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28.6.22

É isto um homem?, de Primo Levi


A história dos homens é, desde que passaram a deixar registros, uma história feita de violências atrozes, com muita frequência contra velhos, mulheres e crianças. 

A violência faz parte tão grande das relações humanas, que os poucos homens que apareceram falando de paz — um Buda, um Jesus, um Francisco de Assis — nunca mais foram esquecidos pelos povos. 

Se assim é, o que diferenciaria a violência alemã contra os judeus de todas as violências cometidas antes e depois do nazismo? 

Um episódio de Kaputt ajuda a explicar. Conta Malaparte que, ao tomar conhecimento de um massacre a um bairro judeu na cidade romena de Jacy — massacre feito à moda antiga, à velha maneira dos pogroms medievais — um oficial alemão se escandaliza: “Os romenos ainda não são um povo civilizado”. 

Ora, o que distingue a violência alemã é o seu caráter impessoal, burocrático; o alcance desumanizador — e não apenas para a vítima — da sua crueldade asséptica, clínica, industrial, científica. 

Os alemães não foram os primeiros genocidas nem serão os últimos, mas ninguém jamais havia empregado todas as grandes conquistas da Razão e do Progresso a serviço do extermínio.

3.9.20

A Epopeia de Gilgamesh

É mesmo possível que tudo já esteja na Bíblia e em Homero. Eis, porém, onde já estavam tanto Homero quanto a Bíblia, e também Hesíodo, e Virgílio, e as sagas islandesas, e Dante, e a poesia mística medieval, e o romance moderno, e tudo o mais. O herói que tem seu amigo/duplo (Aquiles e Pátroclo, Davi e Jônatas, Quixote e Sancho), o herói que desce ao mundo dos mortos (Orfeu, Ulisses, Eneias, Dante), a guardiã do vinho que recomenda os prazeres da vida (Horácio, Eclesiastes, Khayyam), o herói matador de monstros (Hércules, Sigurd, Teseu), o herói que sobrevive a um cataclismo provocado como castigo pelos deuses (Noé, Deucalião, Ló), o herói que nega o amor de uma mulher para cumprir sua missão (Ulisses e Circe, Eneias e Dido, o cavaleiro andante), a mulher responsável pelo fim da harmonia entre o herói e o meio (Eva, Pandora), a inconformidade do herói ante o sofrimento e a morte (Jó, Sidarta, Ivan Ilitch), o herói que é meio humano e meio divino, o herói que perde no último instante aquilo que foi buscar, e deixa gravado em pedra aquilo que aprendeu dos deuses, a árvore da vida de cujo fruto o herói se vê privado, o herói que é livrado pelos deuses de passar pela morte sendo arrebatado, os deuses que guiam à vitória o exército comandado pelo herói, o pão e o vinho como oferta memorial ao herói finalmente morto, tudo isso já está nesse poema sumério que já devia ser recitado por volta de uns três mil anos antes de Cristo. Assustador.

9.5.20

Reforma religiosa e reforma linguística

Foi sempre tão estreita a relação entre as religiões e a fixidez das línguas (sempre ouvi dizer que foi o zelo religioso dos hindus com suas escrituras sagradas que deu origem à gramática): as antigas religiões indianas e o sânscrito, o judaísmo e o hebraico, o cristianismo e o latim... De tal modo que nunca pôde haver reforma religiosa que não levasse também a uma revalorização linguística: os sermões de Buda sacralizam o dialeto indiano mais baixo; a mensagem de Cristo é toda ela divulgada em grego comum; os pais da igreja escrevem, e portanto elevam a outro nível, o sermo humilis dos romanos; as traduções do Lutero camponês formatam o alemão moderno... Talvez não sejam as novas crenças religiosas que, popularizadas, subvertem a escala de valores do universo linguístico a que pertencem; talvez, ao contrário, seja a ascensão das formas baixas de dizer que, fazendo caminho pela pregação desses reformadores, confrontem as crenças estabelecidas com as crenças novas que carregam em si.