É muito significativo que o primeiro europeu a pisar em solo sul-americano não apenas planejava chegar a outro lugar, como acreditou que estava nesse outro lugar o tempo inteiro em que esteve aqui. Desde o primeiro momento a nossa parte das Américas parece condenada a não mais existir por e para si. Seja como for, esse europeu — mescla de doido, místico e charlatão — foi, segundo o juízo mais benevolente, uma espécie de Quixote avant la lettre. Havia lido tantos relatos antigos de viagem ao Oriente, que também queria sair e realizar a própria, mesmo contra o descrédito de todos. Vivia tão alucinado por essas leituras, que enxergava a realidade por meio delas, imune a qualquer prova em contrário. O que poderia a disposição geográfica do globo terrestre contra a força da cartografia fantástica de seus estudos? (Aliás, como não chorar com o mapa de Toscanelli, pelo qual Colombo se guiava?) Se Aristóteles dizia que “este mundo é pequeno e a porção de água é muito escassa”, então da Europa até o Oriente pelo Atlântico tinha de ser um pulo. Dessa forma, havendo planejado alcançar a Índia navegando rumo ao Poente (algo que os conhecimentos náuticos da época já suspeitavam não ser possível), Colombo chega às ilhas do Caribe acreditando estar em Cipango, o Japão, portanto muito próximo de realizar o sonho de encontrar o Grande Cã. Então o testemunhamos, ao longo do diário, enxergar Cipango na ilha de Cuba da mesmíssima forma que, um século depois, Cervantes imaginará o Quixote enxergando gigantes em moinhos de vento, donzelas em meretrizes, e assim por diante. Não satisfeito, à medida que a confiança e os favores da coroa espanhola diminuem, Colombo não apenas mantém a inabalável certeza de seu feito, como o encarece ainda mais. Porque, se regressou da primeira viagem afirmando ter chegado aos confins do Oriente, as viagens seguintes (ao todo foram quatro) o tornaram convicto de ter achado nada menos que a localização geográfica do Paraíso, perdida desde a expulsão de Adão e Eva, e não apenas isso, mas também a fonte de todo o ouro do Oriente, do qual davam notícia tanto as Sagradas Escrituras quanto a segunda Bíblia que tinha, o livro de Marco Polo.
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15.5.20
Diários da Descoberta da América, Cristóvão Colombo
É muito significativo que o primeiro europeu a pisar em solo sul-americano não apenas planejava chegar a outro lugar, como acreditou que estava nesse outro lugar o tempo inteiro em que esteve aqui. Desde o primeiro momento a nossa parte das Américas parece condenada a não mais existir por e para si. Seja como for, esse europeu — mescla de doido, místico e charlatão — foi, segundo o juízo mais benevolente, uma espécie de Quixote avant la lettre. Havia lido tantos relatos antigos de viagem ao Oriente, que também queria sair e realizar a própria, mesmo contra o descrédito de todos. Vivia tão alucinado por essas leituras, que enxergava a realidade por meio delas, imune a qualquer prova em contrário. O que poderia a disposição geográfica do globo terrestre contra a força da cartografia fantástica de seus estudos? (Aliás, como não chorar com o mapa de Toscanelli, pelo qual Colombo se guiava?) Se Aristóteles dizia que “este mundo é pequeno e a porção de água é muito escassa”, então da Europa até o Oriente pelo Atlântico tinha de ser um pulo. Dessa forma, havendo planejado alcançar a Índia navegando rumo ao Poente (algo que os conhecimentos náuticos da época já suspeitavam não ser possível), Colombo chega às ilhas do Caribe acreditando estar em Cipango, o Japão, portanto muito próximo de realizar o sonho de encontrar o Grande Cã. Então o testemunhamos, ao longo do diário, enxergar Cipango na ilha de Cuba da mesmíssima forma que, um século depois, Cervantes imaginará o Quixote enxergando gigantes em moinhos de vento, donzelas em meretrizes, e assim por diante. Não satisfeito, à medida que a confiança e os favores da coroa espanhola diminuem, Colombo não apenas mantém a inabalável certeza de seu feito, como o encarece ainda mais. Porque, se regressou da primeira viagem afirmando ter chegado aos confins do Oriente, as viagens seguintes (ao todo foram quatro) o tornaram convicto de ter achado nada menos que a localização geográfica do Paraíso, perdida desde a expulsão de Adão e Eva, e não apenas isso, mas também a fonte de todo o ouro do Oriente, do qual davam notícia tanto as Sagradas Escrituras quanto a segunda Bíblia que tinha, o livro de Marco Polo.
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