primas universais dum outro povo, mas das suas obras menores, particulares, nacionais, esse despaisamento é mais ou menos fatal, não há dúvida, num país primitivo e de pequena tradição como o nosso. Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la. [...] De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização. Me compreende bem? Porque também esse universalismo que quer acabar com as pátrias, com as guerras, com as raças etc., é sentimentalismo de alemão. Não é pra já. Está longíssimo. Eu creio que nunca virá. A República Humana, redondinha e terrestre, é uma utopia de choramingas e nada mais. Avanço mesmo que, enquanto o brasileiro não se abrasileirar, é um selvagem. Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e S. Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações. Cada uma se orienta conforme as necessidades e ideais duma raça, dum meio e dum tempo. Dizer por exemplo que os egípcios da 18º dinastia representam um degrau da civilização antiga que atingiria o esplendor com o séc. V a.C. dos gregos é uma besteira que dá apoplexia na gente. São ambos apogeus de civilizações diversíssimas. Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa, ou a alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo. Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são inteiramente outras, nosso povo outro, nossa terra outra etc. Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação. E então seremos universais, porque nacionais. Como os egípcios, como os gregos, como os italianos da Renascença, como os alemães de 1750-1880, como os franceses do séc. 17, como os norte-americanos do séc. 20 etc.
28.9.12
Exigência recém-adquirida
Os nascidos em famílias suburbanas, para as quais comer fora é extravagância, passam cerca de vinte anos comendo quase diariamente um único tempero materno, ao qual intercalam a espaços o das avós ou o da madrinha, até que arranjam um bom emprego na Rio Branco e já não suportam dois dias seguidos do mesmo restaurante.
27.9.12
Esquemas
Mais recomposto da vitória e deixando de lado as ofensas aos atleticanos, que não obstante as merecem, digo apenas que o mais engraçado no adiamento desse Flamengo x Atlético-MG, o primeiro encontro do senhor Ronaldo de Assis Moreira com seu ex-clube, é que a Globo-CBF — de olho na transmissão do jogo também para o estado do Rio, o que não seria possível durante uma rodada regular, com outros times cariocas jogando fora — tenha agido por intermédio da diretoria do insuspeito Botafogo, o time que não se mete em esquemas.
Paraíso
Que paraíso este mundo não tornaria a ser, se nem tudo que não merecesse defesa sofresse oposição, e vice-versa.
Zússia
Antes do fim, disse o Rabi Zússia: — No mundo vindouro não me perguntarão: Por que não foste Moisés? Perguntar-me-ão: Por que não foste Zússia?
São tantas as grandes coisas fora do alcance de nossas mãos, tão inábeis, que acabamos negligenciando as que nos cabem, porque reles. Podemos não ter reservada ingerência alguma nas dez pragas, nem na abertura do mar, ou na extração das águas em Meribá, muito embora não nos falte serviço numa obscura aldeola ucraniana ou polonesa.
Gedeão
Homem
Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.
Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.
GEDEÃO, António. “Movimento perpétuo”. In: _______. Poesias completas. 3. ed. Lisboa: Portugália Editora, 1970.
26.9.12
Aquela antes dessa, ou o contrário
Só conhece a própria língua quem conhece uma língua estrangeira (Goethe), que já ninguém conhece antes de conhecer a própria.
Argumento
Talvez não haja maior argumento contra a liberdade do que a liberdade mesma como argumento.
24.9.12
Moby Dick
Um daqueles livros que Paulo Coelho resumiria a um twit, nesse caso não por não passar de estilo, mas pelo acúmulo de informações que postergam ao máximo a ação, relativamente ao tamanho da obra pouca e simples. Contudo, basta que se tenha em mente que Deus, querendo extinguir do globo a raça humana, transformou-o num imenso e único oceano, — num imenso e único domínio leviatânico —, para se ter um vislumbre da dimensão simbólica existente para além da mera exaustão documentária. Dimensão essa que, apesar de profunda, inesgotável, talvez não impeça que se caminhe para o fim da leitura nutrindo pelos componentes da pesca baleeira o fastio de alguns Inklings pelos hobbits de Tolkien, àquela altura onipresentes. Digno de nota ainda é que o heroísmo trágico daqueles homens ordinários, — alguns, verdadeiros párias —, nós brasileiros o conhecemos de outro lugar. Nomeadamente, de Os sertões. O que é curioso. Melville começa com aquela leveza superior, quase leviana, de um Machado, e termina prestando aos miseráveis do mar o grave serviço que, mais tarde, Euclides prestará aos do sertão.
22.9.12
19.9.12
Idade
........................
Impossível impedir
o branco nos cabelos,
assim como criar ouro:
como se livrar da idade
e de seus incômodos?
Melhor começar logo
o estudo do não ser.
— Wang Wei, “Sozinho na noite de outono”, tradução de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi.
Impossível impedir
o branco nos cabelos,
assim como criar ouro:
como se livrar da idade
e de seus incômodos?
Melhor começar logo
o estudo do não ser.
— Wang Wei, “Sozinho na noite de outono”, tradução de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi.
18.9.12
Uma solução
Não deve haver no mundo coisa mais injusta do que as regras condominiais para a realização de obras. Simplesmente porque proibi-las aos fins de semana e feriados não é suficiente, uma vez que não contempla, por exemplo, os que trabalham em casa. Ou ainda os que, trabalhando durante a noite, dormem durante o dia. Como ficam esses, ante a volubilidade de gente com acesso a martelo e furadeira? Para dar fim ao suplício que é ter a paz dos dias à mercê dos vizinhos, bastava uma medida por de mais simples, a qual muito me admira não tenha sido pensada: o estabelecimento de uma temporada anual de obras em prédios residenciais. Com estabelecê-la, acabava-se de vez com isso de ter como despertador os miseráveis do apartamento ao lado, com sua mudança na disposição dos armários da cozinha. A restrição não atingiria, é claro, as duas ou três pancadas necessárias para a colocação do que seja à parede de uma sala, mas antes os dias inteiros de perfurações, serragens, lixamentos e marteladas, semana após semana, e sempre segundo o capricho alheio.
17.9.12
Nefelibatismo
Apesar das exceções — pois, com alguma frequência, e uma frequência maior até do que a conveniente, veem-se por aqui pobres olímpicos (cujo nosso maior representante talvez seja o grande Cruz e Souza, filho de escravos que amargou durante a vida a mais tísica das pobrezas nacionais enquanto meditava sob o tédio nebuloso de um parisiense) e ricos que, conquanto sem abrir mão das possibilidades familiares, se revoltam consternados contra as circunstâncias que as proporcionaram, cheios de culpa — a tendência é cada um nutrir pelo mundo a indiferença que permita a renda paterna. É muito natural que, não havendo que se preocupar com o dia de amanhã, existindo para resolvê-lo algo chamado herança, alguns acabem disponíveis para a maior inutilidade ao alcance de seus intelectos. Seja a que for que se dediquem, o cuidado estará sempre no sentido de não se imiscuírem. E mesmo quando pretendam alguma espécie de contribuição, tratarão de empenhar-se por uma que, muito escrupulosamente, não contribua para nada. Majestaticamente. Já outros, à margem oposta daqueles, negociando o almoço para garantir a janta, não perderão a chance, mesmo que diminutíssima, de interferir no rumo das coisas, visando sempre a uma mudança que lhes melhore coletivamente a situação, sempre precária.
16.9.12
15.9.12
Ego
O objetivo das religiões se alcança pelo combate ao ego, que em nenhuma outra é tão eficaz quanto na minha.
14.9.12
12.9.12
Puxa
Para além do acadêmico, que no melhor dos casos trata hoje de ressaltar o mais imparcialmente possível aquilo que, com um pouco mais de atenção dedicada e conhecimentos colaterais, o público mesmo perceberia; para além daquele, pretensamente científico, todo e qualquer discurso a respeito de uma obra de arte (que já só pode ser em favor ou contra ela), sobretudo na internet, não passa de um mais ou menos estendido, informado e pedantesco: “Puxa”.
Interesse
Uma verdade que eu antes conhecia de ouvir falar, admitindo-a como razoável embora sem muita convicção, e que testemunho agora ser infalível. Definitivamente, não há livros demasiado longos. O que há são livros que não nos despertam o interesse, por melhores e mais fundamentais que sejam. Ora por defeito de gosto, que é o que o torna nosso, ora por lapso de tempo — havendo livros que chegam antes daquela altura da vida ou do dia em que nos poderão ser proveitosos.
11.9.12
Todos sonham o que são
Eu poucas vezes na vida li coisa tão arrebatadora quanto as palavras do príncipe Segismundo quando de volta ao cárcere, bem ao fim da Jornada Segunda de La vida es sueño, de Calderón de la Barca:
... pues estamos
en mundo tan singular,
que el vivir sólo es soñar;
y la experiencia me enseña
que el hombre que vive, sueña
lo que es, hasta despertar.
Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe,
y en cenizas le convierte
la muerte, ¡desdicha fuerte!
¿Que hay quien intente reinar,
viendo que ha de despertar
en el sueño de la muerte!
Sueña el rico en su riqueza,
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.
Yo sueño que estoy aquí
de estas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño;
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.
10.9.12
O problema
Lembro uma campanha promovida pelo TSE que o dinheiro adquirido com a venda de votos é um dinheiro sujo; o que, sendo ou não sendo — deve haver controvérsias —, está longe de constituir um problema, desde que dinheiro algum perde o valor por estar mais ou menos encardido. E, como o de que se precisa é dinheiro que valha, vindo de onde vier e da maneira que for, o grande risco que envolve essa negociação — risco para o qual nunca vi o mais mínimo alerta — é o de os trocarmos por dinheiro rasgado, que já nenhum estabelecimento aceita. Atente-se, pois, para isso.
9.9.12
Otimismo
O Adriano passa os próximos dois meses lutando pra entrar em forma. Mesmo não chegando nunca aos 100%, antecipa a estreia para a 38ª rodada, a última do campeonato, contra o Botafogo, no Enganhão. Sem ritmo de jogo, faz uma exibição discretíssima, até que consegue, aos 40 do segundo tempo, o gol do empate, — que, somado a uma improvável combinação de resultados, nos livra uma vez mais da Série B.
7.9.12
Trânsito
Para ser-se um motorista ideal, daqueles louvados pelas campanhas publicitárias em favor da paz, é preciso, antes e acima de qualquer coisa, não ter culhões. Àqueles que infelizmente os têm, se querem ainda por-se atrás de um volante mas sem verem sua honra conspurcada pelo primeiro taxista com que por acaso cruzem, resta uma única alternativa, que é saírem de casa dispostos a matar. Um terceiro grupo de homens, porém, — composto por aqueles que, tendo algum amor-próprio, são demasiado preguiçosos para tirarem a vida de alguém que, houvesse alguma justiça nesse mundo, em primeiro lugar nem a tinha recebido, — um terceiro grupo de homens, porém, abstém-se da estúpida brincadeira, indo e vindo de ônibus, metrô, ou mesmo táxi, — passando incólume por entre a turba de humilhados e ofendidos, quando não de homicidas consumados ou futuros, de que é feito o trânsito das grandes cidades.
6.9.12
Uma cena triste
A visita de H. H. ao barraco da então sra. Dolores Schiller, grávida. (Tristeza que se completa quando, terminada a leitura, voltamos ao prefácio, há tanto esquecido, e somos lembrados de que ela falece ao dar à luz uma menina natimorta, anos antes da publicação do livro.)
5.9.12
Acepções
Li recentemente A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne, ficcionista norte-americano de extração puritana, contemporâneo ao nosso Alencar. Livro que, apesar de apresentado como romance — romance construído a partir de um documento encontrado numa das salas abandonadas da repartição na qual trabalhava e cujo conteúdo remonta aos primórdios da colonização da Nova Inglaterra —, por girar em torno de uma única personagem e seu estigma, e por ter nas edições em inglês pouco menos de 200 páginas, terminei de ler inclinado a julgá-lo mais propriamente uma novela. E, sem muitos cuidados, fiquei nisso. Até que hoje, folheando o A casa das sete torres — publicado em 1851, portanto um ano após aquele —, logo deparei, no início do curto prefácio, com as acepções que o próprio Hawthorne dava aos vocábulos em questão, — as quais, na tradução de Lígia Autran Rodrigues Pereira, são as seguintes:
Quando um escritor intitula seu trabalho de romance, visa uma certa amplitude em relação à forma e ao assunto, a que não pretenderia se fosse escrever uma novela. Essa última forma de composição tem por escopo uma minuciosa fidelidade aos fatos não só meramente possíveis mas aos prováveis e ordinários da experiência humana. O romance se reserva o direito de apresentar a verdade sob circunstâncias da escolha ou criação do autor; como obra de arte, porém, deve submeter-se a leis, e peca quando se afasta da verdade humana. O autor pode conduzir a atmosfera ambiente de modo a salientar ou arrefecer as luzes e aprofundar ou enriquecer as sombras do quadro. Sem dúvida, será prudente fazer uso moderado desses privilégios, usando o maravilhoso somente como perfume delicado e sutil e nunca como substância do prato oferecido ao público. Contudo, mesmo que despreze essa precaução, ao romancista dificilmente poderá se acusar de ter cometido um crime literário.
4.9.12
Percebem?
A sociedade tem sua parcela de culpa em rigorosamente cada ato de violência praticado dentro dela, salvo naqueles contra as mulheres, de responsabilidade exclusiva de quem os comete.
Esquina
Nem um pedido de esmola me confrange mais que a obra de um mau artista posta à venda numa esquina.
3.9.12
Candidato
Eu queria um candidato a prefeito que, uma vez eleito, entrasse em litígio com o Sérgio Cabral, combatesse as UPPs e garantisse o conseqüente retorno gradual da violência ao asfalto, como por aqui se diz. Ou, antes, que os bairros — mais precisamente o melhor deles, a Tijuca — deperecessem e voltassem ao que eram antes de o Governo do Estado iniciar, com o convênio com o crime organizado, o processo de mascaramento da cidade, por intermédio do qual ela acabou se tornando cara de mais para certo tipo não eleito de carioca. E que com esse retorno do já saudoso tráfico às ruas, o preço dos imóveis — entre outros — caísse para o que era há dois anos atrás (uma das marcas de semianalfabetismo sendo a ojeriza aos pleonasmos, tão nobre figura de linguagem), o que, 1º, acabaria com a farra dos aluguéis extorsivos, só renovados agora com reajuste de mais de 100%, e, 2º, levaria os imbecis comprometidos a pagar meio milhão de reais pelos próximos 30 anos a pularem ornamentalmente das janelas de seus apartamentos supervalorizados ao vê-los voltando a valer a mixaria que de fato valem. Isso era o que eu queria que um candidato a prefeito prometesse. E não apenas eu, imagino, como todo e qualquer carioca que não seja ou executivo, ou advogado, ou médico, ou engenheiro. Nem os filhos sustentados por eles.
2.9.12
Firme
Quem está pleno de virtude
é como um recém-nascido:
................................
Seus ossos podem ser frágeis; seus tendões, tenros,
mas seu aperto de mão será firme.
................................
— Lao Tsé.
é como um recém-nascido:
................................
Seus ossos podem ser frágeis; seus tendões, tenros,
mas seu aperto de mão será firme.
................................
— Lao Tsé.
31.8.12
Blandícia
Parece até que gostamos de nos julgar numa sociedade violenta. Do contrário, por que nos diríamos em uma que, pesadas as coisas, é branda em demasia, matando até de menos? Não é difícil perceber que a quantidade de brasileiros rebolando cretinice por sobre a terra é incomensuravelmente maior que a de brasileiros mortos, por exemplo, com um tiro na cara, — o que só por si põe em xeque tal alegação. Eu poderia apelar para um número infinito de circunstâncias — nós conhecemos bem a fauna que habita as filas, os transportes públicos, os locais de trabalho, as cátedras universitárias —, mas opto pela mais ampla. Para onde olhamos, vemos ruas pavimentadas, e nessas ruas, carros, e nesses carros, ao volante, brasileiros. Pois bem. Conquanto chamem violento a esse nosso trânsito, eu lhes asseguro que não há uma só vez que eu saia de casa sem testemunhar algum motorista sair ileso depois de muito implorar por um tiro. Hoje mesmo vi um sujeito descer do carro e partir com impropérios em direção a outro, logo atrás. De imediato me ocorreu: menos um. E, todavia, nada. Cansado de xingar, sem o tão merecido óbito, virou-se, retornou ao carro e foi-se.
27.8.12
Peões
Houvesse no Brasil algum interesse real pela meritocracia (e que essa palavra seja possível em português é já uma coisa que abisma), ele teria de começar por combater o condicionamento das oportunidades às contingências sociais. Se o que contasse fosse o tão babado valor individual, e não o da família em que se nasce, era de se esperar que buscassem eliminar o desperdício dele, viesse donde viesse. Duas coisas que não ocorrem. Andam os brasileiros falando de mérito, excelência e competitividade, mas o que lhes tira o sono é a faxina, ou quem há de realizá-la. Tanto quanto a portaria, ou quem há de vigiá-la. E o filho, ou quem há de cria-lo. É verdade que, se perguntados, lamentarão a queda do ensino público superior, quando a única que realmente os aflige é a da casta de desqualificados para fins subalternos.
22.8.12
States
O Afrânio Coutinho da autonomia das letras nacionais é o mesmo da introdução no país do New Criticism, sob a alegação de que agora nos States é assim.
Quadro
Família concentrada num cômodo da casa, cada membro seu com um tablet no colo: oh, horror. Essa mesma família, nesse mesmo cômodo, e no colo de cada qual, agora, um livro: a salvação da humanidade.
20.8.12
Solução (2)
O progressista planeja o mundo ideal contando com as soluções possíveis, enquanto o conservador planeja o mundo possível contando com as soluções ideais.
Voto
Não há argumento mais convincente contra a anulação do voto que a apresentação de alguém que o mereça. Nem mais difícil.
17.8.12
14.8.12
Joyce
Em uma discussão, é preciso restringir-se às idéias. A menos que elas sejam as do Paulo Coelho.
13.8.12
Entre a esquerda e a direita
Me informam que hoje, 13 de agosto, é dia dos canhotos, o que, sendo assim, o faz em parte um dia meu. Em parte porque, graças à santa que me alfabetizou, acabei adquirindo um tipo peculiar de ambidestria, cujo lado bom varia da mão para o pé. Vejam bem: sou um ser humano tão especial, que, não satisfeito em ser canhoto, arranjei de ser um canhoto que escreve com a direita. E se me perguntassem pelo maravilhoso efeito disso em minha vida, eu só conseguiria responder que, se ser canhoto causa desconfiança em quem vê, ser meio-canhoto a causa inclusive em quem é.
8.8.12
7.8.12
5.8.12
Literatura
O que mais me interessa na filosofia é a literatura, que é o que nesta menos me interessa.
Olimpíadas (2)
À parte a falta de estrutura, que afeta mesmo os esportes de eleição, outro grave problema do Brasil é a desigualdade, que o condiciona a uma dispersão mediocrizante. Tirando a parcela brasileira do país (interessada nos esportes já sedimentados, é verdade, com os quais tem contato imediato na rua, no colégio ou no clube da esquina, quase sempre porém sem meios para uma futura dedicação mais exclusiva, profissional), as demais querem a prática daqueles que seguem à distância, pela TV, bem pouco preocupadas com se terão os requisitos físicos e temperamentais que lhes ensejem alguma excelência. Enquanto algumas nacionalidades, mais conscientes de suas limitações, isto é, de seu caráter, dedicam-se aos esportes que lhes são mais propícios (há países que só levantam peso, outros que só correm nas provas de fundo, outros que prioritariamente nadam), há brasileiros que se metem até em Olimpíadas de Inverno.
4.8.12
Olimpíadas
O monopólio do futebol, esporte coletivo em que não raras vezes e pelas mais diversas razões times muito piores conseguem vitórias sobre outros bem melhores, nos privou aos brasileiros da apreciação de esportes individuais cuja competição — embora às vezes simultânea, como em algumas modalidades do atletismo e na natação — é do atleta contra seus próprios limites; esportes em que o outro, o adversário, não existe, ou antes é o atleta mesmo. O brasileiro ama o futebol e desconfia de qualquer esporte feito para a vitória certa dos melhores e a derrota inescapável dos piores, sendo absolutamente incapaz de aceitar que, no caso específico, haja o conhecimento prévio das marcas pessoais, as quais só serão batidas, na hora H, por uma espécie improvável de complô cósmico, quase uma ajuda divina típica das epopéias. A chance de vitória quando a melhor marca pessoal não é a melhor do mundo é o sujeito atingi-la torcendo pra que os favoritos tenham entrado em litígio conjugal semanas antes do torneio, ou perdido a mãe na véspera da prova, ou acordado com disenteria. No mais, é o favorito quem leva, ou deixa para o segundo favorito, a chance de zebra sendo nula: — algo com o qual não chegamos nunca a nos comover.
3.8.12
31.7.12
A quarta hipótese
Num dos contos de Pouco amor não é amor, de Nelson Rodrigues, um sujeito acaba de ler, na véspera do casamento, um bilhete da noiva endereçado a outro homem e pensa consigo: “Ou mato Iracema, ou mato o amante, ou me mato. Ou, ainda, não mato ninguém e deixo tudo como está.”
30.7.12
Quadras
17
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.
62
Não digas mal de ninguém,
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.
300
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.
PESSOA, Fernando. Quadras ao gosto popular. 3. ed. Lisboa: Edições Ática, 1975.
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.
62
Não digas mal de ninguém,
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.
300
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.
PESSOA, Fernando. Quadras ao gosto popular. 3. ed. Lisboa: Edições Ática, 1975.
22.7.12
Aparência, ou nem isso
Boa parte das suposições só não é de todo inútil porque ao menos expõe os que as cometem. Por exemplo, sempre que alguém se apressa em dizer, convicto, que algo que nem de longe implique a cessão da retaguarda para fins libidinosos é coisa de viado, o que daí se pode inferir, exclusivamente, é que ele não seria capaz de praticá-lo sem ver-se tentado a oferecer a dele, num verdadeiro cuspe para o alto. Nas palavras de António Botto:
Quando alguém
Só por suposições
Afirma
Alguma coisa má de nós
É porque tem a consciência
De que posto no mesmo caso
Nele seria uma verdade
O que em nós é aparência.
19.7.12
Ou seja
Canso de ver criticarem a frouxidão brasileira, atestada ora na preferência nacional pelo futebol em lugar, por exemplo, do rugby, ora na tibieza da nossa música popular quando comparada ao rock, ou ainda no quietismo de nossos poetas, todos homens encolhidos, de gabinete... Mas se lembramos que fomos nós, essa raça anêmica e covardola, a idealizadora de algo como o vale-tudo, a versão original e masculina do MMA norte-americano, já cheio de não-me-toques; se lembramos que ele surgiu com uma família brasileira desafiando lutadores de todo o mundo, de todas as modalidades, fossem o peso e o tamanho deles quais fossem, não só prometendo superioridade, como sendo de fato superior; se lembramos que, até hoje, perdido o propósito cruamente marcial em nome do comercial e do esportivo, há um sem-número de brasileiros entre os mais respeitáveis, alguns já verdadeiras lendas entre os praticantes de artes marcais do Japão e dos EUA; se lembramos disso tudo, em vez da celebração da macheza tão cobrada, falam aqueles mesmos críticos, agora, em barbárie, selvageria.
Cortesia
Se a brevidade é a cortesia do escritor, sem dúvida que a do editor são as orelhas, nossos melhores marca-páginas.
Tempo
Em geral, o protestante é alguém tão preocupado com o que está ou não de acordo com a Bíblia que mal lhe sobra tempo de conformar-se a ela.
14.7.12
Os livros
A mania dos franceses é presumir de talentos, e a mania dos que presumem de talentos é escrever livros. Não há no entanto coisa mais mal imaginada: a natureza judiciosa havia disposto que fossem transitórias as loucuras dos homens, e os livros as imortalizam. Um néscio devera contentar-se com haver aborrecido a todos quantos viveram com ele, e ainda quer fazer penar as gerações futuras; quer que a sua necedade triunfe do esquecimento, de que teria podido gozar como do túmulo; quer, enfim, que a posteridade saiba que ele viveu, e que não ignore que foi um parvo.
MONTESQUIEU. Cartas persas. Tradução de Mário Barreto. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 101.
13.7.12
Marcial
Ninguém mais pervertido que Fulano,
Engravatado em pleno Carnaval.
Nil lascivius est Charisiano:
Saturnalibus ambulat togatus.
Engravatado em pleno Carnaval.
Nil lascivius est Charisiano:
Saturnalibus ambulat togatus.
9.7.12
Peso do mundo
Assombro
Século de assombro — este século
De violência em progresso.
E os outros séculos?
Cada ser humano ao sentir o peso do mundo
não terá dito: século de assombro?
.........................................
Século de assombro — este século
De violência em progresso.
E os outros séculos?
Cada ser humano ao sentir o peso do mundo
não terá dito: século de assombro?
.........................................
LISBOA, Henriqueta. Obras
Completas I: Poesia Geral, 1929/1983. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p.
518.
6.7.12
5.7.12
3.7.12
Pé da letra
Os com alguma familiaridade com os Evangelhos nem precisam de ter cursado Direito pra saber que, quanto às leis, o perfeito cumprimento da letra não passa, por vezes, da maneira mais cabal de negar seu espírito. E, apesar de alheio a rigorosamente tudo quanto diz respeito às disputas políticas do Paraguai, não pude não relacionar o pouquíssimo que li nos últimos dias sobre elas (sempre graças à tomada de partido dos colegas de Facebook) a esse episódio protagonizado pelo incomparável (como o chama Idries Shah) Mulá Nasrudin.
A lei ao pé da letraNasrudin encontrou na rua um anel valioso, com o qual quis ficar. De acordo com a lei, no entanto, aquele que encontra um objeto de valor tem de ir até a praça do mercado anunciá-lo por três vezes, em voz alta.Às três da manhã, o Mulá dirigiu-se até ela, gritando: “Encontrei um anel assim-assado!”Ao terceiro grito, as pessoas começaram a aparecer.“Do que se trata, Mulá?”, perguntaram.“A lei determina uma tripla repetição”, respondeu Nasrudin, “e pelo que sei posso infringi-la repetindo uma quarta. De modo que lhes digo outra coisa: sou o proprietário de um anel de diamantes, vejam só.”
2.7.12
Nenhum
João Guimarães Rosa dizia ter chegado a conhecer por volta de vinte idiomas, optando eventualmente por escrever em nenhum.
Big Brother
Outro reality show, agora com gatos. Sete deles, recém-nascidos, mais a mãe, Noodles. É dar a sorte de pegá-la entrando no cercado para os amamentar, e ver a barafunda em que a coisa, antes tão absolutamente calma (a essa altura do campeonato, além de comer, eles dormem), se transforma.
30.6.12
26.6.12
Relógios
Ben sei que non hai nada
novo en baixo do ceo,
que antes outros pensaron
as cousas que ora penso.
E ben, ¿para qué escribo?
e ben, porque así semos,
relox que repetimos
eternamente o mesmo.
novo en baixo do ceo,
que antes outros pensaron
as cousas que ora penso.
E ben, ¿para qué escribo?
e ben, porque así semos,
relox que repetimos
eternamente o mesmo.
CASTRO, Rosalía de. Poesia. Traducción, selección y prólogo de Mauro Armiño. 7ª ed. Madrid: Alianza Editorial, 1999. 109 p.
21.6.12
Modernismo
A grande obra da primeira geração modernista, a única que a sobreviveu: a língua em que escreveram as seguintes.
18.6.12
João Ternura
Livro póstumo do mineiro-carioca (mais um) Aníbal Machado (1894-1964), só publicado em 65, João Ternura começa como um livro de José Lins do Rego: a infância na chácara paterna; as inundações do rio que a corta; a amizade com o negro Isaac, filho de uma das libertas da casa, de quem ele gosta mas abusa; o fascínio pelas mulatas; a paixão platônica das tias solteiras; o beijo furtivo na prima, meio perdida; o avô excêntrico, que se orgulha do atrevimento e o prognostica um novo Napoleão...
Mas, enquanto muda a economia do país; enquanto, com isso, a família quebra e vende a chácara, chega esse João que dá nome ao livro à capital da conturbada república, — o que o torna algo que o romance nordestino, por maior que tenha sido, não pôde nos dar: um retrato da vida carioca.
Esse João Ternura, rei do pequeno mundo que era a propriedade do pai, no interior de Minas, aparece ao fim da adolescência no Rio de Janeiro. Não um Rio de Janeiro qualquer, mas o da Revolução de 30, da qual participa de modo cômico e todo próprio; o Rio de Janeiro do comunismo clandestino, cujas ações acompanha sem muita compreensão; o Rio de Janeiro dos discursos patéticos em praça pública e do trabalho à paisana da polícia ideológica; o Rio de Janeiro dos grã-finos (sempre bestas) e da gente do morro, entre os quais transita igualmente alheio; e, mais impressionante que tudo, o Rio de Janeiro do carnaval em todo seu esplendor catártico: narra Aníbal Machado, entre muitos outros episódios, o do indivíduo que, sem qualquer fantasia, se apresenta hieraticamente como Deus, despertando a fúria de uns poucos e a temerosa reverência da maioria, que passa a segui-lo pelos bairros do subúrbio...
Aparece nesse Rio de Janeiro — e naufraga. João Ternura é, assim, a história de um fracasso. A história de uma inadaptação. Inadaptação à nossa vida, já que estão lá nossos bairros, nossas ruas. Estão lá os tipos cujas sombras vemos até hoje, não obstante as mudanças.
Especial, ainda, é a forma empregada. O livro dispensa a forma tradicional do gênero romance, uma vez que é todo ele feito de fragmentos agrupados em ordem perceptivelmente cronológica, mas ainda assim descontínua, sendo alguns deles, inclusive, bastante líricos.
Quanto ao estilo, o primor se explica tanto pelas várias redações por que o livro passou ao longo dos anos, como pelo fato de Aníbal Machado ter escrito pouco. Segundo testemunho de escritores próximos, a história de João Ternura começou a ser escrita ainda na década de 20, logo se tornando, graças à propaganda entusiasmada daqueles para quem lia trechos, uma espécie de lenda. Tanta expectativa em torno de um projeto ainda embrionário, informe, acabou por intimidá-lo, travando-o. Só muito mais tarde, ao vê-lo já no esquecimento, é que o retoma, falecendo pouco depois de, tendo-o finalizado, encarregar da publicação o amigo Carlos Drummond de Andrade.
13.6.12
Os dias, ontem e hoje
Vejo por toda parte gente alarmada com os restos de influência da religião na sociedade. Para onde olho há gente empenhada na extinção dos preconceitos remanescentes dessa antiga influência. Dizem eles que não são piores que ninguém por descrerem de Deus. Muito pelo contrário, são até melhores, mais racionais, só dando crédito àquilo que palpam e vêem; ou àquilo que alguém viu e palpou, desde que num laboratório. E depois lembram Chaplin. Logo a seguir, lembram Hitler...
O que não vejo combaterem é o estigma sofrido pelos que se abstêm dos dias comemorativos. O sujeito que, no Dia das Mães, não dá à sua um presente, ou com ela não almoça fora; aquele outro que, na Páscoa, não dá um maldito ovo de chocolate para os de seu conhecimento; ou ainda o que não enche o peito de sublime fraternidade por volta do 25 de dezembro, enquanto esvazia o bolso... São esses nossas maiores vítimas. Quem pode ainda sonhar com a manutenção de um namoro se, no dia 12 de junho, não dá flores ou bombons à respectiva, ou não a leva para jantar mal num restaurante lotado?...
A verdade é que estamos obrigados hoje à participação na papagaiada social como estiveram nossos avós obrigados a participar, ontem, da religiosa. Já podemos desprezar com alguma tranqüilidade o calendário da Igreja, coisa que eles não puderam, contanto que cumpramos sem muito caso com o do Comércio.
7.6.12
Problemas nacionais
Um de nossos maiores problemas é precisamente o de eles não afetarem justo os que os poderiam resolver.
31.5.12
30.5.12
29.5.12
Ação consciente
Não há como negar que vivemos uma época de crescente internacionalização. Os meios de transporte e comunicação anularam as distâncias e as barreiras entre as nações. Os livros circulam simultaneamente em quase todos os países, na língua original ou em traduções. As exposições internacionais de arte tendem a impor um estilo único a todos os países. Os mesmos filmes circulam, num breve espaço de tempo, por cinemas espalhados por quase todas as cidades do mundo. Diante de tais fatos seria simples demência pretender forjar um isolacionismo cultural, qualquer que fosse o pretexto.
Mas essa intercomunicação não é apenas inevitável: ela é necessária e benéfica, na maioria de seus aspectos. Ela permite, no campo da ciência e da técnica, a aquisição de conhecimentos e a atualização cultural dos países menos desenvolvidos. Possibilita maior aproximação entre povos distantes, revelando-os uns aos outros, através da informação científica, como da narração literária e da expressão poética, teatral, cinematográfica.
Não obstante, seria ingênuo ignorar que a literatura e a arte que importamos trazem consigo uma visão-de-mundo, uma colocação de problemas sociais ou existenciais, políticos ou filosóficos, estéticos ou religiosos que influem diretamente na formação de nossa intelectualidade. Tal influência é sempre positiva quando se exerce sobre culturas com a consistência necessária para absorver dela o que é útil, fecundo, e rejeitar o resto. Mas, nos países em formação, as influências externas tendem, muitas vezes, a agir como fator de perturbação do processo formativo, introduzindo desvios e discrepâncias que só se dão devido à fragilidade do movimento cultural implantado.
No setor das artes plásticas, por exemplo, isso tem sido fenômeno freqüente entre nós. O movimento pictórico surgido em 22 se desenvolveu com alguma tranqüilidade até o fim da guerra, quando o isolamento involuntário do país acabou: a influência de Max Bill chamou os jovens para a arte concreta que, antes de dar seus frutos, já era substituída pelo “tachismo”, que já começa, por sua vez, a ser deslocado por um certo neo-figurativismo... Se essas mudanças tivessem sido determinadas por necessidades surgidas do trabalho dos artistas brasileiros, nada de mais. Sucede, porém, que todas essas mudanças são impostas de fora, pelas transformações operadas em Paris ou New York. Resultado: torna-se impossível aos nossos artistas, submetidos a tais injunções do mercado da arte, aprofundar qualquer experiência. Isso só será possível quando se compreender a necessidade de enfrentar criticamente o que vem de fora, para aceitá-lo ou refutá-lo. Não se trata, pois, de pretender “uma pintura nacional”; trata-se de, simplesmente, criar condições para a pintura, qualquer que seja, uma vez que ela só surgirá do aprofundamento e da continuidade da experiência. O caminho para isto é voltar-se para o que já foi feito entre nós, ou para o que, lá fora, melhor afina com a necessidade cultural interna e apoiar-se na temática que o país oferece. É preciso agir conscientemente.
GULLAR, Ferreira. Cultura e Nacionalismo. In: ________. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1965. 9 -11 p.
GULLAR, Ferreira. Cultura e Nacionalismo. In: ________. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1965. 9 -11 p.
22.5.12
Auxílio
Não raro refreamos um vício com o auxílio de outros, só não acabando piores por não sermos melhores.
16.5.12
12.5.12
Queiroz
Houve uma época da vida em que um poema era para mim uma janela fechada. Ouvia dizer das maravilhas reservadas aos que a descerravam, e não passava disso. Tirar algum benefício deles me demandou não apenas tempo, como esforço. Horas, dias, meses talvez, de leitura vã, sem qualquer proveito aparente. Até que — pimba. Ignoro se por acaso será assim com todos os que não se familiarizam com ela, a poesia, desde a infância. O que agora sei com bastante certeza é que tudo me seria mais fácil tivesse eu começado por aqui.
11.5.12
9.5.12
Previdência
O cúmulo da previdência: uma prateleira com os livros a serem salvos em caso de incêndio.
8.5.12
Ary
Reza a lenda que Ary Barroso deixou de torcer pelo Tricolor depois que, a seguir a uma derrota, não cancelaram um baile nas Laranjeiras. “Não posso torcer por um time que perde e faz festa, como se nada tivesse acontecido.” Abriram-se, assim, as portas para o Mais Querido. Já um fervoroso rubro-negro, acabou se tornando narrador esportivo. É famosa até hoje sua parcialidade, que chegou a lhe render a proibição de entrar em São Januário, tendo ele que transmitir os jogos sobre o telhado de casas vizinhas ao estádio cruz-maltino. Ary Barroso costumava descrever os ataques contra o Flamengo com um: “Lá vêm os inimigos outra vez. Não quero nem ver”, comunicando os gols adversários sem o mínimo entusiasmo. Isso, claro, quando os comunicava: diz-se que chegou a esconder da audiência algumas derrotas rubro-negras, omitindo gols sofridos. Conta-se ainda que chegava a desmaiar durante jogos decisivos, e que largava a cabine antes do fim do jogo, para comemorar, assim que garantiam a vitória. Num Fla-Flu, foi capaz de apostar o bigode, o qual, com um 3 x 0 contra, foi obrigado a tirar (na foto acima, a prova). Tempos depois, o Flamengo devolve a derrota, com arrasadores 6 x 1. Ary Barroso, então, em crônica no dia seguinte, pede ao ganhador da primeira aposta que raspe a cabeça: “3 x 0 valem um bigode. 6 x 1 valem um cabelo.” Esses exageros à parte, vem aí o maior deles. Convidado pessoalmente por Walt Disney para ser diretor musical dos famosos estúdios, mercê da trilha sonora para uma animação deles, Ary Barroso declina. A razão? A distância que, morando nos EUA, teria do Flamengo.
7.5.12
Final
O jogo de ontem talvez tenha revelado mais um aspecto da complexa psicologia alvinegra, em parte já bem conhecida de todos. Digo isso porque não tenho esbarrado com reclamações acintosas contra a arbitragem, quando eu, sinceramente, as esperava encontrar: tiveram, além de um jogador expulso (a causa mesma do passeio), o que eles chamariam, em uma final contra o Flamengo, de pênalti não marcado sobre Loco Abreu. A pergunta é: por que o silêncio? Eis uma resposta possível. Não é que não se sintam lesados. É que deixam a exacerbação para ocasiões que lhes permitam a ilusão de superioridade. Tivessem perdido por um 2 x 1 apertado, ou nas cobranças alternadas, e sem dúvida veríamos reeditado o show de anos anteriores. Mas, com um placar daqueles, e com (além do placar) o baile tomado, encolhem-se, limitados a uma e outra insinuação, sempre oblíqua. “Não foi responsável pela derrota, mas atrapalhou o espetáculo.” Que é outro modo de dizer: “Perderíamos de qualquer forma.”
4.5.12
3.5.12
A desforra das cigarras mágicas
Profecia
Poetas: esperemos com paciência!
Que a Humanidade, um dia, (quase morta,
À mingua d'alma, a Civilização),
Vergada ao peso inglório da ciência,
Há-de vir mendigar à nossa porta
A esmola duma canção!
QUEIROZ, Carlos. Obra poética. Lisboa: Edições Ática, 1984.
Poetas: esperemos com paciência!
Que a Humanidade, um dia, (quase morta,
À mingua d'alma, a Civilização),
Vergada ao peso inglório da ciência,
Há-de vir mendigar à nossa porta
A esmola duma canção!
QUEIROZ, Carlos. Obra poética. Lisboa: Edições Ática, 1984.
2.5.12
Limites
Há os que vêem nos limites de certas faculdades um convite a se reduzirem ao esforço de alcançá-los.
1.5.12
Quoque tu, Brute
Recebo de uma amiga o seguinte e-mail: “Gustavo Nagel! Como vai de férias?”. Inocente, adianto que, pelo contrário, a expectativa é de um semestre mais ocupado que os anteriores, listando os porquês. Ao que ela, então, me responde: “Eu me referia ao Menguinho.”
29.4.12
Providência
Deus só pôde garantir que não alagaria o mundo uma segunda vez porque sabia ser impossível que, duma final entre Vasco e Botafogo, ambos saíssem derrotados.
26.4.12
24.4.12
19.4.12
17.4.12
Confusão
Sonhei que estava num sebo, e que o sebo era minha casa, uma vez que o funcionário que fazia a manutenção da porta de entrada ia deixando meus gatos, que nunca saem, fora dela. Corri a tempo de pô-los para dentro e o adverti. Passado o susto, logo voltei às estantes, que ficavam no que é o quarto, onde não guardo livros. Uma prateleira em particular me consumia a atenção, e era a de poesia. Dessa prateleira, que me dava a sensação de ter tudo quanto sempre quis comprar, com os melhores preços, um livro se destacou, permanecendo até agora na memória. Era um híbrido esquisito de três autores sem qualquer ligação aparente. Tinha o formato que tem meu volume único com os Ensaios de Montaigne, da Pensadores; intitulava-se Seppia, que para mim é parte do nome de um dos livros de Eugênio Montale — Ossi di seppia: sendo sépia, ou siba, conforme descobri ao acordar, um molusco —; e vinha como escrito — o mais estranho — por Keats, que nunca li. De mais não lembro.
13.4.12
12.4.12
Evolução
Modernamente, mais desafiador que escrever aforismos, é dar ao que se escreve um caráter próprio, fugindo à fórmula convencional com um esforço ora mais livre, ora ainda mais específico. Seus melhores autores já não escrevem máximas, simplesmente, ao velho estilo francês. Escrevem aquilo que escrevem, isto é, algo mais ou menos novo, surgido de uma ênfase particular, indefinível às vezes. Razão pela qual, se um Lichtenberg e um Jules Renard nem sequer classificam o que produzem — um preenchia seus cadernos, enquanto o outro redigia seus diários —, nos deixou um Gómez Dávila, mais recentemente, seus escólios, como um Antônio Porchia, suas vozes, e um Gómez de la Serna, suas greguerías.
11.4.12
Justo
Eu talvez achasse mais razoável a permissão de aborto para os casos de estupro se a visse acompanhada da necessária castração dos homens envolvidos. Pois, se a mulher não pode se ver obrigada a levar adiante uma gestação provocada, contra sua vontade, por um crime, por que então não haveríamos de cortar (literalmente) o mal pela raiz, impossibilitando ao criminoso a reincidência? Mas, curiosamente, livrar-se de um feto se afigura, hoje, ato muito mais humano que castrar alguém que não mereça, a rigor, menos que a cova.
10.4.12
Insignificância
O que separa o avaro do invejoso é a insignificância da posse. Ou, por outra: A avareza é a inveja possível aos que têm.
7.4.12
Pensando alto
Se eu me propusesse a escrever cada vez mais quanto menos fosse lido, acabaria o mais prolífico da terra.
5.4.12
Pannonica
Baronesa Pannonica de Koenigswarter. Nascida Kathleen Annie Pannonica Rothschild (Pannonica por causa de uma espécie de mariposa descoberta pelo pai na região da Panônia, Europa Central, terra da mãe), mais conhecida, porém, por Nica. Para escândalo da família, depois de abandonar no México o marido, parte rumo à Nova Iorque, onde se torna a grande mecenas do jazz, a grande mecenas, sobretudo, de Thelonious Monk (já um gênio reconhecido antes de sua aparição, mas um gênio até então miserável), com quem mantém uma relação platônica (insiste-se nisso) até o fim da vida.
Son(h)o
Nenhum tirano é capaz de aplicar um édito contra os sonhos, muito menos proscrever o sono em seus domínios. [...] Então, entreguemo-nos todos aos sonhos, homens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, cidadãos particulares e magistrados, habitantes da cidade ou do campo, artesãos e oradores. Não há ninguém privilegiado, seja pelo sexo, pela idade, pela fortuna ou pela profisssão. O sono oferece-se a todos.
— Bispo Sinésio de Cirene, século IV.
Sina
Nos jogos do Flamengo, sempre que joga o Daivid, acabamos convencidos de não haver no mundo zagueiro pior, nos esquecendo do Welinton, seu agora reserva imediato. Quando, como ontem, é o Welinton quem joga, mudamos rápido de idéia, logo esquecidos do Daivid.
4.4.12
Outros
Todo patriotismo nos é indecente, salvo o dos outros. Bem ao contrário dos outros, para quem todo patriotismo é indecente, salvo o deles.
3.4.12
Chico
O que não vi dizerem é que Chico Anysio sozinho nos deu mais personagens que toda a literatura brasileira junta.
2.4.12
Millôr
A morte de Millôr me deu a oportunidade de finalmente ler um pouco de seus aforismos, talvez até alguns de seus melhores, confiado que estou na seleção feita e publicada na Veja desse fim de semana. É preciso admitir: há mesmo idéias muito bem sacadas. Mas a meu ver incapazes de compensar a birra infantil contra Machado de Assis (nem a chamá-lo de enrustido Millôr resistiu), numa vontade de iconoclastia tão arbitrária que eu reputo sintoma de qualquer coisa muito digna da minha distância.
A semana
Uma das coisas que mais lamento no meu protestantismo é a falta de aptidão para calendários litúrgicos. Falta que me faz sentir, nessa época do ano em especial, um peixe fora d’água. Um negligente. Um ímpio. É certo que também celebro a Páscoa, mas, infelizmente, não a vivo passo a passo, dia a dia: a mim só interessa, a bem dizer, a ressurreição e seus efeitos soteriológicos. Enquanto todos acompanham sentidos a entrada em Jerusalém, com suas folhas de palmeira, que faço eu? Nada, além de aguardar o próximo domingo. Mais alguns dias, enquanto um número enorme de pessoas recuará quase de modo físico até o Gólgota, eu decerto estarei, muito biblicamente, alheio a tudo. “Onde está escrito que não se pode comer carne na sexta?”
Em minha defesa, digo que nem sempre foi assim, e que já malhei Judas.
Em minha defesa, digo que nem sempre foi assim, e que já malhei Judas.
30.3.12
Uma questão psico-etimológica
Gnoscere, um dos verbos latinos para conhecer. Acrescente-se-lhe o prefixo de negação, e eis o verbo desconhecer, ignorar? Curiosamente, não. Ignosco, eu perdôo, eu desculpo. Em latim, a idéia de perdoar viria, pois, da de não tomar conhecimento da ofensa, ou já não lembrar-se dela. Fácil conclusão imediata, daquelas que dariam um best-seller nas mãos de um Augusto Cury.
Mas, logo abaixo, continuando o verbete, aventa o autor do dicionário — Francisco Torrinha — outra possibilidade, que exigiria processo psicológico exatamente inverso. Diz ele que ao verbo gnoscere pode ter sido acrescentado, em vez do prefixo de negação in, suposição a meu pobre ver mais óbvia, o de movimento — também in, como em invidere, olhar obcecadamente para algo, isto é, invejá-lo —, que daria à palavra, intensificando-a, o sentido de conhecer mais a fundo, de buscar compreender a razão por trás dos atos ofensivos. Compreensão essa que implicaria a justificação deles. “Tudo compreender é tudo perdoar”, como se diz.
Não saber ou esgotar.
Mas, logo abaixo, continuando o verbete, aventa o autor do dicionário — Francisco Torrinha — outra possibilidade, que exigiria processo psicológico exatamente inverso. Diz ele que ao verbo gnoscere pode ter sido acrescentado, em vez do prefixo de negação in, suposição a meu pobre ver mais óbvia, o de movimento — também in, como em invidere, olhar obcecadamente para algo, isto é, invejá-lo —, que daria à palavra, intensificando-a, o sentido de conhecer mais a fundo, de buscar compreender a razão por trás dos atos ofensivos. Compreensão essa que implicaria a justificação deles. “Tudo compreender é tudo perdoar”, como se diz.
Não saber ou esgotar.
29.3.12
Dúvida
Talvez não haja maior prova da existência de certas realidades que nunca nos livrarmos da dúvida quanto a se existem.
Oferta
Há de fato os que nunca se venderam, mas por pura falta de oferta, mesmo a mais pobre. Os que nunca se venderam, é verdade, mas de muito bom grado se dariam, gratuitamente, soubessem de interessados em os carregar.
24.3.12
Thor
O problema de casos como o envolvendo o filho do homem mais rico do país e o pobre de um pedreiro é que durante quatro quintos de nossa curta história houve parcela da população excluída, oficialmente, do direito à justiça. E mesmo depois do chamado princípio da isonomia, na prática, até hoje, a distinção se verifica. De modo que, a meu ver, a grita acaba por se justificar, em função do óbvio. Tirando os tidos e havidos como ressentidos revanchistas, não há brasileiro que de fato ache justo conspurcar a tão prometedora vida de um herdeiro bilionário pela perda de um morto de fome qualquer. Dado o abismo entre as respectivas contas-correntes, aquele sujeito estaria errado ainda que fosse atropelado no quintal de casa — se é que tinha quintal; se é que tinha casa.
22.3.12
Caro crítico
Envio por e-mail uma recolha de pequenos textos meus — publicados quase todos em alguma das várias encarnações deste blog, a partir de 2008 — a um crítico cujo interesse pelo gênero eu conhecia, pedindo a gentileza de uma leitura e o favor de algum direcionamento. Não muitos dias depois, recebo como resposta uma tabela de preços tão bem discriminada (tantos reais por lauda impressa em Times New Roman, corpo 12, espaço duplo, mais forma de pagamento e prazo para o relatório), que só me deixou com uma dúvida: a de quantos elogios o pacote incluía.
Mas, brincadeira à parte, sendo improvável que ele não tenha passado as vistas pelo PDF, ainda que para cálculo do possível lucro, lendo aqui e ali, até sem querer, alguma frase minha, a cobrança serve ela mesma de veredito.
Mas, brincadeira à parte, sendo improvável que ele não tenha passado as vistas pelo PDF, ainda que para cálculo do possível lucro, lendo aqui e ali, até sem querer, alguma frase minha, a cobrança serve ela mesma de veredito.
17.3.12
15.3.12
13.3.12
12.3.12
Dos livros
As livrarias são a TV aberta das letras. Encontra-se nelas apenas o que prometa o máximo de audiência. Quando muito (Cultura, Travessa, Da Vinci), chegam a TV por assinatura. Algo mais seletivo, ligado ainda aos interesses do tempo, claro, mas a interesses sobretudo estrangeiros, bem menos populares. Já os sebos, por sua vez, são nosso Youtube literário. Nestes, depende-se basicamente da sorte, isto é, de outras almas com bom gosto uparem conteúdo, o que fazem limpando as bibliotecas; e de o encontramos antes de ele ser deletado, que é ser vendido. E, muito embora acumulem tanta porcaria quanto a pior TV, o que neles há de bom é bom de um modo que já nem existe.
11.3.12
10.3.12
Sãos
Releiam lá o Sermão do Monte, seus beatos. Cristianismo não é não praticar o mal, mas não ter ganas de fazê-lo. Não é não externar uma má intenção, reprimindo-a. É, antes, não nutri-la. Diferença da mais alta importância, já que não era outro o problema de Cristo com os de seu tempo. A ele já não bastava a conformidade exterior pela conformidade exterior. Estava demonstrado: a prática da justiça por parte de corações ímpios não produzira senão orgulho. Que houvesse dos homens maus ao menos o reconhecimento de que o fossem: de onde a preferência por publicanos e pecadores, sem a blindagem das boas ações. A preferência pelos doentes, em detrimento dos sãos, deixados à própria sorte. Meus amigos, uma vez surgido o mau desejo, e já não há diferença fundamental entre quem o consuma e quem o constrange, podendo o primeiro ser tão temente a Deus quanto o último um grande dum canalha.
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