24.4.14

Um retrato nem só do artista não só quando jovem

Um dia em que todos os alunos, na hora do recreio, comprimiam-se diante do quadro-negro, ele achou que o momento finalmente havia chegado; aproximou-se sem ser visto de uma garota da classe que ficara sozinha em seu lugar; há muito ela lhe agradava e frequentemente trocavam longos olhares; sentou-se ao lado dela. Ao fim de um instante, quando os alunos, sempre levados, repararam neles, aproveitaram a ocasião para fazer uma brincadeira: saíram da sala de aula cacarejando e fecharam a porta a chave atrás deles.

Enquanto estava cercado pelo ombro de seus colegas, sentia-se natural e à vontade, mas no momento em que se viu sozinho com a garota na sala de aula, teve a impressão de que estava num palco iluminado. Tentou disfarçar seu embaraço com observações espirituosas (finalmente aprendera a dizer coisas diferentes das frases previamente preparadas). Disse que o gesto dos colegas era o exemplo da conduta mais ridícula; não trazia vantagem para quem a cometera (agora eles teriam que esperar no corredor com uma curiosidade insatisfeita) e era vantajosa para aqueles a quem pretendiam atingir (eles estavam a sós como haviam desejado). A jovem concordou e disse que precisavam aproveitar a ocasião. O beijo estava suspenso no ar. Bastava inclinar-se sobre ela. Mas seus lábios estavam inacessivelmente longe; ele falava, falava, e não a beijava.

O sino tocou, o que significava que o professora chegaria de um momento para outro, obrigando os alunos reunidos em frente à porta a abrir a sala. Aquela ideia excitava-os. Jaromil disse que a melhor maneira de vingar-se dos colegas seria fazer com que sentissem inveja ao vê-los se beijando. Ele tocou com o dedo os lábios da garota (onde ia buscar tal audácia?) e disse que o beijo em lábios tão maquiados certamente deixaria uma marca bem visível em seu rosto. Novamente ela concordou, dizendo que era uma pena que não tivessem se beijado, e assim que acabou de dizê-lo, pôde-se ouvir a voz irritada do professor atrás da porta.

Jaromil disse que era uma pena que nem o professor nem os colegas vissem no seu rosto a marca do beijo, e novamente quis inclinar-se sobre a jovem, novamente seus lábios parecendo-lhe tão inacessíveis quanto o monte Everest.

— Sim, eles precisariam nos invejar — disse a jovem, e tirou da bolsa um batom e um lenço, pintou o lenço de vermelho e borrou o rosto de Jaromil.

A porta se abriu, o professor enfurecido precipitou-se para dentro da sala de aula seguido pela tropa de alunos. Jaromil e a jovem levantaram-se como os alunos devem fazer quando um professor entra em sala: eram os únicos em meio às fileiras de bancos vazios, frente a uma multidão de espectadores que tinham os olhos fixos no rosto de Jaromil coberto de magníficas manchas vermelhas. E ele se ofereceu ao olhar de todos, orgulhoso e feliz.

(KUNDERA, Milan. A vida está em outro lugar. Trad. Denise Rangé Barreto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 132-133.)

21.4.14

“Briguinha de músicos malucos no coreto”

“Comidos pela raiva”

PAISAGEM

Os insetos atarefados,
os cavalos cor de sol,
os burros cor de nuvem,
as nuvens, rochas enormes que não pesam,
os montes como céus desabados,
a manada de árvores bebendo no arroio,
todos estão aí, felizes em seu estar,
diante de nós que não estamos,
comidos pela raiva, pelo ódio,
pelo amor comidos, pela morte.

(Octavio Paz)

Distância

Cada vez que ouço uma conversa a respeito de ambiente de trabalho compreendo um pouco mais os vagabundos.

Preparação

O grande esforço das mulheres é o de reproduzir na viagem a experiência de abrir o guarda-roupa e não ter o que vestir.

8.4.14

O pedido

Não me lembrava de em toda minha vida ter visto uma mulher madura, mãe de família, figura de matrona, mal se aguentando em pé de tão bêbada a caminho de casa, na rua já vazia da madrugada, num expediente tão masculino. Realmente não lembrava. E se não bastasse o impacto já grande da visão  uma mulher que bem poderia ter filhos da minha idade, com suas quatro sacolas de supermercado nas mãos, duas de cada lado, um vestido protocolar até o joelho, botões frontais de cima a baixo, a cor mais neutra, mais discreta possível, envergada, ziguezagueando pela calçada , aconteceu ainda de ela, no momento exato em que nos cruzávamos, ter parado e perguntado, a voz o próprio desconsolo: “Você me desculpa?” Desculpar o quê, minha senhora? o estado em que volta pra casa?  fiquei pensando, enquanto respondia ainda confuso, mais pra mim do que pra ela e sem exatamente me deter: “Desculpo, claro que desculpo.”

6.4.14

Mudez

Se alguém me perguntasse, eu diria que Lêdo Ivo é o poeta da mudez das coisas. Mudo deve ser o adjetivo que mais usa. De cabeça, lembro de vê-lo aplicado ao céu, ao mundo, ao chão, ao mar, ao corpo... E porque as coisas nada lhe dissessem, estava convocado a proclamar o que elas sonegavam, a dizer tanto a primeira palavra quanto a última, tanto a palavra primordial quanto a definitiva.

Sentido

O sentido da minha vida está nalgum serviço que não descobri a um próximo que não reconheço.

3.4.14

Memória

Os homens acreditam que um dia há milhões de anos desceram das árvores, onde viviam mais seguros. Quando o único lugar do qual desceram, na verdade, foi o colo dos pais, e há nem muitas décadas assim.

2.4.14