30.12.15

Omphalos

Uma das alegações mais insistentes feitas por Mircea Eliade é a de que o mito faz parte tão fundamental da existência humana, que nos é algo absolutamente inextirpável, por maiores que sejam as hostilidades contra ele. Quando muito, aquelas grandes imagens se degradam, se marginalizam, ou então vestem a máscara da racionalidade mais respeitável e passam a circular despercebidas entre os homens. Entretanto basta que se trave contato com suas formas primordiais, mais elementares, para que seus resquícios modernos sejam facilmente reconhecíveis. Esse é, aliás, um dos principais divertimentos que a leitura do historiador romeno proporciona: a possibilidade de pegarmos no contrapé o primitivismo de gestos considerados os mais cultivados. Por exemplo, a crença no axis mundi. Todos os povos antigos, inclusive e sobretudo os mais rudimentares, se consideravam o centro do mundo, habitantes daquela região em torno da qual os deuses haviam criado tudo que existe, sobre a única porta de acesso ao reino do sobrenatural. Para além de cada um deles, só poderia haver o caos, as trevas, as forças demoníacas — ou, em linguagem mais familiar, a barbárie. É bem verdade que, se tradicionalmente todos os povos se consideravam centrais, indispensáveis para a manutenção do cosmos, a experiência colonial conseguiu a proeza de forjar os primeiros povos com a triste consciência da periferia. Mas, apesar dessa consciência — ou justamente por causa dela —, por acaso houve alguma tribo que tenha acreditado mais intensamente na sacralidade de determinado sítio quanto as mentes brasileiras mais ilustradas acreditam na sacralidade da Europa — único lugar do globo onde o grande deus Civilização se manifesta?

24.12.15

Ninguém

As pessoas não se incomodam de falar apenas para alguns, desde que esses alguns ou sejam muitos, ou raros. Quando o indispensável é dirigir-se a todos, ainda que se fale a ninguém.

23.12.15

Vitória

Enquanto dois partidos ideologicamente contrários polarizam uma disputa, a vitória assegurada é a do que têm em comum. 

21.12.15

Alívio

Uma das primeiras coisas que a literatura me deu foi o alívio de descobrir que então não era só comigo.

Única

A única violência que o Ocidente não admite é a do mais fraco.

20.12.15

Cassirer

Encontro em Ernst Cassirer algo que até então nunca tinha visto: um filósofo, mas um filósofo etnograficamente muito bem informado. Não sem frequência o lemos afirmar que, segundo Kant, ou Bergson, ou Hegel, ou qualquer outro filósofo ainda menos acessível, a arte, ou a música, ou a religião, ou o mito, é isso ou aquilo, para logo em seguida concluir: contudo, entre as tribos de não sei que lugar verifica-se que a arte, ou a música, ou a religião, ou o mito, nunca foi nada parecido com isso. E, sinceramente, não consigo pensar em contribuição mais valiosa do que essa: a correção de generalizações universalizantes a respeito das coisas humanas, feitas a partir do gabinete, pelo contraste com a experiência concreta de homens espalhados pelas partes mais distantes do globo. Cassirer definitivamente conhecia tudo o que os europeus haviam suposto sobre o homem. Mas também tinha notícia dos homens como de fato eram. 

4.12.15

Cosac

O livro pelo qual mais sou grato à Cosac Naify — o livro que mais me dá a impressão de que, não fosse a Cosac Naify publicá-lo, e eu nunca nem teria chegado a tomar conhecimento de sua existência — é o Romance das origens, origem do romance, da francesa Marthe Robert, autora especialista também em Kafka. Nesse livro iluminador, ela apresenta uma versão psicanalítica para a origem do romance, o qual seria uma objetivação artística do fenômeno conhecido em psicanálise como “romance familiar do neurótico”, que, porcamente resumido, são as histórias que as crianças se inventam em resposta às primeiras grandes frustrações com os pais. Outro fundamento de Marthe Robert é O mito do nascimento do Herói, livro de Otto Rank, em que se demonstra como o referido mecanismo estaria na base da formação dos mitos heroicos — não sei se já repararam, mas com muita frequência o herói mitológico começa por não ser exatamente o filho das pessoas que o criam, isso quando não é criado mesmo por animais: Moisés não é filho da família egípcia em que cresce, Édipo mata o pai biológico tentando fugir dos pais que não sabia serem adotivos, Jesus não era filho de José mas de Deus etc. etc. — o mesmo se daria com os contos de fada, cujo cerne familiar é evidente, com todos os reis e rainhas, príncipes e princesas, crianças ora abandonadas pelos pais, ora perseguidas por madrastas... Nisso consiste a primeira parte do livro: em demonstrar como a fabulação teria nascido dessa tentativa de rearranjo da relação de todo ser humano com a figura paterna. Na segunda, ela aplica toda essa hipótese, construída sobre Freud e Rank, na interpretação propriamente dita de duas obras consideradas, a depender do ponto de vista, o primeiro romance moderno: o Dom Quixote, do Cervantes, e o Robinson Crusoé, do Defoe, para isso as enquadrando em duas categorias de “romance familiar”, a do “filho bastardo” e a da “criança perdida”. Uma das coisas mais surpreendentes e cheias de sentido que já li.

O caminho

O primeiro passo rumo ao “bom selvagem” se dá quando os missionários calvinistas franceses, vendo o horror dos missionários católicos ante certos costumes indígenas, se perguntam: “E desde quando católico tem moral pra reclamar da selvageria alheia?” (Jean de Léry faz a pergunta pensando na tão celebrada Noite de São Bartolomeu.) Esse raciocínio chega até Montaigne, que, mesmo sendo católico, o corrobora, apenas ampliando a identificação religiosa para cultural: “Os povos europeus também não cultivam suas barbaridades?” — pergunta ele, pensando sobretudo nas fogueiras espanholas. E vai um pouco além: “Não tem essa gente uma nobreza que nós já perdemos, e não estão eles mais próximos do espírito da Antiguidade do que nós?” Depois chega Rousseau (não por acaso de educação calvinista), e responde que sim, e tira daí as consequências.

1.12.15

Evolucionismos

O mais importante tem me parecido conseguir escapar a toda e qualquer forma de evolucionismo, seja religioso, seja cultural, seja estético, seja biológico. Escapar a toda e qualquer compreensão que se afigure como uma linha ascendente ligando um ponto primitivo de origem a um ponto final plenamente desenvolvido. Escapar a toda e qualquer compreensão universalizante que pretenda substituir a linha que vai do Gênesis ao Apocalipse, além, claro, da própria linha que vai do Gênesis ao Apocalipse.

29.11.15

Preocupação

Os monoteísmos se preocupam tanto com o destino eterno dos homens, que até a polícia eles estão dispostos a interpôr entre estes e o inferno. 

26.11.15

Moderados

A gente só lembra do meio-termo quando puxam com força maior que a nossa rumo à extremidade oposta.

22.11.15

Formalidade

A sensibilidade ocidental não está lá muito preocupada com a prática ou não da violência — isso é o de menos —, desde que exista contra ela alguma espécie de condenação formal. Desde que exista contra ela um papelucho subscrito em que se leia: “Não é certo fazer isso que vocês vão continuar fazendo.” Daí porque pouco importa o tratamento desumano que populações inteiras tenham recebido nas colônias europeias: importa é que exista uma bula, assinada pelo papa não sei qual, dizendo que essa gente tinha alma. Pouco importa que comunidades judaicas tenham sofrido violência de maneira regular durante todo o medievo: importa que exista outra bula, assinada por sei lá qual outro papa, proibindo cristãos de perseguirem judeus. Pouco importa que povos cristãos hajam sempre se matado uns aos outros pelos mais diversos e fúteis motivos: importa que Cristo mandou dar a outra face. De onde o problema ocidental com o mundo islâmico, cuja (in)sensibilidade prescinde dessa grande ferramenta de conforto psicológico: a hipocrisia. Parece que lá eles admitem abertamente a violência entre as formas legítimas de resolver algumas questões. É claro que os ocidentais também acreditam nisso, aliás mais do que em qualquer outra coisa, mas já não conseguiriam sobreviver a essa admissão, que lançaria por terra toda a superioridade moral do cristianismo, a qual não consiste em outra coisa que não seja os cristãos fazerem sistematicamente tudo que a religião cristã proíbe. 

21.11.15

Biblioteca

Em kikongo, uma das línguas bantus que nos chegaram vindas principalmente de Angola, a palavra com que eles, hoje em dia, designam biblioteca é makulu, a qual originalmente significava: a) antiga aldeia, velha cidade, ruína onde o passado ou sua história estão ocultos; b) a cidade dos ancestrais, o mundo espiritual.

17.11.15

Ocidente

O Ocidente é a violência expansionista do Império Romano a serviço da caridade da Igreja. É por isso que o Ocidente fere conclamando à cura. Assassina em nome da misericórdia. Mente por amor da verdade. Oprime com a libertação como pretexto. Com essa dupla natureza, o Ocidente habituou-se a gozar de todos os benefícios da violência contra os outros, mas com a consciência leve e tranquila de quem jura que não quer senão o bem universal. O mundo que a Igreja criou jamais teria chegado a ser o que é sem o emprego sistemático da violência mais injusta, muito embora esta se ufane de ter sido fundada sobre aquele que primeiro ensinou a dignidade de todo ser humano. 

16.11.15

Subterrâneo

A mensagem cristã, embora tenha permitido ou até solicitado ser imposta, como aliás qualquer verdade, abriu porém um inesperado caminho subterrâneo até o Outro, ao fim do qual ninguém jamais escapou à urgência de negá-la. A singularidade da mensagem cristã — poderíamos dizer: sua única superioridade — está em que nenhuma outra religião acaba suprimida pelo próprio cumprimento, ou preservada apenas pela própria traição. Sempre só pôde haver cristianismo ali onde faltasse cristianismo.

15.11.15

O evidente

Aquilo que acusam de incompreensível [na poesia moderna] é afinal o ‘evidente’ de que falam todas as grandes obras, o qual deve ser esquecido e continuar esquecido, porque não será tolerado nem resgatado pela sociedade./ A recordação do evidente, daquilo que nos permanece oculto, é que motivou insultos e perseguições à poesia, onde quer que na história tenha aparecido o poder sem disfarces. O que as ditaduras empregam contra a poesia prova que forças dela emanam. Por mais insignificante que seja seu alcance, do ponto de vista estatístico, seu efeito é imprevisível. A poesia é um elemento residual. Sua mera existência questiona o existente. Por isso o poder não a suporta. Ela é intolerável a todos os regimes totalitários. Na interminável lista de livros proibidos e queimados, a poesia moderna tem um lugar de honra. A existência de muitos de seus melhores autores foi marcada pelo terror fascista e stalinista; não se pode ignorar a lista de exilados, assassinados, mortos no exílio, tombados na guerra civil, levados ao suicídio, mortos nos campos de concentração, arruinados nas prisões, torturados, fuzilados, na Alemanha, na Espanha, na Rússia: muitos poetas de nosso século acabaram assim. Eles testemunham que a poesia moderna não pode existir sem liberdade: ou ela mesma realiza um fragmento dessa liberdade, ou acaba sucumbindo.

(Enzensberger)

Viva

Não é porque ainda está de pé que uma árvore continua viva. 

13.11.15

11.11.15

Fortuna

Poucas coisas são tão indecentes quanto a possibilidade de se fazer fortuna com a obra de artistas que, por nenhum outro motivo além da criação dessas obras, viveram na miséria.

O pastor

Van Gogh não só foi o filho mais velho de um pastor reformado holandês, como foi ele mesmo, por volta dos seus vinte anos, pastor-auxiliar de umas quantas igrejinhas na Inglaterra, e depois missionário entre os mineiros de Borinage, na Bélgica.

9.11.15

Alguns

Os dias se encarregam de livrar a maioria das pessoas daquilo que alguns só são capazes de esquecer escrevendo.

Vida

Passamos pela grande prosa como pela vida, gratos quando ao fim de suas mil páginas ficamos com ao menos um parágrafo para não esquecer. 

6.11.15

La Rochefoucauld

Nas máximas de La Rochefoucauld, aquilo que por vezes nos parece gratuito, ou mesmo arbitrário, e, durante a leitura, nos compele a ir respondendo: “nem sempre”, “não necessariamente”, “muito pelo contrário”, se deve não tanto a possíveis desatenções do autor, e menos ainda a qualquer deficiência intrínseca à forma literária utilizada, mas ao fato de as coisas já não se darem entre nós, hoje, exatamente como se davam para a aristocracia francesa do século XVII. Não é que seja impossível La Rochefoucauld ter errado: é que não somos nós, que já quase nada sabemos da dinâmica social nas cortes do Antigo Regime, as pessoas mais indicadas para apontar esses equívocos. A menos que sejamos especialistas, ou adivinhos, o máximo que nossa eventual divergência a qualquer afirmação categórica de La Rochefoucauld pode significar é que — na matéria em questão, já não somos assim. A consequência disso é que, apesar da pretensão universalizante, suas generalizações não são assim tão gerais. A “natureza humana” investigada por ele tem, pois, localização espaço-temporal muito bem determinada, e nem sempre coincide por completo com a “natureza humana” de períodos posteriores, como o nosso: ele diz “o homem”, e nós sabemos que esse homem é um nobre francês da metade dos 1600. Daí que se, nas máximas, La Rochefoucauld pode ser absolutamente impessoal, é justamente porque seus juízos não são seus, mas pertencem à figura do honnête homme, ideal humano de toda uma classe. E se esses juízos podem dispensar justificativas — justificativas que o caráter sentencioso da máxima, aliás, não permitiria —, é porque são emitidos em nome de um consenso — um consenso que nunca foi o nosso. 

5.11.15

Sensatez

La Rochefoucauld chama de sensatez a loucura apropriada a cada circunstância.

28.10.15

Mundo

Ninguém se aferra a uma ideia que não considera a mais exigente. Ninguém persevera num caminho que não julga o mais estreito. Jamais alguém deu um mísero passo que não tenha sido em desafio ao mundo.

Odisseia

Nada como o reencontro com a própria família, depois de tantos anos dedicados à destruição das alheias. 

24.10.15

Sensibilidade

A sensibilidade japonesa é tamanha, ou, em todo caso, de uma natureza tão diversa da nossa, que mesmo seus poemas dispensam aquelas pirotecnias sem as quais tudo nos fica parecendo banal. Nossos poetas precisam nos dizer que as gerações dos homens se assemelham às folhas das árvores, e não sei mais o quê. A um poeta japonês é suficiente que aponte uma árvore qualquer, ou a lua, ou uma garça sobre a neve, ou uma mosca, e tudo aparentemente fica dito.

Extremos

Se o século XVII foi o século da prosa oratória, grandiloquente, emaranhada, feita de períodos amplos, sinuosos, arrevesados (Antonio Vieira, Thomas Browne etc.), foi também o de alguns dos escritores mais concisos que já existiram (La Rochefoucauld, La Bruyère).

23.10.15

Utopia

Existe no pensamento de Cioran a respeito da utopia a seguinte tensão: muito embora lhe pareça incompreensível que as coisas sejam como são, ou melhor, que as pessoas tolerem as coisas como elas se apresentam, e muito embora julgue a utopia — isso é, a felicidade imaginada — como o motor do desenvolvimento histórico, e portanto esclerosada toda a sociedade que a tenha abandonado, — há nele um indisfarçado desprezo por quem, a essa altura, ainda é capaz de esperanças utópicas. Em outras palavras, se considera desprezíveis os homens que vivem sem ânsia por ideal, não considera menos aqueles ainda capazes de ansiá-lo. Os primeiros por serem cretinos, os segundos por serem ingênuos. Para Cioran, é certo que as coisas não deveriam ser como são, mas já igualmente certo que não podem ser muito melhores, e os homens, se acertam ao não se conformarem com o presente, se equivocam se ainda acreditam em futuro.

Elogio

O maior elogio que o proprietário pouco obstinado de uma boa biblioteca pode afinal fazer a um livro é terminá-lo.

20.10.15

Imprevisto

A velhice é o grande imprevisto da existência humana. Os homens — ou não foram feitos para envelhecer, conforme o Gênesis, — ou foram feitos para morrer ainda jovens, segundo a Ilíada

19.10.15

Revisão

É praticamente impossível solicitar uma revisão da história sem ter a nota corrigida para baixo.

Líder

Acho que foi Nietzsche quem disse que todo grande líder não passa de um psicólogo, no (mau) sentido de que nenhum grande líder cria uma necessidade para só depois supri-la com a própria liderança — o que seria algo realmente grande: criar, do nada, uma dependência generalizada de si —, mas, antes, apenas fareja uma ampla necessidade já existente e só então se candidata oportunisticamente a satisfazê-la, arrastando atrás de si o grande número.

15.10.15

Destro

Eu odiei a primeira professora que tive na vida simplesmente porque ela não era minha mãe. Apenas por isso, chorava com frequência durante as aulas, para as quais eu ia como que para a forca. A fim de que não atrapalhasse os demais, era mandado para a pequena biblioteca do colégio, onde tentavam me acalmar com livrinhos infantis em formato de bichos. Por sorte, não demoraram a perceber que eu não tinha condições de ficar sem ela, que por isso achou melhor me poupar do suplício até pelo menos o ano seguinte, quando então recomeçou meu tormento, dessa vez porque a responsável pela minha alfabetização decidiu que eu seria destro.

11.10.15

Chão

O à-vontade dos pés descalços sobre a terra batida e dos gestos em meio à poeira que sobe. A mais absoluta falta de prevenção contra o barro.

Vida

Cada linha é uma hora da página que é um dia nessa vida que é o livro.

10.10.15

Rio

Eu passava em frente a uma sala com o piso coberto por um tatame sobre o qual vários jovens de quimono se preparavam para um treino de jiu-jitsu, e na direção contrária vinha uma criança de aparência japonesa vestindo uma calça branca e uma corda colorida em torno da cintura a caminho da capoeira.

8.10.15

Nobel

O grande problema das eleições e premiações literárias, aquilo que realmente nos deixa rendidos, sem saber o que fazer com elas, nem é a multidão de merecedores preteridos em nome de figuras questionáveis, mas, bem ao contrário, o número nem um pouco menor de merecedores justamente lembrados. Se só os maus escritores fossem os premiados, e as escolhas fossem invariavelmente políticas, seria ótimo. Mas o que fazer com um Nobel que, se nunca premiou nem Tolstoi nem Joyce nem Borges nem Nabokov nem Roth, por acaso não deixou de premiar nem Thomas Mann, nem William Faulkner, nem Samuel Beckett, nem Octavio Paz, nem Wislawa Szymborska?

2.10.15

Se

De acordo com Tertuliano, se Deus quisesse que vestíssemos roupas coloridas, as ovelhas não seriam brancas.

1.10.15

Espaço

O que eu escrevo ocupa na página o espaço que eu ocupo na vida.

O riso

A sátira é um olhar desprezivo para o ridículo, nascido da superioridade. O cômico, por sua vez, é um olhar benevolente, fruto da identificação. No cômico, nós rimos de nós enquanto rimos dos outros; na sátira, rimos apenas dos outros. 

28.9.15

Apocalipse

O fundo inconsciente de todo conservadorismo é a crença primordial de que determinados gestos são as traves que sustentam o céu sobre as nossas cabeças, impedindo-o de desabar. Ou as coisas continuam da forma como disseram ao conservador que elas sempre foram, ou então o sol se tornará um imenso pedaço de carvão apagado, a lua gotejará sangue, os astros cairão por terra como caspa, e os montes se precipitarão no mar, que enfim escoará até não deixar uma gota. 

23.9.15

Origens

Nada explica melhor o Brasil do que a crônica das suas origens. Que outra coisa seria o “negro metido a inglês” lançado em meados do séc. XX por Graciliano Ramos contra Machado de Assis, além de mera atualização contextualizada do seiscentista “um paiaiá mui prezado de ser caramuru”, de Gregório de Matos?

21.9.15

Para sempre

Os contos de fadas operam a popularização medieval do herói mitológico, e o romance, a sua democratização burguesa. O herói romanesco tem nome, genealogia e endereço (ao menos até Kafka), assim como o dos mitos; ao passo que o herói dos contos de fada é a rigor qualquer menino ou menina — “príncipe” ou “princesa” —, filhos de pai e mãe quaisquer — genéricos “reis” e “rainhas” —, habitantes de um reino em geral não identificado em algum lugar “muito, muito distante”. Em outras palavras, porque os burgueses têm a pretensão da singularidade, seus heróis estão condenados ao fracasso, como estão os heróis trágicos; enquanto nos contos de fadas camponeses, satisfeitíssimos no seu anonimato — chamando-se quando muito João ou Maria, essa forma nominal de não ter nome —, lutando apenas contra problemas comezinhos da vida, próprios das existências mais banais — como o ciúme dos irmãos, a negligência dos pais, a perseguição da madrasta —, sem qualquer outra ambição para além de uma monótona sobrevivência, afinal podem, vencendo aqueles imprevistos, sonhar com terminarem “felizes para sempre”.

Volta

Esta parte das Américas também não era cristã quando os portugueses chegaram e vestiram os índios.

19.9.15

Lição

Em sebos, não existe outro meio eficaz de não perder para sempre um livro que se quer, e que por qualquer motivo não se pode comprar, além de escondê-lo, o que mais frequentemente se consegue apenas com trocá-lo de lugar — eu mesmo acabo de esconder um livro sobre o caminho percorrido entre a alquimia e a química, isto é, entre o pensamento mágico e o científico, num canto pouco acessível reservado aos livros sobre animais domésticos. Se há uma lição que importa a um frequentador de sebos, é a de que não convém o desprezo por prateleira alguma, mesmo as menos promissoras, justamente porque quanto mais mal-frequentada uma estante, mais ideal ela é como esconderijo — sem contar que nada impede a um livreiro desavisado colocar um volume do José Guilherme Merquior intitulado O elixir do Apocalipse na seção de escatologia bíblica. E é por isso que de tempos em tempos cada qual deve passar em revista inclusive os livros de gurus ocidentais com apelidos indianos e os romances psicografados pela Zíbia Gasparetto, entre os quais não faz nem quinze dias encontrei escamoteado o Pele negra, máscaras brancas do grande Franz Fanon.

18.9.15

Paródia

Segundo Kierkegaard, a paródia é o último estágio do desenvolvimento de qualquer processo (estágio a que Borges dará o nome de Barroco). Isso trocado em miúdos significaria que, pra Kierkegaard, a burocracia é a paródia das relações humanas, assim como a velhice é a paródia da infância e a dobra é a paródia da linha reta. 

Risco ou destino

O grande risco de todo esforço de preservação — se não mesmo seu destino inevitável — é a centralização dos gestos secundários.

17.9.15

Centro

Tratando da alegada facilidade do judeu europeu em adaptar-se ao exílio — “sem pátria mas radicado em um livro”, “em casa em qualquer lugar” —, Claudio Magris acrescenta que era como se para eles “o mundo inteiro fosse um bairro familiar” ou “a rua da infância em que se fala o próprio dialeto”. Imagem esta que, curiosamente, apenas invertida descreve com exatidão os contos de Bashevis Singer, os quais, se não apresentam muito mais do que os reles falantes de iídiche dos bairros judeus de Varsóvia, o fazem como se dessem a conhecer o centro do mundo.

9.9.15

Spinoza

No capítulo final de No tribunal de meu pai, Bashevis Singer menciona brevemente o deslumbramento que, para escândalo da ortodoxia paterna, o panteísmo do anatematizado Spinoza lhe causou. Descoberta da mais suma importância, já que é esse panteísmo que sem dúvida alguma explica a possibilidade da sua obra. Se Deus é tudo quanto existe, logo tudo leva em si a natureza da divindade, mesmo aquilo que há de mais desmerecido sobre a terra, como era a precária existência de tudo que o cercava. Se Spinoza estava certo, Singer não precisava deixar o seu fim de mundo para chegar ao centro, que de repente descobria estar em toda parte. E foi esse encarecimento do todo pela imanência de Deus que — desconfio — lhe permitiu escapar do horror provinciano pelo provincianismo.

Impossível

Não deixam de ser singulares as coisas a que se dão o mesmo nome. Nenhuma situação no mundo é realmente como outra. Os problemas dos homens repelem o rigor fácil das equações. Os dilemas e quem os protagoniza não são intercambiáveis. Cada ação iniciada ou abortada modifica. Jamais duas frases seguidas foram proferidas pela mesma pessoa. Toda incoerência é absolutamente impossível.

Ter

Por vezes o ganancioso se contenta em não ter menos.

7.9.15

Singer

Era limitadíssimo o ambiente do qual Bashevis Singer tirava suas personagens, suas histórias. Chamar provinciano a tudo que o cercava seria generosidade. Mais do que afastado do centro, aquele era um mundo isolado mesmo da periferia. Em seus contos, Singer não escreveu sobre europeus cosmopolitas, também não sobre os poloneses como um todo, e nem mesmo sobre os judeus poloneses em geral, — mas sobre um grupo ainda mais específico de homens e mulheres, fruto de circunstâncias ainda mais estreitamente determinadas: certo tipo, geralmente pobre e deseducado, de judeu polonês adepto do misticismo hassídico — esse grande resquício medieval —, habitante ora de cidadezinhas interioranas, ora de ruas absolutamente insignificantes do subúrbio de Varsóvia. Além de material tão desprestigioso, enclausura-se ainda mais escrevendo em uma língua que a Segunda Guerra deixou praticamente sem leitores. Apesar disso — ou precisamente por isso, quem sabe? —, é tão magnífico, que acaba traduzido para cerca de sessenta idiomas, ilustrando talvez melhor do que nenhum outro autor moderno o preceito tão disputado — atribuído a Tolstoi — segundo o qual a universalidade, em arte, estaria na pintura da própria aldeia.

31.8.15

Diferença

Semelhantemente a nós, os deuses também conheciam tudo sobre os homens, inclusive as intenções mais íntimas. A diferença é que sabiam perdoar.

Branco

Todos os discursos, de todas as áreas, já estão prontos. Um texto jurídico escreve-se a si mesmo. De igual modo o jornalístico, o acadêmico, o literário. Não há fenômeno mais raro do que a página em branco. 

29.8.15

Tempo

Não é porque um autor antigo faz sentido ainda hoje, que se trata de alguém à frente do seu tempo. Ainda que se discuta o porquê: talvez sejamos nós que andamos aquém do nosso, ou — melhor — seja o caso da circularidade que nos leva sempre ao mesmo. Mas não é porque um autor antigo faz sentido ainda hoje, que se trata de alguém à frente do seu tempo.

Se

Um dia pesquisadores europeus se reuniram, olharam para os não-europeus em geral, e então se perguntaram: “Se, contra todas as evidências, eles não são menos humanos do que nós, e é verdade que demônios não existem?...”

19.8.15

Silêncio

... o profundo silêncio que se foi acumulando pouco a pouco em nosso interior. Começamos a nos calar quando crianças, à mesa, ante nossos pais que ainda nos falavam com aquelas velhas palavras sangrentas e pesadas. Nós não abríamos a boca. Não abríamos a boca em protesto e por desdém. Não abríamos a boca para dar a entender a nossos pais que aquelas grandes palavras já não nos serviam mais. Tínhamos conosco outras palavras. Não abríamos a boca, cheios de confiança em nossas novas palavras. Utilizaríamos essas nossas palavras mais tarde, com gente que as compreendesse. Éramos ricos em nosso silêncio. Agora estamos envergonhados e desesperados, e conhecemos toda a miséria. Nunca mais nos livraremos dela. Aquelas grandes palavras velhas, que serviam aos nossos pais, já são moedas fora de circulação e ninguém mais as aceita. E com as novas palavras, que agora percebemos que não têm valor, não se compra nada. Não servem para estabelecer relações, são aguadas, frias, infecundas. Não nos servem para escrever livros, nem para manter ao nosso lado uma pessoa querida, nem para salvar um amigo.

(Natalia Ginzburg)

Excesso

Segundo Gracián, “o muito é descrédito”. Ou, por outra: “todo o demasiado é vicioso”. Por esse motivo — e em antecipação à suspeita de Brecht quanto aos grandes homens, que seriam pequenos demais para se contentar com a companhia de uma mulher: “os gigantes costumam ser os verdadeiros anões”.

7.8.15

Boas

De acordo com Franz Boas, o valor da antropologia estaria em (1º) nos fazer compreender as raízes da nossa civilização, (2º) nos incutir o valor relativo de todas as formas de cultura e (3º) nos impedir a hipervalorização do nosso próprio tempo, que alguns chegam ao cúmulo de julgar o estágio final da evolução humana — lições sem as quais, segundo ele, não só nos privamos dos benefícios que se adquirem com o conhecimento de outras culturas, como nos incapacitamos para uma crítica objetiva à nossa própria.

6.8.15

A última

Jamais teríamos chegado à primeira palavra sem a pretensão de que também fosse a última. 

Prêmio

O céu, que já foi uma compensação para o abandono da vida, é hoje prêmio dos que a conquistam.

4.8.15

Preferência

Os homens preferiram a possibilidade do inferno à certeza do esquecimento.

30.7.15

O riso

O riso antigo nasce do contraste com modelos existentes (o nobre que não age como os nobres devem agir, o político que não atende aos interesses da classe para a qual os políticos devem governar, os padres que não vivem conforme os padres devem viver etc.). O riso moderno, por sua vez, nasce do contraste com modelos ideias (o burguês que se obstina em não ser gente, o representante de uma ordem política que se deve substituir por uma nova, o sacerdote de uma igreja que já não faz sentido existir...). Daí por que o riso antigo é sempre ferramenta conservadora (Aristófanes, Gregório de Matos: grandes reacionários), enquanto o riso moderno já pode ser (embora nem sempre seja) subversivo. 

27.7.15

Linha

Alguém absolutamente incapaz de uma única linha a não ser sobre outras.

25.7.15

O começo

O que algumas pessoas mais gostariam de saber é quando aqueles que escrevem aforismos vão finalmente começar a escrever. 

Preparação

Não há sucesso que compense a paz da não preparação para o fracasso.

Obra

Se a condenação da violência é obra dos covardes, a do ressentimento é obra dos canalhas.

Propósito

O Brasil não foi feito para ser habitado. O Brasil foi feito para dispor as condições de ser deixado. 

O sentido

What's the point of forgetting
if it's followed by dying?

(Brodsky)

O Segredo

We dance round in a ring and suppose,
But the Secret sits in the middle and knows.

(Robert Frost)

20.7.15

Abuso

O que as crianças muitas vezes fazem quando não querem ter um doce repartido com as demais — não é lá muito diferente o que Joyce faz com o romance: abusa de tal forma dos procedimentos disponíveis, que depois quem teria ainda a coragem de retomá-los? 

A negligência

Há quem gostaria de ter lembrada a negligência com que se ocupou de não acabar esquecido. 

Afastamento

Segundo Lévi-Strauss, as artes (a pintura, a poesia, a escultura, a música) nasceram todas como ritos de cujos propósitos mágicos originais os envolvidos foram com o tempo se afastando até se tornarem apreciadores. 

18.7.15

Provincianismo

Onde quer que se esteja hoje em dia, ouve-se falar na província, em tom de queixa ou autocensura. Nunca esteve mais difundido o medo de ser provinciano. Bem, ele é infundado, pois presume a existência de um centro a respeito do qual seria fácil concordar e cujo papel como árbitro em todas as questões intelectuais seria incontestável. Até agora atribuiu-se esse papel a duas ou três metrópoles europeias. Ele terminou, ou ao menos reduziram-se estas a meros locais de difusão. Falar em província e pensar em interior pode ter funcionado na Alemanha dos anos 20, diante do brilho de Berlim; mas hoje, nem Londres nem Paris têm a última palavra em matéria de juízo crítico. A velha expressão ‘aqui é capital, ali é província’ tinha sentido, tratando-se do próprio país, na época do nacionalismo, pois era em relação a outras regiões do mundo uma sublimação do pensamento imperialista. Na nossa situação histórica [o ensaio é de 1962], na qual até as poderosas forças coesivas das ideologias políticas já não bastam para canonizar uma nova Roma, e na qual nenhum ‘bloco’ mais pode estar seguro de sua estrutura monolítica, a diferença entre província e capital já não se pode ratificar, e falar de provincianismo assume novo sentido. Província é toda parte, porque o centro do mundo não está mais em parte alguma, ou, ao contrário, porque o seu omphalos, em princípio, pode ser presumido em qualquer parte. Nisso a literatura adiantou-se à política: a capital literária do mundo pode ser Dublin ou Alexandria. Fica em Svendborg ou Meudon, em Rutheford ou Meran. Uma ilha próxima à costa sul-americana do Pacífico, uma datscha nas florestas russas, uma cabana de toros num lago canadense não são menos centrais do que os modestos apartamentos em Londres, Paris ou Lisboa aos quais se recolheram autores como Eliot, Beckett ou Pessoa.

(Enzensberger)

6.7.15

Respostas

Estamos aqui dando respostas a perguntas que nunca nos fizeram, e quase totalmente sem a consciência de que, se nos toleram as palavras não solicitadas, é apenas porque estas lhes servem de motivo para as deles.

As pessoas não querem saber a opinião dos outros, e se por acaso a pedem é só pensando na réplica.

Caridade

Há na raiz de toda crítica, mesmo das mais ofensivas, um fundo de piedosa caridade. Quem aponta um erro deseja vê-lo corrigido, e quem já não erra acaba sendo aprovado. Mais maldosa que a pessoa dedicada aos equívocos alheios, mais maldosa que a pessoa cujo prazer é apontar publicamente esses equívocos, é aquela que se cala diante deles porque tira o seu prazer de vê-los repetidos.

Epos

Ulisses não é apenas um dia que são todos os dias na vida de um homem que são todos os homens: é também um romance que são todos os romances, o ponto final do epos ocidental, a última (des)aventura possível a um herói já impossível, após o que tudo é repetição, e repetição ingênua. 

Vazão

A violência é no coração do homem uma fonte de jorro ininterrupto. Os antigos, em reconhecimento desse fato, não fizeram mais do que canalizar sua vazão através de meios institucionais, contentando-se com administrá-la. Foram os modernos, na pretensão reformista de extingui-la por completo, pretensão a cuja ilusão de sucesso não poderiam chegar senão por meio do represamento, que conseguiram fazê-la infiltrar-se por absolutamente tudo, a tudo contaminando. 

5.7.15

Ápices

O Messi tem ápices que nenhum outro jogador em atividade é capaz de alcançar, incluindo ele mesmo.

30.6.15

Problema

O grande problema da linguística — talvez maior do que a defesa da língua como ela é — se deve a que, por trás de cada um desses muitos desvios cometidos espontaneamente, existe um fundamento bem menos óbvio a ser apreendido pelos semicultos do que as meras normas gramaticais que determinam os acertos. Em outras palavras, o grande problema da linguística é que a gramática é normativa, e reivindicar o acatamento é sempre ação mais cômoda que a de compreender as causas da desobediência. Compreender o porquê dos equívocos já banais que no dia a dia mesmo a gente escolarizada insiste em cometer com a naturalidade da inconsciência requer bastante mais do que o necessário para não cometê-los. Fica parecendo maluquice para a totalidade dos leigos e não baixo número de estudantes, mas acertar um uso, ou mesmo ser capaz de elucidar suas regras, é bem menos custoso, exige bem menos, do que escavar a razão de uma possível inobservância quase generalizada. 

27.6.15

Último a chegar

Quando eu ouvia dizer que Ulisses eram as 24h na vida de um homem, e que Joyce, se não foi seu criador, foi ao menos quem mais longe levou a técnica do fluxo de consciência, eu imaginava que o livro fosse todo ele um jorro interminável com os pensamentos de Leopold Bloom durante sua perambulação por Dublin — talvez por sugestão de Grande Sertão: Veredas, um monólogo aparentemente sem fim que eu algumas vezes mal comecei. Vou descobrindo agora que não é bem só isso — são muitos e variados os psiquismos a que vamos tendo acesso, não só ao de Bloom. E, para além disso, o livro — verdadeiro compêndio de procedimentos narrativos, repositório de toda forma possível de texto escrito: o jornalístico, o ensaístico, o propagandístico, o jurídico etc. — é uma colagem de tudo o que numa cidade perpassa a vida de um homem, concentrado num único dia que por sua vez são todos os dias. 

Agora

A privacidade nunca foi tão necessária quanto agora que temos todos a mesma vida. 

15.6.15

Comigo

Parece que, no princípio, a boa relação com Deus não passava pela boa relação com os homens. Todos os patriarcas foram, ao mesmo tempo que fieis guardadores da aliança com Javé, desavergonhados ou inescrupulosos no trato com os outros. Abraão mentiu sobre o status de sua relação com Sara para se proteger e abandonou à morte a serva Agar junto a seu filho Ismael; Isaac enganou o pai cego e tomou o que era devido ao irmão mais velho; Jacó enriqueceu à custa do sogro, de cuja casa depois que estava rico fugiu durante a noite, malocando consigo todo o rebanho dele; Moisés cometeu homicídio e depois guiou o povo para fora Egito carregando o máximo de tesouro alheio que conseguiam carregar; Davi, não satisfeito com pegar a mulher de um general seu, ainda mandou matá-lo pra ficar com ela só pra si... Nada que fosse suficiente para desaboná-los aos olhos de Deus, a quem estranhamente continuavam fieis, de quem estranhamente continuavam protegidos. E não terá sido esse, fico me perguntando, o tipo de relacionamento que Cristo buscou restaurar, com todo a defesa de publicanos e pecadores? “Danem-se os homens, o negócio voltou a ser comigo.”

Joyce

Todo o virtuosismo técnico de Ulysses não nos deve fazer esquecer a baixeza da matéria que o compõe. Pode ser que o livro esteja repleto de charadas eruditas — como se gosta de lembrar —, mas tanto quanto de imagens do mais profundo mau gosto. Por exemplo, esse trecho tão engenhosamente executado, em que a leitura de um jornal é apresentada em paralelo — ou em que a redação da imprensa diária é igualada — ao ato de... bem, leiam vocês, na pioneira tradução do Houaiss:
Refestelado no trono desdobrou o jornal virando as páginas sobre os joelhos nus. Algo novo e fácil. Não há grande pressa. Demorar-se um pouco. Nossa novidade premiada. O golpe-de-mestre de Matcham. Escrito pelo senhor Philip Beaufoy, clube dos Playgoers, Londres. Pagamento à razão de um guinéu por coluna foi feito ao autor. Três e meia. Três libras e três. Três libras treze e seis.
Calmamente ele lia, dominando-se, a primeira coluna e, cedendo mas resistindo, começou a segunda. A meio, uma última resistência cedendo, permitiu que os seus intestinos se aliviassem de todo enquanto lia, lendo ainda pacientemente, toda ida aquela ligeira prisão de ventre de ontem. Espero não seja demasiado grosso e provocar hemorroidas de novo. Não, está exato. Assim. Ah! Constipado, uma tablete de cáscara sagrada. Vida podia ser assim. Aquilo nem o agitava nem o comovia, mas era algo rápido e limpo. Imprime-se qualquer coisa hoje em dia. Época idiota. Lia adiante sentado calmo sobre o próprio odor montante. Limpo certamente. Matcham pensa frequentemente no golpe-de-mestre com que ganhou dessa bruxa gargalhante que agora. Começa e termina moralmente. A mão na mão. Sagaz. Remirou o que lera e, no que sentia verter sua água calmamente, invejou com carinho o senhor Beaufoy que escrevera aquilo e recebera de pagamento três libras treze e seis.

6.6.15

Nietzsche

Quando lemos Nietzsche, o espetáculo que testemunhamos é o de alguém que se põe a combater, ora triunfante, ora resignado, o surgimento de um mundo que nós, por nossa vez, já encontramos feito, já que nos deu à luz: um mundo em que todo o mundo tem direitos, um mundo em que todo o mundo tem razão, um mundo em que todo o mundo, se não é capaz de aprender, ao menos o é de se informar. O que Nietzsche passa todas aquelas páginas tentando fazer é nos alertar, a nós que o lemos hoje, para o fato de que a minha existência e a sua, tal como elas são, representam um retrocesso, um desperdício de séculos e séculos de história: não foi para a espécie chegar a gente como a gente que no princípio Homero e Sófocles existiram. Algo deu muito errado no caminho. E esse algo foi o cristianismo, grande responsável pela contaminação da Europa com o vírus da dignidade humana, que pôs tudo a perder.

Confessio

A minha têmpera tem na família um ilustre precursor, o irmão mais velho do meu pai, que por sua vez está entre os mais novos. Mesmo com quase nenhuma convivência (até hoje foram pouquíssimos os encontros, ainda mais escassas as conversas), tenho com ele pelo menos quatro grandes similaridades: tanto ele quanto eu fomos batistas durante a juventude; tanto ele quanto eu fomos seminaristas de nossas igrejas e nos dedicamos incompletamente ao estudo da Teologia, que depois ele trocou pelo Direito e eu pela Literatura; tanto ele quanto eu quase nunca estamos nas reuniões de família, acho que ele bem menos do que eu, que de vez em quando ainda dou as caras no Natal, ele nem isso; tanto ele quanto eu nos dedicamos aos livros, sobretudo aos usados, muito embora o interesse de meu tio seja um bocado mais desordenado que o meu: os meus poucos livros cabem num mísero cômodo, os dele demandam não sei quantos apartamentos. E tudo isso — percebo agora — me salva. Hoje minha madrinha — a pessoa em cuja casa eu, quando criança, tomava café todas as manhãs, e ao lado de quem lançava para um batalhão de pombos as bolinhas que fazíamos à mesa com o miolo que ela e meu padrinho me habituaram a retirar do pão, e que hoje em dia eu quase não visito — esteve aqui em casa e, na hora de se despedir, me chamou sorrindo pelo nome do irmão mais velho, como que me desculpando pelas negligências todas.

29.5.15

O trono, a coroa

Sem ter o que fazer, observou o carro de lixo e logo tentou empurrá-lo, acabando apoiado nos varais. A montanha de lixo tremeu, deixando escorregar pelos lados avalanches de cascas, verdes e vermelhas. Descobrindo afinal uma utilidade, Fraji pôs o pé direito sobre uma das rodas, segurou-se na grade e subiu. Hesitante, enfiou suas perninhas no lixo podre e retesou-se. Olhou em torno de si: via-se mais alto que todos nós, mais alto que o mundo inteiro, sobre um trono multicor de papéis amarrotados, cascas de ovo e legumes. Desassossegadas, as moscas verdes e douradas aureolavam-no de uma coroa movediça, que brilhava ao sol. Então, levantou os braços ao céu e gritou, convencido como um galo: — Eu sou o rei! Eu sou o rei!

— Albert Memmi, A estátua de sal.

Heterogeneidade

Há tantas direitas no Brasil quantos são os motivos de autodesprezo. 

Grande marcha

Grande marcha em favor do que ninguém é contra.

Providências

Todas as vezes que acredito ter algo de muito importante a comunicar, a primeira providência que tomo é garantir que não haja quem me escute. A segunda é permanecer calado.

Passado

Duas perguntas que nunca se devem fazer a um homem: o que ele cometeu para ser preso, como ele adquiriu sua fortuna.

28.5.15

Extemporânea

Octavio Paz sobre o lugar da poesia no mundo moderno:
Em toda sociedade funciona um sistema de proibições e autorizações: o domínio do que se pode fazer e do que não se pode fazer. Há outra esfera, geralmente mais ampla, dividida também em duas zonas: o que se pode dizer e o que não se pode dizer. As autorizações e as proibições compreendem uma gama rica de matizes e que varia de sociedade para sociedade. Não obstante, umas e outras podem dividir-se em duas grandes categorias: as expressas e as implícitas. A proibição implícita é a mais poderosa: é o que “por sabido se cala”, o que se obedece automaticamente e sem reflexão. O sistema de repressões vigente em cada sociedade repousa sobre esse conjunto de inibições que sequer requerem o assentimento de nossa consciência./ No mundo moderno, o sistema de autorizações e proibições implícitas exerce influência sobre os autores por meio dos leitores. Um autor não lido é um autor vítima da pior censura: a da indiferença. É uma censura mais efetiva que a do Índice eclesiástico. Não é impossível que a impopularidade de certos gêneros — a da poesia, por exemplo, desde Baudelaire e dos simbolistas — seja o resultado de uma censura implícita da sociedade democrática e progressista. O racionalismo burguês é, por assim dizer, constitucionalmente avesso à poesia. Daí que a poesia, desde as origens da era moderna — ou seja: desde o fim do século XVIII — se tenha manifestado como rebelião. A poesia não é um gênero moderno, sua natureza profunda é hostil ou indiferente aos dogmas da modernidade: o progresso e a supervalorização do futuro. É verdade, alguns poetas têm crido sincera e apaixonadamente nas ideias progressistas, mas o que dizem realmente suas obras é algo muito diferente. A poesia, qualquer que seja o conteúdo manifesto do poema, é sempre uma transgressão da racionalidade e da moralidade da sociedade burguesa. Nossa sociedade crê na história — periódicos, rádio, televisão: o agora — e a poesia é, por natureza, extemporânea.

23.5.15

Solução

Para a segurança das pessoas de bem — que até podem ser assassinadas, desde que por outras pessoas de bem —, fazer de cada morro e favela um presídio de segurança máxima, espécie de bairro penitenciário com uma única entrada e saída estritamente controlada pela polícia, do qual seus moradores só pudessem sair, depois de minuciosamente revistados e com hora certa para voltar, mediante a apresentação de um passaporte, no caso um documento que lhes comprovasse o subemprego. 

22.5.15

Homens do mundo

De A fazenda africana, da baronesa Karen Blixen (dinamarquesa que viveu por 17 anos numa fazenda de café no Quênia), livro que tem duas traduções para o português, uma já antiga do Per Johns e outra mais recente pela Cosac Naify:
A falta de preconceito dos nativos é uma coisa extraordinária para quem espera encontrar os tenebrosos tabus dos povos primitivos. Ela se deve, acredito, ao seu contato com uma grande variedade de raças e tribos, e ao animado intercâmbio humano de que a África Oriental foi palco, trazido primeiro pelos antigos mercadores de marfim e de escravos e, em nossos dias, pelos colonos e aventureiros. Quase todos os nativos, até o mais insignificante jovem pastor das planícies, teve em algum momento contato com uma enorme variedade de nações, tão diferentes entre si e em relação a ele, como um siciliano é diferente de um esquimó: ingleses, judeus, bôeres, árabes, indianos, somalis, suaílis, massais e kavirondos. No que concerne à receptividade de ideias, o nativo é mais homem do mundo do que o colono ou missionário suburbano ou provinciano, que se desenvolveu numa comunidade uniforme, com um conjunto estável de ideias. Em grande parte os desentendimentos entre brancos e nativos decorrem desse fato.

21.5.15

A volta

Nunca sair de um local para onde não se gostaria de voltar. 

No princípio (2)

É muito compreensível que os hebreus — um povo nômade — tenham concebido o castigo pelo pecado sob a forma de expulsão de um paraíso. Concepção compreensível no caso deles, mas que faria pouquíssimo sentido para outros povos — sedentários, moradores de regiões férteis —, em cujos mitos, não por acaso, é relativamente frequente a figura do deus criador que, ante a desobediência dos homens, em vez de expulsá-los de sua presença, antes os abandona à própria sorte retirando-se de entre eles. De fato: como poderiam supor que haviam sido expulsos de um jardim, se continuavam a viver em meio a um?

No princípio

No mito suaíli da criação do mundo — de inspiração islâmica, aparentemente sufi —, Deus ama tanto a alma de Maomé que acaba de moldar a partir da luz, que então decide criar os homens só para que tivesse a quem enviá-lo. Depois, cria para si um trono coberto por um tapete que se estende pelos céus até o limite do espaço, feito com as cores do arco-íris. A terceira coisa que Deus cria é uma tábua imensa que contém a descrição completa e detalhada de rigorosamente todos os eventos, assim do passado como do futuro. Essa tábua é chamada a Mãe dos Livros, porque todos os livros escritos, em todas as línguas, contêm apenas fragmentos de seu conteúdo. Dentre os vários anjos que residem no céu, há um anjo de mil cabeças, com mil bocas em cada cabeça, e cada boca proclamando a glória de Deus em um idioma diferente. Além desse anjo, chama a atenção um outro, cuja metade esquerda é de fogo e a direita é de neve, e a neve não apaga o fogo nem o fogo derrete a neve, porque sob as ordens de Deus a conciliação dos contrários é possível, razão pela qual os homens coexistem.

18.5.15

Constante

A grande constante da experiência humana: a violência. As guerras têm nome porque são familiares como os filhos. Quase nunca cessam, já que não há no mundo um único empenho que, quando menos, não as justifique. Inclusive e sobretudo o empenho pela paz, cujo sentido, não por acaso, dá-se por via negativa: breve intervalo de tempo estranhamente caracterizado pela ausência das agressões que o possibilitaram.  

17.5.15

Da utilidade

Sobre o “Canto de Débora” — poema do capítulo 5 de Juízes, em celebração a uma vitória dos invasores hebreus contra os habitantes locais —, oferece o assiriólogo francês Jean Bottéro, em Nascimento de Deus: a Bíblia e o historiador, uma grande refutação da ideia segundo a qual a poesia é inútil:
Tratava-se apenas de um punhado de homens, microscópicos, perdidos num momento qualquer da história, que lutavam sob a chuva por um lote de terra, sem que a ridícula agitação que faziam tivesse, na verdade, contribuição alguma para o homem e seu progresso, e que permaneceriam, eles e sua agitação, escondidos e esquecidos, como infinitos outros, sob a poeira do tempo, se esse canto imortal não os alçasse a um plano cósmico, universal e eterno, e os transformasse, aos olhos dos leitores, num momento crucial da história do mundo.

16.5.15

Leitura

Nenhuma leitura merece tanta desconfiança quanto aquelas que nos corroboram.

27.4.15

Pássaro do real

Sophia de Mello Breyner Andresen: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso.”

26.4.15

Esfera da poesia

A esfera da poesia não se encontra fora do mundo, qual fantástica impossibilidade de um cérebro de poeta: ela quer ser exatamente o oposto, a indisfarçada expressão da verdade, e precisa, justamente por isso, despir-se do atavio mendaz daquela pretensa realidade do homem civilizado.

— Nietzsche, Nascimento da tragédia, trad. Guinsburg.

Signo da falta

Vinda do liceu, ou já em férias, só me restavam forças para, na imobilidade, ler, acrescentando-lhes o gozo ilícito do meu próprio corpo. Sob o signo da falta, eu gozava e lia e, agitando-me, sem violência, nesta contradição fundava a escrita. 
De Um falcão no punho, da portuguesa Maria Gabriela Llansol. Quanta coisa em tão poucas frases. A literatura associada à masturbação, ambas nascendo da falta. A leitura como masturbação: gozo imóvel. A escrita como masturbação: agitação sem violência. A contradição em que se funda a literatura: viver por meio de palavras, agir por escrito... 

Gênesis

Quando Deus anuncia a intenção de criar o homem, ele diz que o fará “à sua imagem e semelhança”, — semelhança esta que, segundo o próprio Deus, no capítulo seguinte, o homem só alcança com a queda, quando se torna “um de nós” — no princípio Deus falava no plural —, devido ao conhecimento do bem e do mal adquirido com a ingestão do fruto proibido.

Os homens andavam nus diante do Deus que se encarrega, ele mesmo, de confeccionar as túnicas com que, fora do Éden, se ocultarão uns dos outros.

Pela morte do irmão, Caim é condenado a ser um “errante fugitivo sobre a terra”. Mas assim que é expulso do solo que antes cultivava ele encaminha-se a outra região e logo funda uma cidade. 

20.4.15

Rodin

Reunião de conversas entre Auguste Rodin e seu discípulo Paul Gsell, transcritas por este. Gsell tem uma necessidade meio pretensiosa — francesa? — de escrever bonito, como alguém com muita sensibilidade escreveria — o que por vezes o leva a descrições do que não chega a nos interessar, ou a mais adjetivos do que o necessário. Mas nada, rigorosamente nada que inviabilize a leitura e nos impeça de aprender horrores quando finalmente sai de cena e deixa a palavra com o mestre. A edição ainda vem ilustrada por algumas esculturas, ora quando mencionadas, ora quando lançam luz sobre o tema discutido. Eu, que já passei por tantas e tantas edições do livro do Rilke a respeito de Rodin — de quem foi secretário —, agora me arrependo.

Relatividade

Quando o homem moderno se encontra em face de uma estátua grega primitiva ou de uma igreja românica ou de um quadro barroco, não é lícito dizer: o artista ainda não sabia esculpir uma estátua à maneira de Fídias ou ainda não sabia construir uma catedral gótica ou já não sabia pintar como Rafael. Isto é falso classicismo. É preciso admitir que aqueles artistas pretendiam fazer coisas diferentes, porque a sua atitude em face da natureza e da vida era diferente. Não há “épocas primitivas” nem “épocas decadentes”; só há épocas que compreendemos bem porque a nossa própria atitude é parecida, e outras que compreendemos menos ou só com dificuldade porque diferem muito da nossa. E essas apreciações não permanecem iguais para sempre e até o fim do mundo — como acreditava o classicismo — mas mudam conosco. Só assim se explica que o século XIX tivesse descoberto a beleza das catedrais góticas, quando até então a palavra gótico tinha sentido pejorativo. O termo barroco percorreu a mesma evolução, ao passo que outras épocas da arte, outrora celebérrimas, hoje nos agradam menos.

(Carpeaux)

9.4.15

O ridículo da generosidade

A grandeza de Dom Quixote a seus próprios olhos não depende do rebaixamento de todo o mundo à volta. A autoimagem impropriamente elevada que faz de si não surge do contraste com uma imagem impropriamente diminuída que faz do mundo — a nossa forma de ridículo. Dom Quixote julga-se indispensável a um mundo que entretanto é absolutamente digno de alguém tão extraordinário quanto ele. Não apenas o valor de suas coisas é exagerado — o seu pangaré que é o maior de todos os cavalos; a pobre lavradora, objeto de seus afetos, que é uma princesa e grã-senhora —, mas também qualquer vendinha de beira de estrada é uma fortaleza; o dono de qualquer espelunca é um nobre castelão; qualquer prostituta é uma “dama graciosa”, uma “donzela formosa”...

5.4.15

Fortuna

A Roda da Fortuna chegou trazida ao país mas, por falta de manutenção, logo deixou de girar.

24.3.15

A vidinha como ideal

No primeiro capítulo do romance, Robinson Crusoé aparece um misto de Filho Pródigo com Jonas, que decide abandonar a casa paterna para se aventurar pelo mundo, levando desgraça a toda uma embarcação com sua presença, já que chega até ela depois de o pai lhe assegurar uma vida de infortúnio caso se negasse a cumprir o fácil destino que lhe estava reservado. E que destino era esse? O da mediocridade burguesa, elevada aí a verdadeira sabedoria, a verdadeira bem-aventurança. Assim como Jonas carrega consigo o naufrágio quando desobedece a Deus e foge, da mesma forma Robinson Crusoé desperta a ira divina ao rebelar-se contra a tranquilidade inócua de sua arqui-invejada “condição média”, e isso em troca ou “dos sofrimentos e das asperezas, dos trabalhos e das dores da fração mecânica da humanidade”, ou “dos embaraços que o orgulho, o luxo, a ambição e a inveja podem trazer para a camada superior”.

20.3.15

Amizade

A amizade não foi inventada contra a solidão mas contra o ridículo. A grande atribuição do amigo, a única absolutamente indispensável, é rir com você de quem ri de você.

12.3.15

Imitatio

Por que a história do cristianismo é tão pródiga em movimentos refratários à autoridade religiosa, invariavelmente fundamentados em hermenêuticas legitimadas pela relação toda especial do insubmisso com Deus?

Porque os cristãos foram chamados à imitação de Cristo.

11.3.15

Nada melhor

Contra o ridículo em nome de uma ideia, não se pensa em nada mais eficiente que o ridículo em nome da contrária.

6.3.15

Motivo ideal

Acabar com a barbárie alheia foi sempre o motivo ideal para a imposição da própria. 

Divergência

Ninguém discorda que a desigualdade seja a causa principal da violência no Brasil. Se alguma divergência ainda existe, é apenas quanto ao que afinal precisaria ser exterminado, se a pobreza ou os pobres.

Privilégio

De todas as privações que o grosso da população brasileira padece desde o princípio, aquela menos contemplada por todos os governos, que até hoje nada fizeram no sentido de remediá-la, é a de se livrar do país. Entre as muitas coisas das quais nossos pobres estão impedidos, escapar ao Brasil lhes é sem dúvida a mais distante. Além do acesso amplo e irrestrito a qualificação profissional, a ensino superior, a tratamento médico, a moradia e a saneamento básico, à totalidade dos pobres falta ainda a liberdade em relação a onde nasceram. Convém, e com urgência, que as autoridades busquem uma solução para todos os brasileiros que, apesar de asfixiados pelo país, não disponham das condições para trocá-lo. Nossa justiça social não estará completa enquanto essa triste realidade não for mudada. Desertar não pode ser para sempre um privilégio.

1.3.15

Aventura

O máximo de aventura a que se permitiu na vida foi ir de ônibus aonde teria chegado de metrô.

21.2.15

Regresso

Com a provável exceção dos indígenas, que já cá estavam antes de todos sem que disso parecessem se queixar — e se digo provável é porque nada nos garante que não se queixassem antes da chegada dos demais e que só tenham passado a valorizar a terra depois de a verem perdida —, com essa provável exceção, como eu ia dizendo, a totalidade da população brasileira foi composta, em sua origem, por gente que, se pudesse, ou tivesse outra melhor opção, de modo algum teria vindo para o país, desde sempre o pior de todos os destinos, mesmo quando não o menos lucrativo. Ninguém, rigorosamente ninguém jamais veio em definitivo para o Brasil senão pelas impossibilidades ou de continuar onde estava ou de se encaminhar a outra parte mais promissora. Ninguém. Circunstância que torna demasiado compreensível que agora, quatrocentos, trezentos, cem, setenta, quarenta anos depois, tirada já a corda do pescoço familiar ou a própria barriga da miséria, seus netos desejem com entusiasmo o regresso ao paraíso do qual os avós, ou por inépcia, ou por oportunismo, ou por puro desespero, se viram privados. No fundo não se trata, portanto, de deixar o Brasil. Mas, antes, de nunca terem sequer chegado a ele, a não ser fisicamente, esse pormenor que todos sabem da mais absoluta insignificância, mesmo antes do telégrafo, do telefone, do rádio, da televisão, da internet.

16.2.15

Mesmo verso

O que Gerardo Diego disse do rio Douro, não poderíamos nós também dizer dos homens, todos —
a cantar siempre el mismo verso,
pero con distinta agua?

10.2.15

Volta

Um dos grandes benefícios dos sonhos é nos dispensarem do caminho de volta.

Ideia

Se todas as sociedades sempre terem sido injustas como são — isto é, hierarquicamente divididas em classes sociais profundamente desiguais às quais se pertence segundo a transmissão imerecida de um suposto mérito familiar — é motivo para a rejeição de toda e qualquer idealização utópica de como as sociedades deveriam ser — p. ex. igualitárias, sem classes, meritocráticas etc. — , como admitir um padrão de humanidade que seja determinado não pelo que os homens sempre foram em todas as épocas — inclusive cruéis o quanto possível —, mas por uma ideia elevada e contranatural, própria de anjo, do que necessitam chegar a ser?

2.2.15

Nada

Chuang Tzu: “A Vila do Nada, cujo ermo se espraia em todas as direções rumo a Lugar Nenhum.”

Experiência

É diretamente da luta contra heterodoxias tão influentes como a dos cátaros e a dos valdenses, entre algumas outras, que surgem na Igreja, em princípios do séc. XIII, instituições tão decisivas como a Ordem de São Domingos, com a mescla do atraente ideal de pobreza imposto pelos heréticos (o que também explica, nesse mesmo período, o surgimento dos franciscanos: é por falta de pobreza que essa gente abandona a Igreja? então segurem aí essas ordens mendicantes) a um rigoroso empenho apologético, e o aparato agora permanente da Inquisição, não por acaso quase sempre (ou mesmo sempre, não sei) em mãos dominicanas. A experiência albigense lhes havia ensinado: melhor do que arrancar o mal pela raiz é impedir que ele seja semeado.

31.1.15

Trabalho

O romance pôde ser tão bem acolhido pelo mundo burguês porque, se é verdade que ainda é literatura, é uma literatura que ao menos impõe trabalho a quem a faz.

28.1.15

Paraíso

O mesmo Padre Antonio Vieira que tanto se bateu contra a escravidão indígena foi o que não apenas defendeu a escravidão africana como chegou ainda a alegar que os negros deveriam ser gratos a Deus por terem vindo cativos para os engenhos da Bahia, onde então puderam ser alcançados pela maravilhosa graça de Cristo por intermédio da Igreja. E se pôde lhes recomendar gratidão a Deus por terem sido arrancados das trevas em que viviam nas brenhas da África, não foi porque desconhecesse ou não admitisse a condição degradante em que se viam metidos desde que eram jogados nos porões dos negreiros, e sim porque considerava que rezar à Virgem fosse remédio suficiente para transformar todo aquele inferno — palavras suas — em paraíso.

22.1.15

Ainda

Passados cinco mil anos de história, e nós ainda aqui, chamando atrocidades de “atos desumanos”...

Diferença

Não se desfaz uma injustiça criada pela pretensão de diferença apenas com a promulgação formal da igualdade. O caminho que levou até a desigualdade mais profunda precisaria ser todo ele refeito agora na direção contrária. Sem o que se muda para continuar na mesma. 

10.1.15

Exemplo

Contra o absurdo que é a imposição de valores culturais e religiosos por meios violentos, o exemplo dos povos europeus, que só chegaram a colonizar cada pedaço do globo mediante convite.

9.1.15

A expensas de

Em que altura a blasfêmia deixa de ser crime no Ocidente e se transforma em valor a ser preservado? Quem foram entre nós os que lutaram pelo direito de se referir publicamente e da maneira mais leviana e desrespeitosa possível mesmo e sobretudo às coisas que se reputassem mais sagradas? Desde quando no Ocidente o pecado para o qual não há perdão deixou de ser o pecado contra o Espírito Santo para tornar-se o pecado contra a liberdade? Graças ao empenho de que indivíduos a liberdade se torna o único princípio do qual é indecente abjurar, pelo qual ainda é preciso estar disposto a morrer, sem o qual o Ocidente não é Ocidente? Qual o momento em que uma conquista de resto nem um pouco pacífica de forças secularizantes, e adquirida a expensas de todas as prerrogativas fundamentais da religião cristã, passa a ser um troféu erguido também pelo cristianismo, adorno característico mesmo de seus fiéis, que agora se gabam da parte numa vitória alcançada justamente contra eles?

5.1.15

Geracional

O pai que passou a vida no sofá diante da TV não compreende como pode o filho desperdiçar a sua com a internet. 

Começos

Se há uma coisa cuja privacidade não negociamos, essa é o fracasso. Daí as redes sociais serem uma sucessão de começos.

1.1.15

A origem

Quando, no Diálogo em defesa da língua portuguesa — publicado em 1574 por Pero de Magalhães de Gândavo, o mesmo da História da Província de Santa Cruz —, o espanhol contra o qual a língua lusa vai sendo defendida alega que, se a língua portuguesa valesse mesmo o que ele estava dizendo que valia, “cual es la causa porque los mismos portugueses siendo ella suya la desdeñan, y por su boca confiesan ser ella la más tosca y bárbara del mundo?”, ele responde:
Esta nação portuguesa pela maior parte é mais afeiçoada às coisas dos outros reinos que às da sua mesma natureza, coisa que se não acha nas outras nações: porque todas engrandecem sua língua, e fazem muito pelas coisas que quadram nela, só os portugueses parece que negam nesta parte o amor à natureza. E daqui vem muitos a dizerem mal de sua língua, e consentirem na opinião dos estrangeiros, o que realmente se pode atribuir mais a ignorância que a razão alguma que a isso os mova.
Formidável explicação a partir da qual se descobre que todo o problema brasileiro com ser brasileiro, antes de ser um problema nosso, é a continuação do problema já português com não ser primeiro espanhol, depois francês, depois inglês, — e que, por muito paradoxal que pareça, dar as costas a Portugal talvez tenha sido o gesto mais português que o Brasil já realizou. 

Formas de voltar

Além de tudo, um livro sobre o “ofício estranho, humilde e altivo, necessário e insuficiente” do escritor (“passar a vida olhando, escrevendo”) e a diferença essencial, na relação com esse “livro ilegível e genuíno” que é a memória, entre o romance (“o reverso [daquele] outro livro imenso e estranho”, “que traduzimos, que traímos pelo hábito de uma prosa passável”) e a poesia (recordação das “imagens em plenitude, sem composições de lugar, sem maiores cenários”, sem “desculpas”), essas duas formas de voltar para casa.