31.7.12

A quarta hipótese

Num dos contos de Pouco amor não é amor, de Nelson Rodrigues, um sujeito acaba de ler, na véspera do casamento, um bilhete da noiva endereçado a outro homem e pensa consigo: “Ou mato Iracema, ou mato o amante, ou me mato. Ou, ainda, não mato ninguém e deixo tudo como está.”

30.7.12

Quadras

17
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.

62
Não digas mal de ninguém,
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.

300
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.

PESSOA, Fernando. Quadras ao gosto popular. 3. ed. Lisboa: Edições Ática, 1975.

22.7.12

Aparência, ou nem isso

Boa parte das suposições só não é de todo inútil porque ao menos expõe os que as cometem. Por exemplo, sempre que alguém se apressa em dizer, convicto, que algo que nem de longe implique a cessão da retaguarda para fins libidinosos é coisa de viado, o que daí se pode inferir, exclusivamente, é que ele não seria capaz de praticá-lo sem ver-se tentado a oferecer a dele, num verdadeiro cuspe para o alto. Nas palavras de António Botto:
Quando alguém
Só por suposições
Afirma
Alguma coisa má de nós
É porque tem a consciência
De que posto no mesmo caso
Nele seria uma verdade
O que em nós é aparência.

19.7.12

Ou seja

Canso de ver criticarem a frouxidão brasileira, atestada ora na preferência nacional pelo futebol em lugar, por exemplo, do rugby, ora na tibieza da nossa música popular quando comparada ao rock, ou ainda no quietismo de nossos poetas, todos homens encolhidos, de gabinete... Mas se lembramos que fomos nós, essa raça anêmica e covardola, a idealizadora de algo como o vale-tudo, a versão original e masculina do MMA norte-americano, já cheio de não-me-toques; se lembramos que ele surgiu com uma família brasileira desafiando lutadores de todo o mundo, de todas as modalidades, fossem o peso e o tamanho deles quais fossem, não só prometendo superioridade, como sendo de fato superior; se lembramos que, até hoje, perdido o propósito cruamente marcial em nome do comercial e do esportivo, há um sem-número de brasileiros entre os mais respeitáveis, alguns já verdadeiras lendas entre os praticantes de artes marcais do Japão e dos EUA; se lembramos disso tudo, em vez da celebração da macheza tão cobrada, falam aqueles mesmos críticos, agora, em barbárie, selvageria.

Cortesia

Se a brevidade é a cortesia do escritor, sem dúvida que a do editor são as orelhas, nossos melhores marca-páginas.

Tempo

Em geral, o protestante é alguém tão preocupado com o que está ou não de acordo com a Bíblia que mal lhe sobra tempo de conformar-se a ela.

14.7.12

Os livros

A mania dos franceses é presumir de talentos, e a mania dos que presumem de talentos é escrever livros. Não há no entanto coisa mais mal imaginada: a natureza judiciosa havia disposto que fossem transitórias as loucuras dos homens, e os livros as imortalizam. Um néscio devera contentar-se com haver aborrecido a todos quantos viveram com ele, e ainda quer fazer penar as gerações futuras; quer que a sua necedade triunfe do esquecimento, de que teria podido gozar como do túmulo; quer, enfim, que a posteridade saiba que ele viveu, e que não ignore que foi um parvo.

MONTESQUIEU. Cartas persas. Tradução de Mário Barreto. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 101.

13.7.12

Marcial

Ninguém mais pervertido que Fulano,
Engravatado em pleno Carnaval.

Nil lascivius est Charisiano:
Saturnalibus ambulat togatus. 

9.7.12

Peso do mundo

Assombro

Século de assombro — este século
De violência em progresso.
E os outros séculos?
Cada ser humano ao sentir o peso do mundo
não terá dito: século de assombro?
.........................................


LISBOA, Henriqueta. Obras Completas I: Poesia Geral, 1929/1983. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 518.

5.7.12

Acepções

A política, na melhor acepção da palavra, faz-se justamente com a pior. 

3.7.12

Pé da letra

Os com alguma familiaridade com os Evangelhos nem precisam de ter cursado Direito pra saber que, quanto às leis, o perfeito cumprimento da letra não passa, por vezes, da maneira mais cabal de negar seu espírito. E, apesar de alheio a rigorosamente tudo quanto diz respeito às disputas políticas do Paraguai, não pude não relacionar o pouquíssimo que li nos últimos dias sobre elas (sempre graças à tomada de partido dos colegas de Facebook) a esse episódio protagonizado pelo incomparável (como o chama Idries Shah) Mulá Nasrudin.
A lei ao pé da letra
Nasrudin encontrou na rua um anel valioso, com o qual quis ficar. De acordo com a lei, no entanto, aquele que encontra um objeto de valor tem de ir até a praça do mercado anunciá-lo por três vezes, em voz alta.
Às três da manhã, o Mulá dirigiu-se até ela, gritando: “Encontrei um anel assim-assado!”
Ao terceiro grito, as pessoas começaram a aparecer.
“Do que se trata, Mulá?”, perguntaram.
“A lei determina uma tripla repetição”, respondeu Nasrudin, “e pelo que sei posso infringi-la repetindo uma quarta. De modo que lhes digo outra coisa: sou o proprietário de um anel de diamantes, vejam só.

2.7.12

Suspeitas

Os livros, ou respondem a vagas suspeitas prévias, ou nada nos dizem. 

Nenhum

João Guimarães Rosa dizia ter chegado a conhecer por volta de vinte idiomas, optando eventualmente por escrever em nenhum. 

Big Brother

Outro reality show, agora com gatos. Sete deles, recém-nascidos, mais a mãe, Noodles. É dar a sorte de pegá-la entrando no cercado para os amamentar, e ver a barafunda em que a coisa, antes tão absolutamente calma (a essa altura do campeonato, além de comer, eles dormem), se transforma.