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20.5.22

A oficina de Stendhal


Machado começa as Memórias Póstumas de Brás Cubas manifestando consternação por Stendhal ter escrito para apenas cem leitores. Num dos prefácios a Do amor, Stendhal informa que o livro passou praticamente ignorado e que, vinte anos após a publicação em 1822, não haviam sido vendidos mais do que cem exemplares. Enquanto reafirma a validade do projeto, Stendhal especula as razões do fracasso de público: o tema (como falar de tudo que envolve a paixão amorosa a banqueiros, industriais, eruditos e pessoas preocupadas com as convenções, com o ridículo?), a abordagem ao tema (em vez de um agradável romance, escreveu um estudo, uma investigação, uma análise psicológica), a espontaneidade da escrita etc., e até projeta como seria o leitor ideal. Ora, se pensamos nos grandes romances oitocentistas – o próprio Stendhal, Balzac, Flaubert, Tolstói, Eça, Machado –, ler esse Do amor é como chegar a uma oficina e encontrar as peças espalhadas de cada uma dessas engrenagens romanescas, ainda desmontadas; ou como assistir a uma peça de teatro a partir da coxia, tendo à vista todos os ferros e papelões e gambiarras que durante o espetáculo permanecem escondidos do público. De maneira que não é inocente, como não poderia ser, a referência implícita a um tal livro logo no esforço mais metaficcional de Machado.

14.8.21

Katherine Mansfield, velha amiga

Podemos amar ou detestar um autor por amarmos ou detestarmos os personagens que ele nos apresenta. Mas também nos é possível gostar de um autor apesar dos seus personagens: amar Machado mesmo sem suportar Brás Cubas e Bentinho, venerar Flaubert mesmo quase morrendo de ódio com Emma Bovary e Frédéric Moreau. Em casos assim, só o que nos impede de abandoná-los de uma vez é a intermediação do narrador (presente mesmo na sua impessoalidade), como aquela única companhia que nos salva numa festa com gente insuportável. É isso o que acontece com a grande Katherine Mansfield, cujos contos são muitas vezes protagonizados por madames sem qualquer noção da vida, cheias de preconceitos de classe mesmo quando bem-intencionadas. Tudo isso é compensado pelo tom íntimo da narradora e pelo olhar atencioso às mínimas coisas, capaz de enxergar nelas os maiores sentidos, que depois vem generosamente compartilhar conosco, seus amigos. São muitos os autores que lutamos para ler. E, por mais satisfatória e compensadora que seja a vitória sobre um texto inacessível, é infinitamente maior a felicidade que dá abrir pela primeira vez um autor desconhecido, como Katherine Mansfield era para mim, e reencontrar um velho amigo cuja conversa finalmente podemos retomar.

25.4.20

Contos de Amor e Morte, Arthur Schnitlzler





















A partir da leitura deste livro, fica impossível reconhecer a legitimidade de qualquer lista de maiores contistas que não comece por Arthur Schnitzler, nem qualquer antologia de melhores contos já escritos que não tenha os contos “A profecia” e “O diário de Redegonda”. O contraste com Tchekhov (curiosamente, ambos médicos) é enorme — a vagueza e a abertura do russo, o cálculo e a precisão do austríaco; o olhar cheio de compreensão do primeiro para com as pessoas comuns, a perspectiva de condes e barões e burgueses tratada com ironia pelo segundo —, a não ser em uma coisa: a perfeição absoluta no efeito pretendido por cada qual. Os contos de Schnitzler são engrenagens perfeitas, sem uma frase a mais, uma palavra fora de lugar, um fio solto, tudo minuciosamente arranjado. Perto de um conto de Schnitzler, até a prosa de um Flaubert parece imprecisa. Contribui muito com isso a qualidade da tradução de George Bernard Sperber, num português excelente, e da edição, que não deixou escapar uma vírgula, uma gralha. Também chama a atenção o interesse cético de Schnitlzer pelos fenômenos sobrenaturais, pelo ocultismo tão em voga na Viena do seu tempo. E, por falar no ocultismo da Viena de seu tempo, as pessoas que vão até a nova série da Netflix em busca de Freud fiquem sabendo que o que a série oferece é o universo de Schnitzler: a série é uma novela menos sutil de Schnitzler com Freud como protagonista.