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12.10.22

O surgimento da grande chatice

É verdade que os chatos sempre existiram. E que nunca deve ter havido um único agrupamento de pessoas, ao longo da cumprida história humana, sem que lá no meio estivesse um chato que fosse. A presença de um chato é coisa tão certa quanto a presença de Cristo: onde quer que se reúnam dois ou três... Mas foi na Grécia do século VI antes de Cristo que a chatice começou a ganhar foro e o chato, prerrogativa. Até então, a chatice dos chatos não tinha alcance: morria em seu círculo social. Ao passo que os chatos gregos, perdendo a timidez, passaram a discuti-la, registrá-la, ostentá-la. Esses, que depois receberam o nome de filósofos, já não eram chatos involuntários, mas donos de uma chatice arduamente cultivada. Embora nunca ninguém tenha chegado, nessa matéria, aos pés de Sócrates, de quem só não existem muitos mais diálogos registrados porque decerto nem todo mundo era trouxa e muita gente o evitou enquanto era tempo, o grande pioneiro dessa arte foi sem dúvidas Xenófanes, de Cólofon. Esse camarada foi nada menos que a primeira pessoa na história da humanidade a se dar ao trabalho de escrever que não gostava das histórias cantadas pelos poetas porque afinal titãs, gigantes e centauros não existiam; e que não encontrava sentido algum em celebrar a excelência física de atletas campões de qualquer modalidade esportiva uma vez que nenhum deles era capaz de oferecer qualquer solução para os problemas da cidade. Agora vocês imaginem Xenófanes criança, entre os amiguinhos, e o quanto não deve ter apanhado. Prova disso é que ainda jovem abandonou a cidade natal sem ter se fixado depois em parte alguma. 

13.9.22

Jesus, o pensamento grego e o envelhecimento


A familiaridade grega com o corpo se restringia a um tipo de corpo bem específico: o corpo jovem, “ideal”. À parte esse, era enorme a dificuldade dos gregos com o corpo deteriorado pela velhice e pela morte. Por esse motivo valorizavam a morte de homens novos nos campos de batalha, ainda sem as deformações da muita idade; e tentavam a todo custo ultrajar os belos cadáveres dos inimigos; e cremavam os mortos queridos para não darem oportunidade à putrefação da carne. É verdade que os gregos gostavam dos corpos, mas dos corpos congelados no tempo, como os corpos que tinham os deuses, eternamente os mesmos. De acordo com Príamo, o ancião rei de Tróia, nada era mais consternador do que avistar a nudez de um velho. E tudo isso aponta, aliás, para o fato de que Jesus (a interpretação teológica a respeito de Jesus) foi um fenômeno muito mais próprio do pensamento grego do que do pensamento judaico: um deus que toma para si um corpo, mas um corpo que chega à morte antes de experimentar o verdadeiro escândalo que era o envelhecimento e que, para livrar a carne desse corpo da decomposição da morte, ainda por cima ressuscita. 

24.6.22

Estação Carandiru, de Drauzio Varella


Com suas infinitas possibilidades, a vida é um quebra-cabeça insolúvel, sempre mais confuso, mais perturbador do que gostaríamos que fosse. São muitos os que, diante da vida, não fazem mais do que ignorar tudo que não diga respeito a sua mínima parte. 

Por isso, uma das grandes contribuições da literatura — ficcional, histórica, jornalística, etnográfica — foi desde sempre ampliar o conjunto de experiências humanas a que dificilmente os leitores teriam acesso sem ela.

Com esse objetivo, um autor precisa manter-se o mais possível de fora. A arte depende muito de certa ambiguidade, ainda que involuntária. Muitas obras escritas contra ou a favor de algo foram bem-sucedidas porque falharam nesse intuito, ou porque os partidos perante os quais se posicionavam já não existem. 

Homero pede que as Musas o auxiliem a exaltar a ira de Aquiles e acaba nos levando a chorar a morte de Heitor. Até hoje ninguém pode garantir se Cervantes estava condenando ou homenageando o tipo de loucura conhecida como quixotesca. E se é verdade que Dante escreveu contra adversários políticos, por sorte é-nos absolutamente indiferente pelo que disputavam guelfos e gibelinos. 

E não é de outra maneira que Drauzio Varella se pôs no meio da população carcerária do extinto Carandiru, misto de Dante descido aos Infernos com missionário etnógrafo, mas um Dante apartidário, um missionário sem mensagem condenatória, juízo duplamente suspenso, como médico e testemunha. 

5.8.21

Por intermédio do que não sabemos

Uma das queixas de Platão contra os poetas era o fato de eles necessariamente tratarem do que desconhecem. Mas, enquanto Homero, que tão magistralmente canta a guerra de Troia, não sabia conduzir exércitos nem arremessar lanças, o samurai Miyamoto Musashi só parou para escrever O Livro dos Cinco Anéis após uma vida inteira dedicada ao combate com espadas.

Por isso mesmo é fascinante como, sendo um especialista nas artes marciais, Musashi comece o manual da sua escola — a Nitô-Ichi-Ryu, Escola de Duas Espadas — discorrendo sobre as exigências da... carpintaria. O guerreiro, diz ele, é semelhante ao carpinteiro, o qual deve saber isto e aquilo, fazer esta e aquela coisa, trabalhar desta e daquela forma. 

E é incrível como talvez essa não seja uma limitação exclusiva dos místicos, e de fato só nos seja possível falar do que sabemos por intermédio mesmo do que não sabemos.

26.7.21

As muitas odisseias de Odisseu


A Odisseia é desses livros que já ninguém precisa ler para conhecer. Borges dizia que os clássicos se caracterizam justamente por serem livros cuja primeira leitura já é sempre a segunda e que isso confere um sentido inesperado à expressão “reler os clássicos”. Mas a verdade é que há sempre muito mais nesses livros do que a mera história narrada, em geral facilmente resumível. O que toda a gente sabe da Odisseia é que, lutando para chegar em casa, onde o esperam mulher e filho, um homem enfrenta perigos fabulosos enquanto vaga perdido pelos mares. Há coisas, porém, que só um leitor da Odisseia saberá. Como, por exemplo, a riqueza de camadas narrativas superpostas. Enquanto Homero nos narra a história de Odisseu, Demódoco narra a história de Odisseu para o próprio Odisseu e depois Odisseu narra a própria história aos seus anfitriões feácios — e é essa narração fantástica de Odisseu, com feiticeiras, plantas mágicas, monstros marinhos, a odisseia “oficial”, aquela em que se pensa quando se pensa na Odisseia. Mas há pelo menos uma outra: a que o Odisseu irreconhecível conta já na Ítaca que ele mesmo também não reconhece, o Odisseu cretense que narra uma viagem de volta igualmente acidentada, mas nada fabulosa, muito mais plausível. Sendo Odisseu famoso justamente por ser um grande mistificador, é inevitável que os leitores fiquem cogitando as muitas possibilidades narrativas que existiam antes do arranjo criado pela redação final.

25.7.21

Elizabeth Costello, de J.M. Coetzze


 

 

 

 

 

 

 

 

 


A grande vocação do romance moderno é a paródia: Cervantes parodia o romance de cavalaria; Defoe e Swift, os relatos de viagem marítima; Joyce, a odisseia de Ulisses; e assim por diante. Nesse livro, Coetzee parodia as palestras acadêmicas, cada capítulo girando em torno a uma conferência dedicada a algum tema fundamental ao trabalho do romancista, de maneira que a leitura do livro equivale a um pequeno curso de teoria literária. Já tudo que diz a romancista Elizabeth Costello é em defesa da velha pretensão universalista dos escritores ocidentais de poderem e deverem se identificar com tudo e todos a fim de poderem e deverem falar em nome de tudo e todos, e isso por meio da onipotência da imaginação que vence todas as barreiras (sexuais, raciais, de classe e até mesmo de espécie, donde o vegetarianismo da escritora). Segundo Elizabeth Costello, essa identificação é tão poderosa, que os autores devem apenas evitar figuras e episódios muito atrozes, uma vez que é impossível imaginar um monstro sem tornar-se um monstro. No penúltimo capítulo do livro, Coetzee deixa de parodiar conferências acadêmicas para parodiar um conto de Kafka no qual se cobra, da maneira tipicamente mais absurda, de um escritor o seu credo. E o escritor do conto, a própria Elizabeth Costello, nega em vão que um escritor possa ter um credo, já que precisa estar disponível a todas as crenças possíveis, uma vez que não sabe de antemão quais serão as que seus personagens terão. Quer dizer, a velha tradição literária europeia (da qual Coetzee é herdeiro), que começa com Homero (grego) falando por gregos e troianos, Heródoto (grego) falando por todos os povos da terra, Ésquilo (grego) falando pelos persas, aqui defendida (e nisso reside o grande truque) por uma romancista mulher, ainda por cima em condição colonial (Costello é australiana).

3.9.20

A Epopeia de Gilgamesh

É mesmo possível que tudo já esteja na Bíblia e em Homero. Eis, porém, onde já estavam tanto Homero quanto a Bíblia, e também Hesíodo, e Virgílio, e as sagas islandesas, e Dante, e a poesia mística medieval, e o romance moderno, e tudo o mais. O herói que tem seu amigo/duplo (Aquiles e Pátroclo, Davi e Jônatas, Quixote e Sancho), o herói que desce ao mundo dos mortos (Orfeu, Ulisses, Eneias, Dante), a guardiã do vinho que recomenda os prazeres da vida (Horácio, Eclesiastes, Khayyam), o herói matador de monstros (Hércules, Sigurd, Teseu), o herói que sobrevive a um cataclismo provocado como castigo pelos deuses (Noé, Deucalião, Ló), o herói que nega o amor de uma mulher para cumprir sua missão (Ulisses e Circe, Eneias e Dido, o cavaleiro andante), a mulher responsável pelo fim da harmonia entre o herói e o meio (Eva, Pandora), a inconformidade do herói ante o sofrimento e a morte (Jó, Sidarta, Ivan Ilitch), o herói que é meio humano e meio divino, o herói que perde no último instante aquilo que foi buscar, e deixa gravado em pedra aquilo que aprendeu dos deuses, a árvore da vida de cujo fruto o herói se vê privado, o herói que é livrado pelos deuses de passar pela morte sendo arrebatado, os deuses que guiam à vitória o exército comandado pelo herói, o pão e o vinho como oferta memorial ao herói finalmente morto, tudo isso já está nesse poema sumério que já devia ser recitado por volta de uns três mil anos antes de Cristo. Assustador.

25.4.20

A literatura e os riscos

Tanto a história narrada na Ilíada quanto a história narrada na Odisseia, dois dos poemas mais extensos já contados, poderiam ter acabado antes mesmo de começar, caso Páris não tivesse sido salvo no duelo com Menelau e os companheiros de Odisseu não tivessem liberado os ventos já quase em Ítaca. A solução rápida dos problemas, tudo o que mais queremos na vida, é sempre um grande risco que a literatura corre.

Primeiro ideal de nobreza

A infantilidade na base da discussão entre Agamenon e Aquiles, na abertura da Ilíada. O primeiro não aceita ficar no prejuízo, nem que para isso tenha que tomar o prêmio de alguém. Aquiles, ao ter o prêmio tomado por Agamenon, vai chorando fazer queixa à mãe. No primeiro ideal de nobreza, a criança mimada.