26.7.21

As muitas odisseias de Odisseu


A Odisseia é desses livros que já ninguém precisa ler para conhecer. Borges dizia que os clássicos se caracterizam justamente por serem livros cuja primeira leitura já é sempre a segunda e que isso confere um sentido inesperado à expressão “reler os clássicos”. Mas a verdade é que há sempre muito mais nesses livros do que a mera história narrada, em geral facilmente resumível. O que toda a gente sabe da Odisseia é que, lutando para chegar em casa, onde o esperam mulher e filho, um homem enfrenta perigos fabulosos enquanto vaga perdido pelos mares. Há coisas, porém, que só um leitor da Odisseia saberá. Como, por exemplo, a riqueza de camadas narrativas superpostas. Enquanto Homero nos narra a história de Odisseu, Demódoco narra a história de Odisseu para o próprio Odisseu e depois Odisseu narra a própria história aos seus anfitriões feácios — e é essa narração fantástica de Odisseu, com feiticeiras, plantas mágicas, monstros marinhos, a odisseia “oficial”, aquela em que se pensa quando se pensa na Odisseia. Mas há pelo menos uma outra: a que o Odisseu irreconhecível conta já na Ítaca que ele mesmo também não reconhece, o Odisseu cretense que narra uma viagem de volta igualmente acidentada, mas nada fabulosa, muito mais plausível. Sendo Odisseu famoso justamente por ser um grande mistificador, é inevitável que os leitores fiquem cogitando as muitas possibilidades narrativas que existiam antes do arranjo criado pela redação final.

25.7.21

Elizabeth Costello, de J.M. Coetzze


 

 

 

 

 

 

 

 

 


A grande vocação do romance moderno é a paródia: Cervantes parodia o romance de cavalaria; Defoe e Swift, os relatos de viagem marítima; Joyce, a odisseia de Ulisses; e assim por diante. Nesse livro, Coetzee parodia as palestras acadêmicas, cada capítulo girando em torno a uma conferência dedicada a algum tema fundamental ao trabalho do romancista, de maneira que a leitura do livro equivale a um pequeno curso de teoria literária. Já tudo que diz a romancista Elizabeth Costello é em defesa da velha pretensão universalista dos escritores ocidentais de poderem e deverem se identificar com tudo e todos a fim de poderem e deverem falar em nome de tudo e todos, e isso por meio da onipotência da imaginação que vence todas as barreiras (sexuais, raciais, de classe e até mesmo de espécie, donde o vegetarianismo da escritora). Segundo Elizabeth Costello, essa identificação é tão poderosa, que os autores devem apenas evitar figuras e episódios muito atrozes, uma vez que é impossível imaginar um monstro sem tornar-se um monstro. No penúltimo capítulo do livro, Coetzee deixa de parodiar conferências acadêmicas para parodiar um conto de Kafka no qual se cobra, da maneira tipicamente mais absurda, de um escritor o seu credo. E o escritor do conto, a própria Elizabeth Costello, nega em vão que um escritor possa ter um credo, já que precisa estar disponível a todas as crenças possíveis, uma vez que não sabe de antemão quais serão as que seus personagens terão. Quer dizer, a velha tradição literária europeia (da qual Coetzee é herdeiro), que começa com Homero (grego) falando por gregos e troianos, Heródoto (grego) falando por todos os povos da terra, Ésquilo (grego) falando pelos persas, aqui defendida (e nisso reside o grande truque) por uma romancista mulher, ainda por cima em condição colonial (Costello é australiana).

14.7.21

Os contos de amor e de morte de Kim Si-Seup


 

 

 

 

 

 

 

 

 


Não é que o “realismo” seja uma aquisição tardia da literatura. A realidade dos homens é que nem sempre foi tão estreita quanto a nossa. Daí por que nem faz muito sentido tratar como “fantástica” uma literatura apenas fiel a certa compreensão mais ampla da realidade humana, da qual participam igualmente mortos e divindades. A aparição de um fantasma na obra de um inglês do século XIX não significa o mesmo de uma aparição na obra de um coreano do século XV. Por esse motivo, se os personagens de Contos da Tartaruga Dourada, considerada a primeira obra ficcional da Coreia, podem por vezes não saber se estão acordados ou sonhando, diante de vivos ou de mortos, de homens ou de deuses, é justamente pela possibilidade admitida de interação com os habitantes de outros mundos. Já a respeito do título, que nada nos diz: ele se deve à mera circunstância de ter sido essa a localidade onde o autor escreveu o livro, que merecia muito mais o título que tem um livro de Arthur Schnitlzer — Contos de Amor e de Morte —, porque é exatamente disso que tratam: em meio a amores impossíveis, os personagens — jovens poetas, eruditos desafortunados, versados nos clássicos chineses — debatem com os deuses as grandes questões filosóficas do período, em torno da disputa política do confucionismo contra o budismo, então bastante combatido. Desse ponto de vista, aliás, os contos de Kim Si-Seup testemunham o início de uma crise com o sobrenatural budista, motivada pelo “naturalismo” taoísta, já que neles o sobrenatural participa amplamente, enquanto vai sendo discutido.