O Lutero antissemita (o melhor jeito de batizar um judeu é amarrar-lhe uma pedra ao pescoço e lançá-lo de sobre uma ponte); anticapitalista (o agricultor que torna sua produção inacessível aos pobres por causa do preço é um assassino); filovegetariano (os animais foram criados para a glória de Deus; para nossa alimentação existem as plantas, razão por que Adão e Eva jamais comeram carne no Paraíso); o Lutero frugal, meio primitivista (o Paraíso não foi um jardim das delícias, mas um lugar pobre, precário, singelo; Adão e Eva quase como dois bons selvagens de tanga no meio do mato); o primeiro fundamentalista (uma mentira contada pela Bíblia não pode não ser verdade); o Lutero que troca o monge pelo burguês como ideal ascético (neste mundo, o maior desafio para o cristão é ser um bom profissional, um bom vizinho, bom pai de família); o Lutero obcecado pelo Diabo e por sua encarnação terrena, o Anticristo; o Lutero terapeuta, consolador das almas atormentadas, reconhecedor do abismo entre o que se acredita ser e o que se é de fato; o Lutero anti-humanista (quanto melhor uma pessoa, pior ela é, por causa da ilusão de mérito); do indivíduo fatalizado perante o insondável tribunal divino, totalmente à mercê do divino juiz (aos homens, é suficiente que se arrependam do pecado, com o pequeno complicador de que ninguém é capaz de se arrepender por conta própria, uma vez que o arrependimento é um efeito da salvação divina, não o contrário, de modo que só é absolvido por Deus quem Deus quer), o que faz de Kafka uma espécie de luterano sem esperança, crente perplexo predestinado à perdição; o Lutero teórico da tradução, também o das metáforas estapafúrdias (Cristo é a minhoca que Deus pôs no anzol pra pescar o Diabo, a Bíblia é a placenta dentro da qual a Igreja tem tudo que necessita pra viver, interpretar a Bíblia é coar o leite através do saco de carvão), etc.
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9.5.20
Reforma religiosa e reforma linguística
Foi sempre tão estreita a relação entre as religiões e a fixidez das línguas (sempre ouvi dizer que foi o zelo religioso dos hindus com suas escrituras sagradas que deu origem à gramática): as antigas religiões indianas e o sânscrito, o judaísmo e o hebraico, o cristianismo e o latim... De tal modo que nunca pôde haver reforma religiosa que não levasse também a uma revalorização linguística: os sermões de Buda sacralizam o dialeto indiano mais baixo; a mensagem de Cristo é toda ela divulgada em grego comum; os pais da igreja escrevem, e portanto elevam a outro nível, o sermo humilis dos romanos; as traduções do Lutero camponês formatam o alemão moderno... Talvez não sejam as novas crenças religiosas que, popularizadas, subvertem a escala de valores do universo linguístico a que pertencem; talvez, ao contrário, seja a ascensão das formas baixas de dizer que, fazendo caminho pela pregação desses reformadores, confrontem as crenças estabelecidas com as crenças novas que carregam em si.
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