lado “b” da minha mente
náufrago metódico
7.8.22
Teresa Filósofa, anônimo do século XVIII
2.8.22
A mitologia nórdica e os jovens
Ao contrário da mitologia grega, essa coisa vaga e amoral por isso mais do gosto dos velhos, a mitologia nórdica: 1) postula um fim do mundo, e os jovens precisam muito temer e ansiar um fim do mundo, venha ele num Apocalipse cristão ou num Ragnarok viking; 2) o mundo não apenas acabará, mas também recomeçará de novo, dessa vez regenerado: como competir, pela atenção dos jovens, com um céu não cristão?; 3) melhor do que o fim do mundo e a sua regeneração, é a maneira como esse fim se dará: uma guerra final do Bem contra o Mal, e os jovens topam qualquer negócio que lhes dê o sentimento de participar de uma guerra contra o Mal, seja ele que Mal for; por último, mas não menos importante, 4) o sentido fashion dos aesir, cheios de visuais marcantes: realmente não há jovem que resista a um deus caolho, de barba enorme, chapelão, dois corvos sobre os ombros, ladeado por dois lobos, nem a outro que tem um cinturão, uma luva e um martelo mágicos — todos elementos que cumprem perfeitamente os requisitos cinematográficos de um super-herói ao gosto dos americanos, que não por acaso são anglo-saxões e herdeiros desse negócio todo.
O trinitário-tobagense que não gostava de que não gostassem dos ingleses
Naipaul é um observador atencioso e um narrador cheio de qualidades. Mas escreve de um lugar chato: o lugar do colonizado (no caso dele, indiano nascido em Trinidad e Tobago, colonizado duplamente) que vai para a Inglaterra e de lá critica todos os que não fazem o mesmo, ainda que intelectualmente, sem a mudança geográfica. Nesse livro de viagens (li com muito interesse a viagem ao Irã, com interesse um pouco menor a viagem ao Paquistão, e cheguei já sem interesse algum à Malásia, onde o deixei), viagens feitas no início dos anos 80, apesar das ótimas notícias que Naipaul oferece da vida nos países visitados e de seus graves dilemas históricos — a revolução islâmica x o ocidentalismo do xá; hindus x muçulmanos; o xiismo duodecimano; etc.) —, a leitura acaba se tornando cansativa à medida que se percebe o mesmo juízo por trás dos episódios: “Eles odeiam a maneira como o Ocidente vive e pensa, mas lutam contra ele com as armas que o próprio Ocidente oferece”. Percebido esse fio, torna-se bem difícil continuar a leitura de mais trezentas páginas de exemplos que ilustram essa constatação.
28.6.22
É isto um homem?, de Primo Levi
A história dos homens é, desde que passaram a deixar registros, uma história feita de violências atrozes, com muita frequência contra velhos, mulheres e crianças.
24.6.22
Estação Carandiru, de Drauzio Varella
Com suas infinitas possibilidades, a vida é um quebra-cabeça insolúvel, sempre mais confuso, mais perturbador do que gostaríamos que fosse. São muitos os que, diante da vida, não fazem mais do que ignorar tudo que não diga respeito a sua mínima parte.
22.6.22
Gaslighting medieval
Uma das formas atuais de progresso consiste na invenção de palavras inglesas para velhos problemas e a subsequente adoção dessa mesma palavra inglesa pelo mundo inteiro. Se isso não garante por si só a resolução do problema, ao menos é o primeiro passo para alcançá-la, uma vez que junto com a palavra criada pelos americanos espera-se que venha também a solução proposta por eles. O maior exemplo do que digo é a palavra bullying, relativamente recente em nosso vocabulário, mas sem a qual já ninguém consegue falar da infância. Os casos, porém, são incontáveis. A última palavra desse tipo que descobri foi gaslighting, que significa o ato de manipular uma pessoa garantindo que as coisas que ela viu e ouviu em momento algum aconteceram, até que ela se convença da própria insanidade. Coincidência ou não, todas as vezes que vi essa palavra utilizada ela estava no contexto de abuso psicológico praticado por homens contra mulheres, nunca — que eu tenha visto — o contrário. E essa circunstância me fez lembrar que o caso mais grave de gaslighting já registrado na história foi precisamente o de uma esposa contra seu marido. A história quem a conta é Boccaccio, no Decameron, onde aparecem muitos outros casos menores dessa natureza, vários deles contra o pobre Calandrino, mas nenhum comparável ao que fez Lídia contra seu marido Nicostrato. Conforme narrado por Dioneu na Nona Novela da Sétima Jornada, Lídia simplesmente transou com o amante na frente do marido, que logo a seguir foi convencido por ela, muito ofendida pela mera suspeita do marido, de que nada do que ele tinha visto aconteceu. Lídia e Pirro não haviam transado na frente de Nicostrato. Nicostrato é que estava doido.
17.6.22
Malaparte, uma Sherazade dos crimes de guerra
Kaputt é, a rigor, não um testemunho, tampouco uma denúncia, mas antes a recordação minuciosa das cores, dos sons e dos odores da guerra alemã (céus verdes, sons doces, cheiros gordos). É também uma dolorosa elegia para o velho mundo da guerra de proporções humanas, feita a cavalo, com espada e tiro de espingarda, mundo morto pelos tanques e bombardeios aéreos da guerra mecanizada, tão destruidora. Como um dândi da catástrofe, como um flâneur de campos arrasados de batalha, o interesse de Malaparte num massacre estava sempre menos no sofrimento das vítimas do que no requinte inesperado de um carrasco. Era nessa contraposição muito sutil, sempre irônica, quase ambígua, da hiper-educação com a crueldade mais atroz que residia aquilo que se poderia chamar de crítica: filho de um protestante alemão com uma católica italiana, Kurt Suckert parece ter nascido para a ambiguidade, a ponto de eventualmente trair certa satisfação com aquilo que com sinceridade repudia. Em termos literários, Malaparte é como um Proust (a comparação é ele mesmo quem sugere) que, em vez de reuniões com madames, descreve jantares com criminosos de guerra e que, em lugar de vestidos, relembra com pormenor a destruição.
20.5.22
A oficina de Stendhal
2.4.22
Marxismo e religião
O princípio fundamental da historiografia marxista da religião: a maneira correta de estudar as religiões, a única maneira científica de o fazer, é a partir das relações sociais em meio às quais as religiões nasceram. Para o pensamento marxista, as crenças religiosas são apenas uma projeção dos anseios causados pelas condições materiais dos povos. Assim — implicação mais controversa desse princípio —, os homens só puderam chegar a acreditar na existência de um único Deus no céu a partir do momento em que passaram a ter um único Senhor sobre a terra. Ou, em outras palavras, não houve religião enquanto não existiu divisão de classes. Mas não é que a religião tenha nascido como uma falsidade promovida pelas elites para o apaziguamento dos pobres — ao contrário, para o marxismo toda religião é verdadeira ao menos na medida em que reflete as aflições reais das classes subalternas, por mais instrumentalizada que venha a se tornar depois. A incompatibilidade do marxismo com a religião, portanto, decorre do fato de a religião projetar para a outra vida — a paz no céu, no nirvana — aquilo que o marxismo quer alcançar ainda nesta. Ora, se o marxismo acredita que só existe religião porque um dia passamos a viver divididos entre senhores e escravos, a consequência é achar que, no dia em que a igualdade entre os homens for alcançada, a vida finalmente se tornará aquilo que a religião sempre projetou para a morte.
9.1.22
As bem-aventuranças
21.12.21
Davi
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Davi com a cabeça de Golias, Gilles Roussellet, c. 1645. |
Judite arranca a cabeça de Holofernes; Tomiris arranca a cabeça de Ciro; Herodíade pede por Salomé a cabeça arrancada de João Batista. Todas mulheres. Dessa galeria, Davi é o único homem. Mas, curiosamente, um homem cheio de traços "femininos". Davi era pequenino frente ao gigante Golias; era tão frágil a ponto de não suportar vestir uma armadura; tocava harpa e tinha voz melodiosa, capaz de acalmar o coração dos ouvintes; e tudo isso sem falar na ligação estreita e ambígua com Jônatas...
Alencar e a escravidão
Ao passo que o velho catolicismo previa os totalmente salvos (no céu), os totalmente condenados (no inferno), os mais ou menos salvos (no purgatório) e os nem salvos nem condenados (no limbo), o protestantismo apareceu oferecendo uma simplificação binária da coisa: agora era tudo ou nada. Digo isso apenas como forma de ilustrar a natureza "intransigente" do caráter protestante, puritano, enquanto no catolicismo houve quase sempre um "mas", uma sutileza, um "veja bem". Por que, então, havia Alencar de ser exclusivamente contra ou a favor da escravidão, se como brasileiro tinha margem para rebolados retóricos e podia ser as duas coisas ao mesmo tempo? Não é que fosse a favor da escravidão; na verdade só achava que ainda não havia chegado o tempo certo de extingui-la. E isso porque, para o autor de Iracema, a maneira correta de superar a escravidão era ela continuar existindo, continuar existindo, continuar existindo, até o dia que caísse de madura, de preferência talvez no Dia de São Nunca, quando todos os negros desaparecessem assimilados à população branca. Para ele, qualquer tentativa que se fizesse contra a escravidão antes que isso acontecesse naturalmente só poderia ser uma violência arbitrária (!), de consequências muito mais nocivas ao Brasil do que benéficas. Dessa maneira Alencar conseguia, como bom católico e brasileiro exemplar, ser ao mesmo tempo contra e a favor da escravidão; ao mesmo tempo achá-la injusta e necessária; ao mesmo tempo achar que deveria acabar, mas precisava continuar. Se não até cair de madura, pelo menos até que a população branca (à época cerca de 1/10 da população cativa) alcançasse certo equilíbrio populacional, para que não corresse o risco de acabar à mercê de uma grande vingança dos negros contra os antigos senhores... Tudo isso faz de Cartas a favor da escravidão um clássico do conservadorismo brasileiro e reforça ainda mais Alencar como autor incontornável para a compreensão da nacionalidade.
28.8.21
Pirandello contra o cinema
27.8.21
Caminho da imortalidade
14.8.21
Katherine Mansfield, velha amiga
5.8.21
Por intermédio do que não sabemos
Uma das queixas de Platão contra os poetas era o fato de eles necessariamente tratarem do que desconhecem. Mas, enquanto Homero, que tão magistralmente canta a guerra de Troia, não sabia conduzir exércitos nem arremessar lanças, o samurai Miyamoto Musashi só parou para escrever O Livro dos Cinco Anéis após uma vida inteira dedicada ao combate com espadas.
Por isso mesmo é fascinante como, sendo um especialista nas artes marciais, Musashi comece o manual da sua escola — a Nitô-Ichi-Ryu, Escola de Duas Espadas — discorrendo sobre as exigências da... carpintaria. O guerreiro, diz ele, é semelhante ao carpinteiro, o qual deve saber isto e aquilo, fazer esta e aquela coisa, trabalhar desta e daquela forma.
E é incrível como talvez essa não seja uma limitação exclusiva dos místicos, e de fato só nos seja possível falar do que sabemos por intermédio mesmo do que não sabemos.
3.8.21
O Silênco, de Shusaku Endo
A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges
Todo historiador nos fala simultaneamente de no mínimo dois períodos históricos, o passado a que se dedica e o presente do próprio historiador — e com muito mais certeza deste do que daquele. Os livros de história são como aquelas superfícies cujo desenho muda conforme se passa a mão sobre elas de um lado para o outro.
Já esse é um livro — estudo a respeito das bases religiosas primitivas da organização social dos gregos e romanos — que explica tantas coisas velhas e atuais, ilumina tantos cantos obscuros da história antiga e não tão antiga assim, que parece ir nos tirando da cegueira. Enquanto o lemos, a certeza é de que finalmente começamos a entender todas as leituras que já fizemos, leituras que agora descobrimos foram todas muito precárias.
E de todas as muitas coisas que o autor desse livro nos ensina, enquanto trata da Antiguidade sob o ponto de vista da França e suas revoluções, a principal talvez seja a persistência dos gestos humanos, que resistem encarniçadamente mesmo muito tempo depois de as crenças que os fundamentavam terem desaparecido. E que isso nos faz viver quase sempre entre ruínas, em torno das quais os homens disputam uns para as terminar de derrubar e outros para mantê-las a todo custo de pé, mesmo que já sem fundamento algum.
26.7.21
As muitas odisseias de Odisseu
25.7.21
Elizabeth Costello, de J.M. Coetzze
A grande vocação do romance moderno é a paródia: Cervantes parodia o romance de cavalaria; Defoe e Swift, os relatos de viagem marítima; Joyce, a odisseia de Ulisses; e assim por diante. Nesse livro, Coetzee parodia as palestras acadêmicas, cada capítulo girando em torno a uma conferência dedicada a algum tema fundamental ao trabalho do romancista, de maneira que a leitura do livro equivale a um pequeno curso de teoria literária. Já tudo que diz a romancista Elizabeth Costello é em defesa da velha pretensão universalista dos escritores ocidentais de poderem e deverem se identificar com tudo e todos a fim de poderem e deverem falar em nome de tudo e todos, e isso por meio da onipotência da imaginação que vence todas as barreiras (sexuais, raciais, de classe e até mesmo de espécie, donde o vegetarianismo da escritora). Segundo Elizabeth Costello, essa identificação é tão poderosa, que os autores devem apenas evitar figuras e episódios muito atrozes, uma vez que é impossível imaginar um monstro sem tornar-se um monstro. No penúltimo capítulo do livro, Coetzee deixa de parodiar conferências acadêmicas para parodiar um conto de Kafka no qual se cobra, da maneira tipicamente mais absurda, de um escritor o seu credo. E o escritor do conto, a própria Elizabeth Costello, nega em vão que um escritor possa ter um credo, já que precisa estar disponível a todas as crenças possíveis, uma vez que não sabe de antemão quais serão as que seus personagens terão. Quer dizer, a velha tradição literária europeia (da qual Coetzee é herdeiro), que começa com Homero (grego) falando por gregos e troianos, Heródoto (grego) falando por todos os povos da terra, Ésquilo (grego) falando pelos persas, aqui defendida (e nisso reside o grande truque) por uma romancista mulher, ainda por cima em condição colonial (Costello é australiana).
14.7.21
Os contos de amor e de morte de Kim Si-Seup
Não é que o “realismo” seja uma aquisição tardia da literatura. A realidade dos homens é que nem sempre foi tão estreita quanto a nossa. Daí por que nem faz muito sentido tratar como “fantástica” uma literatura apenas fiel a certa compreensão mais ampla da realidade humana, da qual participam igualmente mortos e divindades. A aparição de um fantasma na obra de um inglês do século XIX não significa o mesmo de uma aparição na obra de um coreano do século XV. Por esse motivo, se os personagens de Contos da Tartaruga Dourada, considerada a primeira obra ficcional da Coreia, podem por vezes não saber se estão acordados ou sonhando, diante de vivos ou de mortos, de homens ou de deuses, é justamente pela possibilidade admitida de interação com os habitantes de outros mundos. Já a respeito do título, que nada nos diz: ele se deve à mera circunstância de ter sido essa a localidade onde o autor escreveu o livro, que merecia muito mais o título que tem um livro de Arthur Schnitlzer — Contos de Amor e de Morte —, porque é exatamente disso que tratam: em meio a amores impossíveis, os personagens — jovens poetas, eruditos desafortunados, versados nos clássicos chineses — debatem com os deuses as grandes questões filosóficas do período, em torno da disputa política do confucionismo contra o budismo, então bastante combatido. Desse ponto de vista, aliás, os contos de Kim Si-Seup testemunham o início de uma crise com o sobrenatural budista, motivada pelo “naturalismo” taoísta, já que neles o sobrenatural participa amplamente, enquanto vai sendo discutido.
8.6.21
O contraste
Uma única página de Chuang Tzu é o suficiente para fazer da nada desprezível sabedoria confuciana uma pocinha d’água. Como ele mesmo sugere, Chuang Tzu é um peixe-pássaro cujas asas cobrem todo o céu, enquanto os demais o recriminam durante seus voos de galinha. Agora sei que a maneira correta de ler Chuang Tzu começa por lê-lo só após a leitura das prescrições receituárias de Confúcio e de Mêncio, porque apreende-se muito do que pretendiam os mestres taoístas já só pelo contraste. Lida após toda a sobriedade, a razoabilidade de Confúcio e de Mêncio — graves conselheiros governamentais, defensores dedicados da burocracia ritual —, uma página de Chuang Tzu vira uma visão psicodélica, um poema surrealista, um desfile carnavalesco.
2.6.21
O caminho do meio
29.5.21
À própria maneira
Breve história da riqueza
18.5.21
Uma analogia cristã
17.3.21
Uma solução machadiana
6.1.21
A chatice indispensável dos clássicos
3.10.20
As autoridades cristãs de Montaigne
Os autores que Montaigne mais cita são os filósofos e os historiadores gregos e romanos: Plutarco, Sêneca, Platão, Cícero, Aristóteles, Suetônio, e por aí vai. Também cita muito os poetas latinos: Horácio, Juvenal, Virgílio, Ovidio, Lucrécio. Muito mais raramente Montaigne recorre a alguma autoridade cristã. E, quando o faz, é sempre a propósito de alguma coisa muito inesperada, esdrúxula até, quase absurda. Quando cita Santo Agostinho é para mostrá-lo afirmando o domínio da vontade sobre o corpo com o exemplo de um homem capaz de soltar sonoros gases intestinais a hora que bem entendesse. E corrobora o testemunho do santo com o de um célebre comentarista que sabia de alguém que, além disso, o fazia ainda no tom estipulado. Em outro ensaio, Montaigne apresenta São Tomás de Aquino afirmando que um dos motivos pelos quais as relações incestuosas são proibidas é que Deus não queria uma vinculação assim tão grande entre homem e mulher, o que inevitavelmente aconteceria em casais formados por pessoas tão próximas quanto parentes. Mais adiante, dá o exemplo de Santo Hilário, que, com medo de precisar casar a filha que gostaria de ver consagrada à vida religiosa, pede muito a Deus que a mate.
27.9.20
A vida é sonho: As Mil e Uma Noites, Calderón de la Barca e Liezi
Badruddin é levado enquanto dorme de uma cidade a outra para se casar com a prima, de cuja cama na mesma noite é retirado durante o sono para acordar numa terceira cidade, onde vive 17 anos até ser reunido novamente à mulher. Isso em As Mil e Uma Noites.
Em A Vida é Sonho, de Calderón de la Barca, o filho de um rei é criado desde o nascimento num calabouço, do qual um dia é retirado enquanto dorme para ser reconhecido filho do rei, posição da qual é logo depois levado dormindo de volta ao calabouço.
Antes de tudo isso, Liezi conta do rei que sonhava todas as noites que era escravo e do escravo que sonhava todas as noites que era rei.
26.9.20
A história arquetípica da imaginação islâmica
Ao tomar conhecimento da traição da
mulher, um sultão decide que mandará matar ao amanhecer cada mulher com a qual
tiver se casado na noite anterior. E assim o faz, até que Xerazade tem um plano. E o
plano de Xerazade para manter-se viva é contar ao sultão a reencenação
interminável da própria condição. A cada noite Xerazade retoma a história
interrompida ao fim da noite anterior, quase invariavelmente a história de alguém que
conta uma história para escapar da morte, tantas vezes envolvendo mulheres
adúlteras. No fundo de todas as histórias, ressoando, a história arquetípica da
imaginação islâmica: a história de José. Aquele que escapa da morte e leva a
melhor sobre os que o queriam matar. Aquele que escapa do poço e chega ao
trono. Nesse sentido, José seria o primeiro conto escrito das Mil
e Uma Noites. Primeiro e talvez único: o conto que — como o quarto do
palácio de cem quartos dentro do qual há outro palácio de cem quartos — contém todos
os outros. Um conto com tanto poder sobre a imaginação islâmica, que a ele tiveram de acomodar até mesmo a história de Cristo, o qual não poderia senão ter escapado, na última hora,
de morrer sobre a cruz.
21.9.20
Novo Mundo, Américo Vespúcio
Américo Vespúcio se diferencia dos demais cronistas do “descobrimento”
por não ser um simples marinheiro como Hans Staden, nem um alucinado como
Colombo, nem um padre como Thevet, nem um pastor calvinista como Léry, nem um
propagandista da colonização portuguesa como Soares de Sousa, mas o mais
próximo de um humanista que pisou ainda muito cedo nestas terras. É dessa
educação literária que tira ele a certeza de que as Índias a que Colombo jurava
ter chegado eram na verdade uma porção de terra desconhecida dos antigos e que, não
se tratando de uma ilha, configurava um Mundus Novus. Esse Américo Vespúcio,
que discute tecnicamente nas cartas as coordenadas astronômicas das viagens,
afirma ter ido para a Espanha, de Florença, para ser um mercador; e que, após
quatro anos de trabalho comercial, decidiu abandonar a busca sempre tão incerta
de lucro pelo conhecimento dignificante das coisas ignotas. Essa circunstância
pessoal explicaria a natureza econômica de dois comentários muito interessantes para os quais gostaria de atentar. Numa das
cartas, Vespúcio diminui a circum-navegação portuguesa da África até as
Índias, porque toda ela feita sem nunca se perder de vista a costa africana, o que, na
avaliação do navegador florentino, tornava-a muito menos meritória do que
qualquer viagem através do Atlântico, através do Desconhecido. A não ser por um aspecto: o econômico, ao qual
infelizmente — segundo ele — então se dava importância excessiva. Vespúcio está
dizendo que, mesmo sem nenhum achado imediatamente lucrativo, a chegada ao
Novo Mundo teve mais valor do que a grande vitória comercial que chegar à Índia
por mar deu a Portugal. Mas uma outra observação vespuciana acaba em
contradição com o critério do heroísmo. Em outra carta, chama ele
atenção para a total falta de motivação
política e econômica das guerras entre os povos indígenas das costas brasileiras.
De acordo com a observação de Vespúcio, os nativos estranhamente não lutavam nem pela
aquisição de novos territórios, nem pelo aumento de riquezas, nem por nada que
em geral leva os povos a lutarem entre si. As tribos inimigas enfrentavam-se até a morte de alguns e o aprisionamento de outros,
e depois voltavam cada qual para a sua casa. E
quando era de se esperar que Vespúcio louvasse a desconsideração econômica da
guerra indígena, da mesma forma que louvou a desconsideração econômica das próprias viagens a este lado do Atlântico, o florentino saiu-se com uma queixa à “crueldade” desses povos,
a qual estaria na base da gratuidade dessas guerras. Trata-se de um juízo tão
inconsequente, que foi inevitável que Montaigne, no famoso ensaio que certamente teve como uma das fontes as cartas de Vespúcio, desfizesse a referida incoerência
ao afirmar a nobreza da guerra indígena, absolutamente livre de causa
tão espúria como o lucro.